Nov 16

Um fim de semana de muitos pèzinhos numa lama que perdeu o molde…

Claro que nunca sou capaz de desenhar, numa folha de papel em branco, uma linha recta perfeita. Claro que, por isso, recorro a instrumentos de aperfeiçoamento, como as réguas (regras, em sentido etimológico) e os esquadros (normas). Claro que sei que tanto o Estado como o Direito são meros normativos. Especialmente quando o Estado deixou de ser Razão de Estado e passou a ser Estado-Razão e o Direito passou do Decreto do vertical absolutismo à Lei vinda do Povo. Até porque também nunca houve Povo e, conquentemente, Democracia. Não houve nem vai haver. Ontem e hoje. Aqui e em qualquer lado, onde haja o dever-ser que é e esse transcendente situado, a chamamos justiça e que não se confunde com o burocrata que diz ser ele esse serviço em figura humana.

Mas o aparecimento do Estado resultou de uma operação de juridificação da política, quando deu direito a uma sociedade senhorial e civilizou uma comunidade guerreira, assumindo-se como o direito contra o poder, a paz contra a guerra. É um pouco de filosofia política, para enriquecimento cultural de sociólogos-ministros.
O Estado de Direito resultou de uma dupla operação : – juridificação da política – e constitucionalização do poder. Deu direito a uma sociedade senhorial; civilizou uma comunidade guerreira citações de minha mestra Blandine, que é francesa, judia e tudo).
O Estado de Direito equivale à velha expressão de Plínio, dirigindo-se a Trajano, quando aquele proclamava que inventámos um Príncipe para deixarmos de ter um dono. Para, em vez de continuarmos a obedecer a outro homem, podermos passar a obedecer a uma abstracção, utilizando as categorias de Georges Burdeau.
O Estado de Direito não é o império da lei, de acordo com essa tradução em calão que muitos fazem de “rule of law”. Porque “law” não é direito, nem “rule” é império. Acima da lei está o direito. Acima do direito está a justiça. E nem sequer a lei é ordem ditada de cima para baixo. Nem por uma maioria absoluta.
Descendo à terra ensopada pela necessária chuva de Novembro, vi outra coisa no plano do normativo. As declarações de Vieira da Silva sobre espionagem política são pior emenda que o soneto. Tenham calma, governantes! Ai de nós se os processos mais mediáticos em curso transformarem o Primeiro-Ministro num dilatório de apitos dourados e campanhas negras. Atingiremos o grau zero da futebolítica!
Aqui não há Mafia como na Itália. Nem terrorismo como em Espanha. É tudo um problema de competência, ou de falta dela… Não foi aqui que o processo das FP teve a mesma polícia, a mesma magistratura, o mesmo governo e a mesma presidência, como instituições? O juiz mais em evidência até não era simpatizante do principal arguido? Que raio de vírus afectou os aparelhos?
Depois, foi Berardo, uma visão anunciadora da nossa salvação. Segundo o comendador, petróleo não há apenas no Beato, é de Norte a Sul, mais do que no tal reino da Dinamarca, onde havia coisas pôdres. Até os ingleses, segundo tal paradigma de moral pública, já são mais inteligentes do que nós, ao arquivarem o Freeport. Consta que os sul-africanos ainda são mais inteligentes…
Chegou, depois, o ministro das forças armadas. E para Santos Silva, a líder da oposição, num discurso parlamentar verdadeiramente oposicionista, fez chantagem sobre o poder judicial. Ele, como ministro da defesa nacional, ao usar o heterónimo do Largo do Rato e ao pedir a condenação de polícias e magistrados judiciais e do Ministério Público, face a um processo em curso, não fez chantagem. Tecnicamente apenas “pressionou” a partir do vértice do estadão…
Depois deste exemplo de “majestas” ministerial, fui reler as belas páginas de Camilo Castelo Branco sobre “O Perfil do Marquês de Pombal”. Afinal, Sebastião José já voltou do desterro e, ao que parece, sempre foi defensor do “Estado de Direito e da democracia liberal”. Reli também o belo processo dos Távoras…
O ministro da defesa nacional veio assumir a suprema missão de mero defensor de quem o nomeou. Louvou, no caso da Casa Pia, que a justiça já tivesse resolvido o problema de políticos suspeitos, mas não teve uma palavra para defender as vítimas da pedofilia. Desta, pediu que se processassem os que escutaram, nada clamou contra os corruptos. A hierarquia tornou-se evidente. Foi pena.
Uns qualificam certas fugas como espionagem política, mas não se lamentam das outras, e vice-versa. É campanha contra campanha. Valeu-nos que, à noite, Queiroz deu um zero à Bósnia, homenageando a balcanização… Mas STJ e PGR parece que se entenderam.
Há uma sucessão de episódios que não reforçam a nossa dignidade. O primeiro-ministro diz que não quer contribuir para isso. O líder do PS não pode dizer o mesmo. Uma questão de heterónimos que confundem propaganda e discurso de justificação com o estadão.