Portugal mestiço, sôtôres, o rolo compressor de Bolonha, tropa, juízes e Barroso

Hoje poucas são efemérides para o meu gosto de recordar, dado que apenas anoto a abertura ao público do Centro Cultural de Belém, em 1993, e o facto de Soares ser desterrado para São Tomé, em 1968. Prefiro saudar a chegada da Primavera e assinalar o dia mundial contra a discriminação racial, onde é divulgado um estudo de 2005 onde se considera que Portugal dos brandos costumes é o quarto país mais racista da Europa.
Por isso, notei que uma esforçada cidadã belga que, na Cova da Moura, tão esforçadamente tem animado o Moinho da Juventude, foi entrevistada pela televisão, em defesa do nosso belo princípio constitucional. Contudo, ao denunciar, e muito bem, a primitivíssima discrimanação entre os portugueses ditos “sôtôres” e os outros, caiu na esparrela de não considerar portugueses os covamourenses de origem africana, quando disse que “os portugueses” que com ela colaboravam como monitores não eram discriminados num local que António Ramos Rosa qualificou como “um lugar mestiço”, símbolo do novo Portugal.
Também eu quero esse Portugal mestiço, fiel a certa memória lusotropical, onde até se possa ter o crioulo reconhecido como língua nacional e uma ampla circulação de dupla cidadania entre as pátrias do fado, do samba e da morabeza, num triângulo estartégico-cultural que dê fundura morena e sulista ao Atlântico, para assim podermos honrar a esfera armilar que a república foi buscar ao Reino Unido de 1816. Por isso, saúdo o gesto do presidente Cavaco ao fazer a sua primeira viagem ao estrangeiro a Cabo Verde, para assistir à posse do presidente local.
Reparo, por acréscimo, que o primeiro diploma promulgado pelo novo presidente tem a ver com a introdução do modelo de Bolonha no ensino superior lusitano. Mesmo que discorde do espírito da coisa, sou obrigado a reconhecer que, perante as realidades do rolo compressor, para nos mantermos independentes temos que saber gerir as dependências e deixarmo-nos das habituais fosquices dilatórias, adaptando-nos rapidamente ao pronto-a-vestir. Porque, com o novo diploma, acabaram as antigas licenciaturas, a não ser para os pequenos núcleos de resistência corporativa, dotados de órgãos de soberania privativos ou de corporativas ordens profissionais.

 

O primeiro ciclo de estudos vai equivaler à quarta classe de antigamente ou ao 12º ano de hoje, transformando os três primeiros anos do dito superior num mero politécnico que dá bacharelatos, para que o antigo conceito de universidade comece no antigo quarto ano das licenciaturas, cujo valor será transferido para os novos mestrados, e estes para os os cursos de doutorado os substituam. A avalanche uniformista que obrigou a Europa do Norte a aumentar o número de anos do superior e a Europa do Sul a diminui-los parece-nos imparável e pode levar a uma competitividade e a uma selecção das escolas pela qualidade, dado que muitas universidades de hoje passarão a meros politécnicos e muitos politécnicos para a categoria liceal. De qualquer maneira, o desafio está lançado e a escolha vai passar a depender mais do consumidor transfronteiriço.

 

O velho conceito de “sôtôr” com que a república quis substituir o “barão” do liberalismo, tal como este sucedeu ao “frade” do “ancien régime” está quase morto, podendo abalar a tendência que temos para a caserna da sociedade de ordens e recordar-nos que o próprio liberalismo vintista começou abalado pelo confronto das novas ordens do “partido dos becas” (ou magistrados) contra o “partido da tropa”. Tal como o vinte e cinco de abril se traduziu numa revolta dos tais meritocratas do partido da tropa, para depois ser abafado pelo “partido dos partidocratas”, sem que o “partido dos becas” tenha conseguido instituir um “Estado de Juízes”.

 

Resta saber se hoje não se assiste, pelo contrário, a um confronto equivalente ao que tivemos na viradeira, entre o partido inglês e o partido francês, ou na guerra fria, entre o partido sovietista e o partido ocidentalista. Contudo, a deserção ontem manifestada por Durão Barroso, arrependido do apoio dado ao partido norte-americano, na invasão do Iraque, pode levar o partido europeísta a dar mais atenção à crise deste Estado de providência europeu a que chegámos.

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