Há muitas pontes levadiças, muitas pedras que escorregam das escarpas, muitas íngremes ladeiras, alguns fossos e outros tantos fossados

Entre Timor Lorosae e a parte ocidental da ilha que fez parte das Índias Orientais Holandesas, há muitas pontes levadiças, muitas pedras que escorregam das escarpas, muitas íngremes ladeiras, alguns fossos e outros tantos fossados. Mas há também as mesmas bibis que não conhecem fronteiras, as mesmas casas, os mesmos pátios, os mesmos muros feitos com pedaços de palmeiras, bem como porcos negros, galos e galinhas que se passeiam diante dos poços onde as mulheres lavam a roupa e as raparigas se penteiam, ao lado dos túmulos dos antepassados. Quis fingir que não vi o ex-miliciano que me abordou na loja, a loja ao lado do malai que faz contrabando dos restos sandalosos e explora o “karaoke” noite dentro. Porque mais além há também Oecussi/ Ambeno, quinze mil pessoas que não falam tétum e meia dúzia de sucos que não quiseram a integração e liurais que morreram honrados sem verem a pátria libertada. Há Pante Makassar, onde o “Nakroma” vem, de vez em quando, trazer abastecimentos, demorando seis horas amarrado na praia. Por mim, malai demais, que não sei desenhar as palmeiras como elas na verdade são, também não posso deixar de testemunhar os dias que passei para lá da fronteira, onde não são raros os cartazes de Eurico Guterres como candidato a governador de Kupang. Apenas acrescento que tais dias apenas serviram para confirmar as muitas cenas de todos os dias, com que se vai fazendo a eternidade das nossas vidas.

Não tive suficiente tempo para comparar desenvolvimentos e atrasos, ou até memórias coloniais, mas tornou-se evidente o peso de dezenas de milhares de refugiados desta RDTL, que alteraram a paisagem, sobretudo, de Atamboa. Também não tive tempo para ir além das aparências e até não me chegaram as informações que fui obtendo através dos excelentes guias que me acompanharam. Apenas confirmei que, por esta linha de ilhas que fazem a fronteira entre a Ásia e a Oceania, já correu sangue demais entre irmãos, feitos pedras de xadrez do grande jogo das guerras por procuração. E continuo a desejar que elas não sejam apenas uma espécie de seguro de defesa das grandes potências que por aqui temem o terrorismo, a bandocracia e o narco-tráfico.

Lá do outro lado de Batugadé, a República Indonésia, de Suharto a Sukarno, que pediu, e bem, o estatuto de observador da CPLP, constitui ainda uma versão asiática do modelo clássico de construção da nação a partir da construção de um Estado, dominado por aparelhos de poder, como destaque para o militar, não faltando sequer uma espécie de cartilha de um mínimo de razão de Estado, a que chamam ética da reponsabilidade. Aliás, as semelhanças com o processo histórico  francês, tanto do despotismo esclarecido como do estatismo pós-revolucionário, revelam uma espécie de neo-feudalismo numa anarquia ordenada, onde a pluralidade das forças vivas conseguiu ser mobilizada pelo autoritarismo modernizante do chamado Estado de Segurança Nacional.

Visitar Timor Ocidental e confirmar as causas geopolíticas da invasão, obriga-nos também a sublinhar que, mesmo em plena “integração”, nunca deixaram de existir fronteiras formais entre as duas partes da mesma ilha. Porque a remota parcela do extinto Império Colonial Português sempre se assumiu como “província” do aparelho militar de Jakarta, entendido como uma espécie de Estado dentro do Estado e dotado das suas próprias razões de Estado, até para financiamento privado desse serviço público. Por outras palavras, Timor Leste sempre foi para os militares indonésios uma província em sentido etimologicamente romano, isto é, uma terra objecto de um pro vincere.

Volto a Dili. A estes grandes contentores importados pelo “state building” da governação global, com milhares de peritos, consultores, magistrados e professores, todos empacotadamente especialistas, como eu, na escrituração de frases que hão-de salvar a humanidade, mas aos quais falta, simplesmente, a humildade de procurarem descobrir a razão pela qual esta parcela da humanidade não foi, ou não quer, ser salva por muitos “papers” apátridas.  Por mim, confesso que só sei que nada sei.

Sobretudo, quando em Dili não falta nação, isto é, uma ideia de obra, mobilizadora do bem comum. Como não são raros os políticos experimentados em tacticismos, nomeadamente da guerrilha política. Aliás, também por cá não deixa de notar-se o lado negro da portugalidade, esta hiper-identidade, este excesso messiânico que leva a um exagero de frustração e até de depressão, sobretudo quando as expectativas da teoria se distanciam da prática das realizações. Também por cá ficou esta doença que levou Almada Negreiros a dizer qualquer coisa como a de sermos, nós, Portugal, um desgraçado país onde ninguém a ninguém admira e todos a determinados idolatram.

Se as elites da RDTL me permitissem um conselho, diria que importa moderar os ímpetos do tacticismo e passar para a estratégia, para um adequado inventário das reais potencialidades e das efectivas vulnerabilidades, a fim de evitarem que as primeiras não passem para o segundo termo, e, pelo contrário, para permitirem que as segundas se elevem a potencialidades, mas sem o jogo apaixonado dos poderes erráticos do tempo da resistência e da guerrilha e, sobretudo, o desperdício dos mesmos em partidocracia. Os portugueses pós-revolucionários, copiando os brasileiros, inventaram para o efeito o IDN e até chegou a esboçar-se uma listagem das potencialidades e vulnerabilidades do país que éramos. É o que sinto faltar aqui, bem longe da lógica autoritária modernizante dos estúpidos Estados de Segurança Nacional…

PS: A primeira imagem data de 1973, oriunda deste blogue de antigos soldados, que parece inactivo, mas onde até não falta o esboço de um dicionário de baikeno. A segunda é da minha autoria, de anteontem. O bronze que está na base do monumento não tem o nome de qualquer venerando figurão visitador de antes de 1975, mas o de António Guterres, do ano 2000. Muito justamente. Já agora, um grande abraço ao meu vizinho asiático Combustões, que resiste no Sião, testemunhando, como português antigo e português de sempre, que vale mais experimentá-lo do que julgá-lo.

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