Abr 04

você é engraçado, é pena ser tão radical

A verdadeira imagem do estado a que chegámos. Somos um estadinho dependente de super-Estados. Precisamos do cheque e ainda não ficámos chocados. Adoramos pirómanos-bombeiros.

A verdade: o memorando passou a ser superior à constituição. E 85% da nossa representação parlamentar subscreveu-o. A chamada ditadura dos factos.

A Europa inteira voltou hoje ao ritmo das três velocidades do tempo da ocupação romana. No topo, as colónias, para os cidadãos em plenitude, os do eixo. No escalão intermédio, os municípios, os que são dotados de alguma autonomia, embora com “apartheid”. Na base, as chamadas cidades estipendiárias, constituídas pela categoria ἰδιώτης, ou idiōtēs, os que apenas trabalham sem cidadania, ou, dito de outro modo, os que pagam mas não bufam.

Três parangonas, de um bom esquema de “agenda setting”. 1ª “Gaspar garante que suspensão de subsídios vigora só até ao fim do programa de ajustamento”. 2ª “Estamos perto do ponto em que maior parte do esforço» estará feito. 3ª A ida de hoje aos mercados foi um êxito. Podemos passar uma Páscoa feliz.

Mais uma última notícia: “Um idoso suicidou-se esta manhã com um tiro na cabeça na praça central de Atenas, provocando uma grande agitação entre as pessoas que passavam pelo local”. Logo a seguir, este comentário feliz para os povos do Sul: “Apesar da crise, a Grécia tem uma taxa de suicídio inferior à registada nos países do norte da Europa. Em 2009, a taxa de mortes por suicídio no país era de três por cada 100.000 habitantes, menos de um terço da média europeia, segundo a agência Eurostat”.

Li e reli este editorial. Ou a teoria da economia privada sem economia de mercado. Não é liberalismo, é apenas a continuação do salazarismo. Para a nossa vergonha.

Dizia há tempos uma alta figura de estadão para outro, pouco frequentador da Corte: “você é engraçado, é pena ser tão radical”. O primeiro figurante, excelente discursador de esquerda, converteu-se em consultor plural de várias parcerias, onde é ilustre parceiro pensador. E que bem comenta. O segundo nunca foi de esquerda, está farto da direita e defende os radicais do centro excêntrico. Confirmo: o situacionismo tem todo o interesse que os insatisfeitos se encaminhem para a utopia das margens. Mas pode acontecer que a maioria sociológica deixe de frequentar a esplanada do Bloco Central e procure saber o que é que a boneca tem dentro. Pode vir a mudança…

Para os devidos efeitos se recorda que a expressão esquerda moderna foi a qualificação que Cavaco Silva deu da respectiva liderança no PSD. Foi repetida a papel químico por Sócrates quando assumiu a chefia do PS e da nação. Só por estas duas razões é que Passos Coelho a não usou. Já estava gasta e teve a sorte de lhe chamarem liberal. Quando nunca o foi.

António Lobo Antunes, na revista “Visão”, faz o melhor elogio do situacionismo: “Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e ex-ministros a tomarem conta disto. Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar a ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem?”

Por acaso também há um parágrafo meu, de depoimento, na investigação sobre “O batalhão de Passos”. Sou apenas suave: “Revela uma falta de cultura de “civil service”. Isto é, conserva a habitual desconfiança dos políticos face aos mecanismos clássicos da administração pública, talvez porque sabem quanto a colonizaram, caindo na tentação gestionária de criação de sucessivos Estados paralelos, onde o ritmo da fidelidade acaba por superar o da competência dos modelos racionais-normativos”.

A literatura nunca se engana. Sobretudo quando se escreve com vida. A culpa apenas está naquela realidade que nem se apercebe quanto coincide esmagadoramente com a caricatura.

Antes colocavam-se no ministério os melhores nomes do Parlamento. Hoje, o ministério consegue ser pior do que a média do Parlamento que beira a mediocridade…As grandes mudanças só ocorreram quando o povo participou. Não se espere nada do Congresso, do Legislativo e do Executivo se o povo não estiver à frente.

O Parlamento é o espelho da nação. O PS e o PSD são espelhos um do outro. E o presidente, a mera consequência deste paralelograma de forças. O grande perigo está na eventual emergência de uma democracia sem povo. Se a partidocracia nos conduzir à democratura.

Más notícias para esta praia, com o espaço de acesso à Meseta quase desertificado: “”Espanha enfrenta uma situação económica de extrema dificuldade, repito, de extrema dificuldade, e quem não compreender isso está a enganar-se a si próprio” (Rajoy, hoje). Quanto melhor estiver o vizinho, menos mal estaremos.

Não, Zé Gomes Ferreira, não sou a favor do laxismo das ASAE, das polícias e das inspecções trabalhistas, com ministros e directores em arbitrário na aplicação das leis. Sou a favor de leis realistas, isto é, de menos e melhores, sem esta loucura da elefantíase legislativa, onde qualquer burocrata faz antologias de direito comparados, com traduções em calão. Mas arbitrário dos aplicadores políticos dá absolutismo.