Abr 28

Origens do Pensamento Democrático Português

ORIGENS DO PENSAMENTO DEMOCRÁTICO PORTUGUÊS

Conferência proferida na Casa Veva de Lima

em 28 de Abril de 1993

 

O gentil convite que me foi feito para que, nesta instituição, proferisse uma conferência sobre as origens de quem politicamente devemos ser (é isso o que eu entendo quanto às origens do pensamento democrático português), se, por um lado, me honra, eis que, por outro, me coloca numa posição particularmente incómoda.

Com efeito, perante os termos exactos da carta-convite que foi endereçada a terceiros, de cujo conteúdo sou, aliás, completamente alheio, e que, por portas travessas, me foi dado conhecer, eis que fui muito amavelmente atirado para o pelourinho dos iconoclastas do actual situacionismo.

Colocar um conservador, como muito narcisicamente me qualifico, nos terrenos movediços do anarquismo e do reviralhismo, é, na verdade, fingir que é verdade aquilo que paradoxalmente tende a ser uma das verdades do nosso tempo.

Na verdade, depois das sucessivas frustrações revolucionárias, pós-revolucionárias e contra-revolucionárias a retalho, temos de chegar à conclusão, imposta pela natureza das coisas, que só a tradição é revolucionária. Que as reformas no sentido da liberdade, da solidariedade e da justiça só são estruturantes, duráveis e enraizáveis quando a roda da mudança pode girar em torno do eixo dos valores permanecentes de uma dada comunidade histórica. Só com este enraizamento dinâmico, podemos revolucionar com autenticidade.

Daí, podermos dizer que quem quer conservar o que deve ser talvez tenha de revoltar-se contra todos aqueles que apenas pretendem conservar o que está, para, muito egoisticamente, conservarem os privilégios adquiridos pelo assalto que, sem legitimidade, fizeram à propriedade e ao poder.

É evidente que gostaria de ser bafejado pela virtude da insolência e de ter a coragem de ser minoria. Contudo, o meu inconformismo não consegue pisar essas raias da coragem e, infelizmente, não posso dizer que vivo como penso sem pensar como vivo, dado que nos últimos tempos tenho aderido ao partido dos abstencionistas face à militância cultural e política.

Direi apenas que o meu inconformismo não passa de um mero dever de ofício, dado que apenas sou um desses profissionais universitários a quem a comunidade paga para pensar de forma livre. Portanto, exercer o inconformismo não passa de uma simples contrapartida contratual do meu trabalho por conta de outrém ou do meu trabalho dependente, conforme tenho de escrever na declaração do IRS.

Acontece também que tenho a felicidade de ser um amador da minha profissão. Com efeito, como professor, não tenho apenas um posto de vencimento, dado que professo, dado que tenho paixão de ensinar, aprendendo, e de aprender, ensinando. Além disso, porque só ensino aquilo que penso e com o entusiasmo de poder exprimir aquilo em que acredito, julgo não ter ainda atingido as raias da intelligentzia, desse semi-proletariado intelectual para onde costumam ser marginalizados os professores e donde normalmente se recrutam os intelectuais orgânicos e os bacilos revolucionários.

Não foi contudo para analisar os meandros da intelligentzia portuguesa para que aqui fui chamado.

Vim aqui para vos manifestar uma antiquíssima tese, nitidamente contra-revolucionária: que esta democracia, que fingimos ser, nunca se poderá enraizar se não se assumir como uma democracia portuguesa. Por outras palavras, para vos dizer que já chegou a hora de encerrarmos o ciclo da jovem democracia e de redescobrirmos as constantes plurisseculares do nosso consensualismo. Para portugalizarmos a democracia, pensando em português e para portugueses as formas de polis feitas à nossa imagem e semelhança.

Isto é, chegou a hora de vencermos os nossos complexos de inferioridade que, para uma determinada geração, transformaram a democracia numa jovem democracia que devia imitar modelos estrangeirados polidos, cristãos e civilizados, muito à maneira dos iluministas, sempre à procura no mais além dos Pirinéus de um paraíso terráqueo ou de um sol da terra.

Precisando melhor esta posição, direi que todos os partidos políticos portugueses, criados ou implantados a partir de 1974, foram inspirados em modelos programáticos estrangeiros ou estrangeirados, não reflectindo a autonomia cultural portuguesa e as nossas específicas tradições políticas.

Se noutras épocas da nossa história predominou a influência das práticas políticas e dos modelos programáticos ingleses e franceses, a jovem democracia portuguesa posterior a 1974 foi, sobretudo, marcada pelos modelos ideológicos alemães e pelos estilos organizacionais franceses.

O PS foi fundado nos arredores de Bona, sob os auspícios de Willy Brandt, mas sem adoptar do SPD o pós-marxismo de Bad Godesberg.

Sá Carneiro, ao assumir-se em 1971 como social democrata, invocou a prática do SPD de Helmut Schmidt, isto é quis ser um SPD pós-marxista.

