Nov 21

Ditadores. Negócios Entre Chávez e Hitler, venha o diabo e escolha o fornecedor de gás natural!

Se eu tivesse que dar um conselho aos chefes da república dos portugueses, dir-lhes-ia que um diplomata até deve conversar com o diabo. Logo, acho normalíssimo que eles recebam o semi-índio venezuelano e que encene, com pompa e circunstância, um contrato de fornecimento de produtos petrolíferos, com eventuais garantias de não-perseguição a mais de meio milhão de portugueses e luso-descendentes. Ai da diplomacia de uma democracia pluralista que corte os canais de comunicação e de negócio com bem mais de metade da humanidade que não obedece aos nossos conceitos de poliarquia e de Estado de Direito. Dizer isto não significa que goste de ver um avozinho da democracia transformado em caixeiro viajante de uma companhia petrolífera, mesmo quando subscreve o velho ditado, segundo o qual o que é bom para a Galp é bom para a República Portuguesa. Porque o terei de comparar às incoerências do regime salazarento que tanto decretou luto nacional pela morte de Hitler, o tal que mandou assassinar o salazarista austríaco Dolfuss, como sempre manteve relações diplomáticas com o regime de Fidel de Castro. Não por causa daquilo que Sócrates também fez com Chávez, mas pelo discurso para consumo interno que produzia.  Aliás, não consta que o ministro e primeiro-ministro Mário Soares tenha alguma vez proposto o corte de relações diplomáticas com o regime de Augusto Pinochet. Ou que não tenha continuado a admirar Salvador Allende, ou a ser amigo do seu camarada socialista venezuelano Carlos Andréz Perez. Sempre gostei do Oliveira de Figueira e dos caixeiros viajantes da política, mas prefiro a liberdade de expressão das minorias.  Se eu fosse venezuelano também detestava Chávez. E não o justificava com a chegada ao poder pela via eleitoral, quase nas mesmas circunstâncias em que Hitler conquistou os aparelhos de repressão. Sou mais poliárquico do que democratista, pelo que só quero democracias que não sejam absolutistas, mas antes pluralistas e poliárquicas. Porque tanto pode haver absolutismos monárquicos de um só, como absolutismos democráticos, quando se tira o rei absoluto e se põe, em lugar do dito, o povo absoluto, produtor de terror. Por mim, só sou democrata se a democracia for liberal, conforme as tradições pluralistas que nos foram legados pela revolução inglesa, pela revolução norte-americana e pelas pós-revoluções demoliberais da história europeia e americana, ao Norte e ao Sul. Continuo malhadamente cartista e liberdadeiro. De outra maneira teria que subscrever o conceito de democracia de certos totalitarismos contemporâneos, marcados pelos sovietistas, pelos maoístas ou pela instrumentalização que os nazis fizeram do povo em movimento. Logo teria que admitir a hipótese de uma ditadura de uma vanguarda, de um Estado, de um partido único ou de uma maioria eleitoral conjuntural. Prefiro dizer democracia à Robert Dahl ou à Karl Popper: o problema fundamental das actuais democracias pluralistas e de Estado de Direito não é medir quem manda, mas controlar o poder daqueles que mandam, salvaguardando as minorias, isto é, permitindo que a liberdade as transforme, eventualmente, em futuras maiorias, isto é, admitindo os golpes de Estado sem sangue que resultam das alterações por via eleitoral.

Nov 21

Entrevista a O Diabo

Questões:

 

1 — Em 1 de Dezembro de 1640 foi declarada e restabelecida a independência de Portugal face a 60 anos de domínio espanhol. Considera que podemos continuar a aspirar pela sua continuidade ou estará a nossa independência ameaçada?

