Set 09

O tempo mudou, a chuva me deu afonia, mas comemorei o sete de Setembro

Afastado de um quotidiano onde podia aceder à net, posso dizer que fui vítima desta mudança de tempo que acompanhou aqui em Brasília as comemorações do dia da Independência, quando a chuva deixou o ritmo ocasional das chamadas pancadas e passou a um constante ensopar de terra, para alegre chilreio da passarada que se vai refrescando nas raras árvores do sertão. E lá se passou o dia 7 com desfile monumental das tropas na esplanada dos ministérios, para reforço do que aqui também se designa por auto-estima nacional, coisa que não é de esquerda nem de direita, nem da burguesia nem do povão, mas que pretende ser de todos. E lá reparei como os antigos gestores da ditadura se tentam reconciliar com a nova classe política, a fim de conseguirem um reforçozinho das verbas orçamentadas.

 

Aqui verdadeiramente se continua a sentir que a democracia não é o mesmo do que povo, mas mera entidade que o pretende representar, através de um sistema de canalização classista, de marca partidocrática. Mas também as chamadas ditaduras institucionais, que foram além do mero estado de excepção, nomeadamente as dos populismos e autoritaritarismos modernizantes, se assumiam como representativas desse mesmo povo.

 

A grande vantagem da democracia está na separação dos poderes, no pluralismo e na ausência de sistemas de repressão visível e, sobretudo, na implantação dos mecanismos do Estado de Direito. O grande defeito destas democracias continua a ser o indiferentismo das massas, face À falta de autenticidade dos modelos de participação política, bem como o agravamento da tradicional degenerescência da corrupção, aliada ao sentido de casta minoritária de uma classe partidocrática, também envolvida em processo de negocismo.

 

E não aprece haver doutrina ou modelo de organização partidária que a tal consigam pôr cobro, tanto à esquerda como à direita, dado que todas as provenções sistémicas acabam por falhar, face à ausência de uma efectiva autonomia moral do indivíduo.

 

E assim foram passando alguns dias de médicos, hospitais e drogarias, com algumas noites sem dormir, especialmente num país onde também a saúde é negócio e manha para os convencionados. Também aqui, mesmo no privado, saúde é senha na fila, à espera do direito ao atendimento, onde no fim há um burocrata intermediário, atrás de um guichet, com écran de computador e ligação ao sistema das facturas, que me atrasam a relação directa com a função, das batas brancas e antibióticos. Vale-me que li aqui artigo, no “Correio Braziliense”, um artigo de Frei Beto, o tal teólogo da libertação que, outrora dizia que cristão é comunista sem o saber e que comunista é cristão mesmo sem o querer, para quem a salvação já não vem do Estado, das ideologias e dos partidos, mas da auto-organização da sociedade civil.

 

Por mim, sem voz, no plano técnico, devido à afonia, e sem voz num país, apesar de tudo, estrangeiro, nem sequer posso exercer pelo berro o meu cidadânico direito à indignação, que é coisa que, com garganta folgada, apenas posso ter nos corredores do São José, do Santa Maria e do Santo António. Aqui, no Pronto Norte, apenas tenho o marginal direito ao espectáculo de pedir, ganhando um ar de vítima que finge desconhecer mecanismos do sistema. Apenas reconheço que todos os palácios da saúde a que chamamos hospitais têm sempre este sabor a sombra cinzenta. Porque neste país de largos horizontes, neste grande espaço do gigantismo do sertão, onde a terra é folgada e a vista longa, estou condenado, como tantos outros, a ser encafuado em filas e gavetões.

 

Para os amigos, apenas digo que afinal a crise já está a passar. Amanhã, ou depois de amanhã, regresso à voz, às aulas e aos telefonemas.