O próprio CDS inicial copiou a sigla do movimento de Lecanuet, adoptou um estilo giscardiano e procurou firmar-se ideológicamente citando Konrad Adenauer.

É talvez esta inspiração estrangeirada que tem obrigado os sucessivos partidos a ter que meter as ideologias na gaveta quando, no exercício da actividade governativa, são obrigados a largar do céu dos princípios e a sujar as mãos na realidade. É também talvez por causa disto que alguns falam em pragmatismo e outros anunciam, com cerca de duas ou três décadas de atraso, o crepúsculo ou fim das ideologias.

Assim talvez se compreendam as contradições doutrinárias daquele partido que obteve em Portugal duas maiorias absolutas sucessivas: começou em 1985 por declarar-se social democrata à alemã, à maneira de Bernstein, para, depois, se assumir como da esquerda moderna (quando dialogou e integrou alguns dos líderes do Clube da Esquerda Liberal), antes de se filiar na Internacional Liberal e de proclamar como do Centro, aberto à direita, à esquerda, ao centro e aos extremos da direita e da esquerda que se convertessem ao pragmatismo do apoio ao mesmo líder e que sufragassem o governo da modernização de Portugal.

Não há dúvida que a ascensão de Cavaco Silva ao poder maioritário exprimiu uma espécie de revolta popular contra os excessos ideológicos da revolução e da pós-revolução. Só que o excesso de anti-ideologia pode vir a ser tão nefasto quanto o excesso de ideologismos esquerdistas.

Com efeito, a moda anti-ideológica do cavaquismo trouxe consigo uma onda de ideologias inequivocamente ultrapassadas, desde o positivismo utilitarista do século XIX, que até tinha como divisa a ordem e o progresso, à ideologia tecnocrática deste século.

Não será este o bom caminho para a política portuguesa, principalmente quando somos simples parcela quase fungível do espaço supra-estadual e supra-nacional daquela Comunidade Europeia que não quer apenas construir um mercado comum ou um mercado único, mas também uma união política.

Porque se não praticarmos o nosso direito à diferença, reforçando a identidade cultural dos portugueses, mesmo no domínio das ideologias e das doutrinas políticas, corremos o risco de sermos colonizados por cosmopolitismos ideológicos e doutrinários sempre à procura de espaços culturais vazios.

Corremos o risco de continuarmos a ser mero receptáculo de vulgatas ideológicas estrangeiradas, chamem-se positivismo, nacionalismo, marxismo, social-democracia, ecologismo ou neo-liberalismo. Isto é, meros sucedâneos do caixote de lixo da história ou espaço laboratorial exótico para a experimentação de remédios que os autores originais não querem aplicar nos respectivos espaços culturais.

Corremos até o risco de nem sequer nacionalizarmos essas tendências importadas, perdendo definitivamente o direito a pensarmos com a nossa própria cabeça, convidando outros à pior das formas de agenciamento colonizador, como é a colonização cultural.

E o pior é que fazemos isto ao mesmo tempo que proclamamos o ecologismo da defesa do buraco do ozono ou da conservação da paisagem, esquecendo que a primeira exigência de uma autêntica ecologia é a reivindicação do direito à diferença cultural, com a consequente necessidade de cada pensamento ter uma pátria, de cada democracia e de cada Estado se inserirem no chão moral da história.

Porque também neste caso só é moda aquilo que passa de moda, só é novo aquilo que se esqueceu..

As tradições democráticas portuguesas datam dos alvores da nacionalidade. Com efeito, Portugal nasceu de uma Reconquista cristã marcada pela aliança entre o rei e o braço popular, dos municípios burgueses e rurais aos agricultores livre, donos da própria terra minifundiária.

São esses factores democráticos da formação de Portugal que levaram às Cortes de 1254, já participadas pelo povo, e à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa, na sequência de Aljubarrota e já com umas Cortes de Coimbra, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab omnibus decideri debet (o que a todos dsz repseito por todos deve ser decidido…).

Isto é, o Estado Nação dos portugueses nasceu da Comunidade para o Poder através de uma auto-determinação sustentada por proprietários livres, rurais e burgueses. E mesmo quando o Estado Poder foi ocupado pela degenerescência dos imperialismos e soberanismos absolutistas, a Comunidade sempre soube conservar o minifundiarismo da sociedade civil, considerando o Estado Poder como algo de estranho e de estrangeiro…

Assim, a restauração da nossa independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular que serviram de inspiração a todos os consensualistas para resistirem ao absolutismo iluminista, monárquico ou jacobino.

Até a Revolução Liberal de 1820 foi, pelos primeiros revolucionários, qualificada como simples Restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses.

Mesmo certas facções do tradicionalismo miguelista procurou a legitimidade da Constituição Histórica, com José Acúrsio das Neves, Ribeiro Saraiva e o Visconde de Santarém convocando as reprentativíssimas e legitimíssimas Cortes de 1828.

Também a partir de 1852, o liberalismo procurou regenerar-se e nacionalizar-se e o inicial republicanismo de Henriques Nogueira e Teófilo Braga, mergulhou as respectivas raízes no medievalismo democrático.