 

Portugal nunca perdeu a independência durante os 60 anos de reinado dos Filipes, onde os Habsburgos, descendentes de Carlos V, legalmente eleitos reis de Portugal, por deliberação das Cortes de Tomar, nos integraram num império europeu que também abrangia parte fundamental daquilo que é hoje a União Europeia, incluindo Bruxelas. Em 1640 apenas houve uma rescisão por justa causa e a criação de um movimento que nos fez eleger um novo rei, num processo paralelo ao que ocorreu naquilo a que hoje chamamos Holanda. A nossa independência estará sempre ameaçada se a não fizermos radicar naquilo que Alexandre Herculano qualificava como a vontade de sermos independentes. Isto é, a independência deriva mais de factores internos que de ameaças externas. Seria estúpido que continuássemos a antiquada perspectiva que coloca o independentismo português como mera consequência da ameaça espanholista, fazendo revisionismos históricos. A Espanha voltou a ser uma pluralidade de Espanhas e a melhor forma de as compreendermos está em reconhecermos que se está a dar uma espécie de portugalização do Estado Espanhol, como antevia Miguel de Unamuno, dado que se estão a libertar as energias das nações proibidas pelo absolutismo de Madrid, marcado pela política de Olivares. Eu que me considero um europeísta, adepto do divisão dos imperialismos frustrados que nos geraram a Europa da hierarquia das potências, para que se possa atingir a unidade na diversidade da Europa das libertações nacionais, não posso deixar de ser um adepto da união ibérica, sob a forma de uma aliança peninsular que passe por Madrid, Barcelona, Bilbau, Sevilha, Santiago de Castela e Valência, embora sem vontade de destruir séculos de Estado Espanhol. E até acredito que no espaço europeu é possível semear essa velha ideia através da Espanha juancarlista, plural e autonómica.

 

 

2 — A data histórica que assinala a restauração da independência tem sido dignamente recordada? Que significado tem ainda esta data para os portugueses?

 

Julgo que não. Seria interessante que num próximo dia 1 de Dezembro, a poderíamos comemorar reeditando os tratados dos grandes juristas da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, mas demonstrando como esses textos justificadores da revogação do título de rei de Portugal à casa de Áustria se basearam em autores espanhóis da neo-escolástica, como Francisco de Vitória e Francisco Suárez, criadores de uma teoria hispânica da democracia e das liberdades nacionais. Porque o 1º de Dezembro de 1640 foi a base da actual perspectiva moderna, precursora da Regeneração de 1820. Sem 1640 não teríamos reinventado a identidade nacional, no contexto da Europa dos Estados Modernos, consagrada em Vestefália, não passando hoje de mera saudade sem presente, perdidos nas brumas de uma memória de autonomia nacional. Contudo, se perspectivarmos o Portugal universal, poderíamos dizer, como ensinava Agostinho da Silva, que 1640 teve outra mais importante consequência: permitiu a criação do Brasil, permitiu que as principais energias do independentismo lusíada assentassem no lado de baixo do Equador e que se preparasse a mudança da capital do reino para o Rio de Janeiro, conforme uma estratégia nacional que estava amplamente delineada por D. Pedro II, bem antes de D. João VI. E foi do Brasil que saiu Salvador Correia de Sá para fundar outra cidade de São Paulo, a de Luanda, assim se dando corpo ao novo triângulo estratégico atlântico do oceano lusíada, entre o Rio, Luanda e Lisboa.

 

 

3 — Na sua opinião de e para que serve hoje a invocação da soberania nacional?

 

Para muitos continuarem a não perceber que a independência nacional não se identifica com os conceitos de Estado e de Soberania. O primeiro apenas surgiu em 1531, com Maquiavel. O segundo em 1576, com Bodin. O nosso D. João II e o respectivo sucessor, a quem o primeiro deu a armilar, preferiam os velhos mas não antiquados conceitos de república e de autonomia nacional, conforme foram consagrados na primeira constituição portuguesa, aprovada nas Cortes de Coimbra de 1385. E estas ideias políticas sempre conceberam as comunidades políticas como repúblicas que se poderiam integrar numa república maior. Na altura era a bela “respublica christiana” que permitiu a “cosmopolis” do Euromundo, hoje uma Nação-Estado é algo que pode e deve integrar-se num outro grande espaço, que pode ser a Europa e a própria república universal, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e a consequente libertação nacional, assim a Europa e o Mundo possam ser nações de nações e democracias de democracias. Tem sido esta a reivindicação dos tradicionais humanismos europeus, desde o humanismo cristão ao humanismo laico, incluindo o maçónico, com a sua república de irmãos, como homens livres ou homens de boa vontade. Por mim, não vejo grande diferença entre Kant e João Paulo II quanto aos objectivos essenciais da vontade de independência nacional e de criação de uma república universal. Todo o nosso plural humanismo subscreve as teses de São Paulo, Marco Aurélio e Erasmo que se conjugaram em 1640.

 

4 — Depois da independência do domínio espanhol, só conseguida em 1640, o que é que foi mais importante para a História: a revolta ou a efectiva independência?

 

O chamado domínio espanhol é um conceito equívoco, como já o procurei demonstrar. Tem a ver com preconceitos e fantasmas que até esquecem que o nosso Filipe I, o Filipe II de Espanha, era mais português do espanhol, filho de uma princesa lusitana e de um belga, Carlos V. E talvez seja necessário recordar que quando chegaram a Madrid notícias do ocorrido em Lisboa no 1º de Dezembro, os madrilenos até ficaram satisfeitos e aprenderam, a partir de então, a ter que admitir, pelo menos, dois Estado na península. Basta recordar que entre 1640 e 1668 vivemos em estado de guerra com um vizinho que era uma das principais potências militares da Europa e que não perdemos a guerra. Isto é, os vizinhos perderam a vontade de se mobilizarem para esmagarem a nossa vontade. E não constam que tenham feito expedições militares para esmagarem a América Portuguesa que era, já na altura, a principal reserva das saudades de futuro do Portugal Universal. Isto é, 1640 revela que houve uma estratégia nacional de independência, misturando a massa crítica (população, mais território, mais economia, mais força militar) com a vontade de sermos independentes, o tal factor intangível que pode fazer das fraquezas, forças e que evita que as potencialidades se tornem vulnerabilidades. Se chamarmos a isso revolta com pensamento, óptimo.

 

5 — Temos perdido ou não elementos importantes da soberania nacional?

 

Já disse que não sou soberanista nem estadualista. A soberania pode ser entendida conforme a perspectiva de um teórico bodinista desse século XVII, um tal Miguel de Vasconcelos, que era simultaneamente soberanista e filipista, adepto de Olivares. Tal como hoje pode haver soberanistas que coloquem essa abstracção em Bruxelas, no Vaticano ou em Washington. Por mim, que sou federalista e nacionalista, prefiro a soberania divisível, para cima e para baixo. Isto é, tanto admito a transferência de parcelas dessa soberania para entidades maiores do que o Estado (p.e. para o projecto europeu ou para um Tribunal Penal Internacional), como para entidades infra-estatais (p.e. para regiões políticas). O conceito clássico de república não pode ter medo de repúblicas maiores e menores e muito menos de coisas políticas que se passam entre os povos e as sociedades civis, naquilo a que chamamos relações transnacionais, ou trans-estaduais, assentes na autonomia das sociedades civis. Continuo mais nacionalista do que soberanista e mais federalista do que estadualista, especialmente quando não admito Estados que proíbam nações ou até Estados que construam nações. Prefiro nações que dividam Estados, para permitirem repúblicas que resultem de nações, desde que possam integrar-se noutras repúblicas maiores. Como dizia Fernando Pessoa, cada nação é sempre um ponto de passagem para a super-nação futura.

 

6 — Há quem diga que a Espanha está a conquistas pela via económica o que não conseguiu pela via das armas. Concorda?

 

Seria melhor descodificarmos cada um desses investimentos estrangeiros, dando o nome real às coisas conquistadoras e percebendo que o Estado não é o mercado. Num mundo de geofinança e de geo-economia, os capitais não têm pátria. Apenas reparo que muito do que dizem capital espanhol é capital das multinacionais e transnacionais que puseram a sede em Madrid, por falta de estímulos das leis e dos burocratas portugueses. Até noto que alguns dos agentes de certas promessas lusitanas de fusão vêm de capitais oriundos da Catalunha. Acresce até que face a problemas internos do Estado espanhol, muitas das vontades madrilenas de investimento são apenas consequência da autonomia financeira catalã e basca, gerando-se um excedente que desliza para ocidente, dado que a boa moeda costuma expulsar a má moeda ou, dito de outra forma, por falta de bons capitalistas portugueses, muitos destes organizam campanhas anti-espanholas, para disfarçarem a respectiva falta de qualidade face aos congéneres ditos “hermanos”. Como sou liberal, julgo que não devemos gastar energias nacionais com proteccionismos assentes em fantasmas e preconceitos. O meu nacionalismo é político e nunca económico, até porque os problemas económicos se resolvem apenas com medidas económicas, embora não apenas com medidas económicas. Precisam também de estratégia nacional, assente na autonomia das repúblicas, isto é, de um poder político mobilizador e de uma governação que saiba gerir dependências e navegar na interdependência, com mais política e mais sociedade.

 

Nov 20

Todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação

20.11.07
Todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação
Os chineses do século XVI diziam que os portugueses eram bárbaros, isto é, diabos vermelhos, porque comiam pedras (pão) e bebiam sangue (vinho), tal como outros povos diziam que os cristãos eram antropófagos porque, em seus cerimoniais, comiam o corpo de um deus feito homem. É o que fazem todos os que são marcados pela incompreensão face aos símbolos decepados da unidade espiritual de que os rituais são simples parcela.

É por esta e por outras que detesto todo o sectarismo que pretende monopolizar o sagrado para a respectiva liturgia e que, fradescamente, semeia a intolerância, insinuando o ridículo face as alfaias que os outros usam para os mesmos fins. Afinal, todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação. Contudo, mais ridículos ainda são os que não têm liturgia sentida por dentro, ou os que se ficam pelos sucedâneos e pelas vulgatas de certo dogmatismo pretensamente antidogmático.

Por mim, que, sobre as verdades eternas, apenas sei que nada sei, resta-me continuar a procura da verdade, pelos variados caminhos que segue aquele que apenas pretende ter a boa vontade daqueles que querem conquistar a glória do homem livre. Porque ninguém pode deter o monopólio do “imprimatur” e do “nihil obstat” para a edição desses manuais de metodologia, com os consequentes livros únicos dos inquisidores, vanguardistas, vigilantes da revolução, ou contínuos e sargentos do senhor director.

Nov 20

O hábito, se não faz o monge, sempre consegue disfarçá-lo

Sempre às voltas com McLuhan e a aldeia global. Porque tanto na Galáxia de Gutenberg como na Galáxia de Marconi o “medium” é mais importante do que a “mensagem”. Porque, afinal, o hábito, se não faz o monge, sempre consegue disfarçá-lo, embora nem só a vestimenta faça o corpo que a sustenta. Claro que Gutenberg permitiu traduzir a bíblia com que Lutero desfez a “respublica christiana” e o império restaurado pelos papas na constelação de poderes que sustentava os Habsburgos. Da mesma maneira, as tipografias e os tipógrafos fizeram as democracias liberais e os nacionalismos das primaveras dos povos do século XIX. Tal como a electricidade promoveu o comunismo e o transístor e a electrónica tiveram como consequência a queda do muro e o fim do sovietismo, que acabou por não ser o fim da história. Porque graças à dita Guerra Fria surgiu a Internet e graças à teledemocracia surgiram os Sócrates, os Sarkosy, os Berlusconi e os Blair. Porque, em política, se o que parece foi, agora só o que aparece é que pode ser, desde que haja adequado investimento em agências de comunicação. McLuhan tem mesmo razão, a propaganda para ser eficaz não pode parecer que é propaganda.

Nov 18

Os governos que comandam a distribuição dos postos e das postas

Os governos que comandam a distribuição dos postos e das postas a partir da mesa do orçamento só não ficam com a melhor parte se forem burros ou não perceberem da arte. Um qualquer marechal saldanha, ou um qualquer ministro de cabral, quando se sente à rasca com a emergência de uma qualquer patuleia, costuma dizer que, se esta tem sotaque nortenho, deve ser oriunda do miguelismo e, portanto, potencialmente, populista, radical, anti-europeísta e, quiçá, fascista. Porque, encerrado o período de sangrentas lutas caseiras, entra em cena um regime centrista e nacionalizado, herdeiro conservador de um romantismo que fora revolucionário. Não passa de uma simples conciliação de sinais contrários, onde emerge, como consequência e motor, o cepticismo político que trata de conjugar o progresso em termos de melhoramentos materiais, mas onde também se agrava uma dominância banco-burocrática, assente no indiferentismo popular, bem como uma ilusão de crescimento dependente da engenharia financeira. É neste ambiente de lassidão moral que se implanta um capitalismo dependente do empréstimo estrangeiro, gerando-se uma mentalidade oficial plutocrática marcada pelo utilitarismo. O melhoramento material parece ser a única alternativa a esta decadência. Ao menos a estrada de macadame, a malaposta, o tramway e o fontanário, esses sinais da política prática servem para justificar o abandono das utopias doutrinárias. E os patuleias, depois de uma passagem pelo republicanismo de orçamento ou lunático, volvem-se em progressistas à maneira de José Luciano. Por outras palavras, quem se mete com o equilíbrio situacionista corre sempre o risco de perder o controlo sobre as adjectivações diabolizantes produzidas pelo politicamente correcto que quase sempre atinge o seu clímax quando a esquerda moderna se amanceba com a direita dos interesses. Basta anotarmos algumas das campanhas negras mais recentes da nossa história democrática, onde, aliás, o crime sempre compensou. Não falo na invasão do Iraque e das falsidades da espionite que permitiram cimeiras e ascensões a lugares cimeiros. Prefiro recordar Sá Carneiro, acusado em plena televisão de adultério de Estado por um chefe de partido e um arcebispo, depois de os comunistas o vilipendiarem como caloteiro, na linha do que patrões da CIA tinham engendrado, apoiando preferencialmente o chefe dos socialistas, para desfazerem tacticamente o perigo de uma frente popular e da consequente unicidade antifascista.

Nov 05

Reflexões heréticas em noites de olhar as estrelas com os pés nas pedras do caminho

5.11.07

Todos os anos, sempre o mesmo ritmo dos sinais do tempo, especialmente quando o tempo que vivemos não são os prometidos amanhãs que cantam e que podemos retomar a eterna humildade dos velhos humanistas que nunca foram como aqueles vanguardistas que pensam deter as alavancas daquela inteligência que pretendeu assumir o controlo do processo histórico.

Porque a tal história não é, afinal, o produto das boas ou más intenções de certos homens, mas antes o resultado da acção de todos os homens. Porque não são os abstractos caixilhos teóricos de certa luta de classes na teoria que fazem a história, mas antes os anónimos homens concretos que a fazem e refazem, mesmo saberem que história vão fazendo.

Esta co-criação de homens livres raramente segue os manuais planeamentistas do pensamento único e dos livros únicos do politicamente correcto. O normal é haver anormais, isto é, paradigmas que convergem e divergem, para que o amanhã seja um acaso procurado que nos vai surpreender. Há muitas curvas no caminho, para quem prefere as peregrinações dos carreiros do pé descalço que desde sempre trilhamos.

Mais um dia, mais um regresso, mais um rendilhar no bilro dos conceitos, depois do dia de todos os santos, que é depois do dia das bruxas e antes do dos fiéis defuntos, nesta sequência de festividades e tradições que são católicas quando antes já foram pagãs, mas que os protestantes globalizaram, com jantares de perua ou louvor dos mortos, num sincretismo típico de loja de chinês num bairro alfacinjha. Não tarda que encontremos sinais maçónicos em vestimentas sacerdotais de ortodoxos russos do século XIX, ou louvores ao grande arquitecto do universo numa sacristia jesuíta pré-iluminista, agora que o rosto de Tutankamon foi revelado, neste sincrético que fez da senhora de fátima uma continuidade de velhos cultos mediterrânicos pré-cristãos, antes de os volvermos em iemanjá, numa complexidade crescente de uma eterna procura da religação ao afago do cosmos, contra a frieza e fealdade das eternas angústias do quotidiano.

Apenas concluo que o congreganismo jesuítico gerou a insurgência anticongreganista demoliberal que, por sua vez, provocou a ressurgência antilaicista, com o habitual ciclo de persigangas que não tem permitido que todos os homens de boa vontade possam ser homens livres. E poucos reparam que não é possível inventar o que já está inventado nem descobrir o que já está descoberto.

Por mim, que subscrevo Marco Aurélio, Erasmo, Montaigne e Kant, apenas devo concluir que, por isso mesmo, só sei que nada sei. Porque pensando, apenas continuo a procura do que nunca irei achar, nesta viagem para a raiz do mais além, onde, felizmente, nunca haverá o fim da história. Fica a esperança, porque os homens são seres que nunca se repetem, vivendo acontecimentos que também nunca se repetem.

Cada um de nossos eus, perdido nas suas circunstâncias, apenas pode ligar coisa com coisa, compreendendo o todo pela intuição imediata da essência. Logo, só por dentro das coisas, pela imanência, é que as coisas realmente são a situada transcendência que nos permite a cultura humanista.

Se calhar Deus é o mundo e o cosmos vai além daquilo que solitariamente pensamos, apesar de cada um continuar a ser o único sempre centro do mundo que sempre e para sempre podemos conhecer.

Nov 01

Ainda Gomes Freire, em dia de todos os santos, incluindo os mártires da pátria…

Há dias, um companheiro blogosférico, que se refugia no anonimato, teve a galhardia de me revelar, em confidência, a respectiva identidade, depois de indirectas provocações que me têm vindo a fazer. Nem por isso abandono a minha anterior reserva de não entrar em polémica com quem não assina, mesmo que, para mim, ele já não seja anónimo. Aliás, quero aqui confessar que também nunca aqui citei, uma aventura blogueira do meu pequeno círculo de intimidade social, onde todos utilizamos heterónimos, embora todos os frequentadores e comentadores dessa forma de expressão consigam dar nome aos intervenientes.     Prefiro notar as linhas de muito alta tensão que nos continuam a sobrevoar, enquanto nos vamos dispersando pelos variados volteios palavrosos da politiqueirice, assim alimentando inúmeros cadáveres adiados que vão procriando terrorismos de alcatifa. Nem sequer merece adjectivação essa tentativa de transformação das “Novas Fronteiras” em palanque para a tradução em calão do conceito comuno-chinoca de “desenvolvimento científico”, numa altura em que a imagem de tais protagonistas parece não coincidir com a banda desenhada do Professor Pardal.     Por essa e por outras é que os nossos poderes fácticos continuam a fugir ao necessário controlo dos agentes do poder político. Não falo nas Igrejas, nos militares e nos magistrados, mas noutras coisas mais subterrâneas e sem rosto e que, ao que parece, têm dinheiro suficiente para a compra de sofisticados aparelhos de escuta, até pressionando o nosso PGR obrigando a conversas secretas junto de televisor, com o som ligado…        Também estranho que, noutro dia, ao exprimir, neste local, uma tentativa de isenta apeciação de Gomes Freire, tenham criticado a repetição que fiz da sensibilidade de Raul Brandão sobre a matéria, e que me tenha esquecido da posição maniqueísta de António Sardinha sobre tal personalidade. Não me esqueci dela, apenas a abomino. Porque não podemos peregrinar pela guerra civil de há quase dois séculos com espírito de vindicta e essa mentalidade que nos quer afogar na lógica do amigo/inimigo, sem que se estabeleçam lugares comuns mobilizadores do civismo e do patriotismo.     Chegou o tempo de perpectivarmos personalidades como Sebastião José, Gomes Freire ou D. João VI sem aqueles facciosismos historiográficos que deles fazem pretexto para interpretações retroactivas ou revisionismos que ora os deificam, ora os diabolizam. Porque todos foram intensamente amados ou odiados, segundo as concepções do mundo e da vida, ou as circunstâncias vindouras. A complexidade dos nossos egrégios avós não pode ser apenas medida pelas lentes analíticas das nossas ideologias, dos nossos medos ou das nossas esperanças.     Aqueles que dividem o mundo entre os bons e os maus, entre os patriotas e os traidores, entre os progressistas e os reaccionários, não conseguem ascender à necessária serenidade que nos pode permitir sentir a profundidade da tradição, entendida como aquelas algemas que nos podem libertar, permitindo a permanência na renovação das saudades de futuro que vão além de passados ou futuros presentes. A criatividade da história sempre exigiu vivê-la como emergência das três unidades do tempo e sempre implicou unirmos o que anda disperso.     Conheço as peças historiográficas que transformaram Gomes Freire no vazadouro dos impropérios contra o demoliberalismo e que sobre ele lançam o ferrete de traidor. São exactamente os mesmos que nem sequer reparam que Gomes Freire foi vítima de um assassinato político que, apesar de ser processualmente institucionalizado pelo ocupante, não deixa de poder qualificar-se como consequência do terrorismo de Estado.     Gomes Freire, ao liderar o processo conspiratório contra o pretenso protector inglês, semeou com a sua vida a conseguida regeneração de 1820. Uma revolta inequivocamente nacionalista e liberal que continuou as ideias e a acção do Conselho Conservador e preparou o Sinédrio. Julgo que no século XXI importa compreender as turbulência pós-revolucionária de há dois séculos. E fazer um paralelo entre homens como Gomes Freire e Fichte que, depois de cederem à pretensa “bela ordem” napoleónica, depressa aderiram à fogueira romântica das libertações nacionais e das primaveras dos povos.     Tal como os defensores das perspectivas liberais da unificação alemã e da unificação italiana, há que realçar todos os que promoveram a conciliação da ideia de nação com o sonho da casa comum europeia. E do cosmopolitismo com a o republicanismo, quando este nem sequer era antimonárquico, à maneira de Kant. Porque quem virá a ser a efectiva prisão dos povos será a Santa Aliança que estabeleceu o princípio da hierarquia das potências.     As ideias assumidas por Gomes Freire têm mais a ver com as sementes de direito das gentes que vai ser expressa pelo krausismo, como, entre nós, foi praticado por um Vicente Ferrer Neto Paiva. Por todas aquelas libertações patrióticas do dividir para unificar que geraram os posteriores federalismos de maçons e de católicos, de liberais e de socialistas que, conciliados depois da Segunda Guerra Mundial, constituem os esteios da presente unificação do projecto europeu.     Sem Gomes Freire não haveria Fernandes Tomás, D. Pedro IV, Passos Manuel, D. Maria II, Sá da Bandeira, Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, bem como muitos outros que o ex-republicano Sardinha há-de erigir em mestres. Sem sombra de persiganga e de inquisitorialismo, Gomes Freire integra a honrosa lista dos pais-fundadores do Portugal Contemporâneo, azul e branco, que permitiu mais de um século de continuado liberdadeirismo. Denegri-lo em nome do ódio e do revisionismo histórico é removermos da nossa memória uma das fundamentais pedras vivas da tradição.     Pior ainda: não cultivar com o afecto da emoção esta comunidade das coisas que se amam, chamada nação, é extirparmos reservas morais da pátria e da liberdade. Por mim, seguidor do Conselho Conservador e do Sinédrio, que tanto alinharia no Partido da Bemposta como, por conclusão, teria que ser mindeleiro, depois de falhar a boa intenção de D. Isabel Maria, tenho de honrar Gomes Freire, porque queria evitar que o rei liberal, directo descendente de D. Maria II e de Vítor Emanuel I, D. Carlos, fosse assassinado pela cultura dos ódios terroristas que ainda nos amarfanha. Precisamos de revoluções que sejam restaurações da lusitana antiga liberdade. Precisamos de reaprender a palavra regeneração, conjugada pelos mártires da pátria, como Gomes Freire. PS: Provocatoriamente, deixo uma imagem de 24 de Agosto de 1820 e uma foto de Joshua Benoliel, de 1917, sobre as cerimónias populares de homenagem a Gomes Freire