No seio da própria República gerou-se a Renascença Portuguesa, com o saudosismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo Coimbra, enquanto Fernando Pessoa procurava um nacionalismo liberal, o ser liberal dentro de um conservantismo português, animado pelas saudades de futuro de um quintimperialismo cultural.

Impõe-se proclamar, de uma vez por todas, que nem Portugal nem a Democracia nasceram em 1974.

Se a nossa geração não enraizar a democracia no modo português de estar no mundo, o sistema democrático continuará como um simples conjunto de regras do jogo, como mero sistema processualista, como mero Estado de Direito Formal, quando é necessário, cada vez mais, uma democracia de cidadãos, civicamente livres e civicamente responsáveis, quando é necessário passar do proceso à substância e da forma ao conteúdo.

Portugal corre o risco de continuar a ser democraticamente colonizado por ondas e modas ideológicas que podem agitar a classe política e alguma nomenklatura dependente do poder, mas que não chegam ao país profundo. Àquele antiquíssimo Estado Comunidade ou Estado República indiferente às desventuras do Estado Poder ou do Estado Principado que, voltado sobre si mesmo, vai resistindo.

Uma democracia portuguesa e um Estado de Direito Democrático pensados em português. Precisamos que a Comunidade, a Res Publica faça do Poder alguma coisa de seu. Precisamos que o Estado deixe de ser um estrangeiro que cobra tributos e, de vez em quando, dá algumas benêsses …

 

Voltando ao fio do meu discurso e fazendo uma pequena paragem em 1640, importa sublinhar que os nossos restauradores da independência nunca precisaram de utilizar, nos respectivos textos de combate e de teorização, expressões como Estado e Soberania, ao contrário do que fizeram outros portugueses adeptos do filipismo como Salgado Araújo e Miguel de Vasconcelos.

A teoria básica dos nossos teóricos da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, permaneceu ancorada nas teses da escolástica peninsular que, a partir de Francisco de Vitória, Menchaca e Covarrubias, já tinham dado argumentos para as célebres Alegações de Direito, de 22 de Outubro de 1579, elaboradas pelos juristas Félix Teixeira, Afonso de Lucena, Luís Correia e António Vaz Cabaço, onde, sustentando-se os direitos de D.Catarina, se defendia o princípio de à república pertencer escolher o rei, trespassando nele o poder, já que a liberdade, por direito natural, pertenceria à comunidade.

Estes fundamentais factores democráticos da formação de Portugal, avessos à teocracia, ao concentracionarismo e ao absolutismo, inseriam-se numa corrente europeia consensualista que, depois de ser magistralmente reinterpretada por autores como Bento Espinosa, Francisco Suarez e Johannes Althusius, vai servir de fundamento para uma precoce manifestação da soberania popular no nosso 1640, da mesma maneira como levou ao separatismo das Províncias Unidas, à partida da Mayflower e à constituição da Confederação Helvética.

Com efeito, o Primeiro de Dezembro, menos do que uma simples secessão face a Madrid, foi um grito de revolta contra as tentações absolutistas manifestadas por Olivares e uma última tentativa de restauração das teses consensualistas, tanto em Portugal como nos restantes reinos da Hispania.

1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma “portugalização” de toda a Espanha, para utilizarmos uma imagem de Miguel de Unamuno, aplicada noutro contexto. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789.

Infelizmente, vai acabar por triunfar a Razão de Estado à maneira de Richelieu que, entre nós, atinge o seu clímax com Sebastião José de Carvalho e Melo que logo tratou de taxar os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no index do despotismo esclarecido, donde ainda não foram retirados.

Pode parecer paradoxal, mas os nossos teóricos da Restauração, entre o soberanismo e o federalismo, optaram pelo segundo, respeitando aquela profunda tradição democrática portuguesa, que levou à institucionalização da nossa polis, de baixo para cima.

Com efeito, Portugal começou por ser uma stateless society, isto é, entre nós, o Estado Comunidade, o Estado enquanto res publica, precedeu o Estado Aparelho de Poder, o principado.

Aliás, uma das primeiras teorizações do Estado em Portugal, com o Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D.Pedro, pensou a República como uma espécie de concelho em ponto grande, uma aliança entre o Príncipe e a comunidade da sua terra. De qualquer maneira, é inequívoco que antes de se ter estruturado ou construído o Estado, já estavam enraizadas as comunidades concelhias e outros corpos intermediários.

Isto é, a comunidade política portuguesa, a comunidade dos portugueses, o nosso pacto de união, precedeu, em muitos séculos, o pacto de sujeição que tivemos de constituir face a um soberano absoluto.

Com efeito, antes de Maquiavel ter inventado o nome de Estado e de Bodin ter estruturado o conceito de soberania, Portugal, como organização política dos portugueses, já tinha mais de quatro séculos de existência e uma revolução clarificadora, como o foi a de 1383-1385.

Os que continuam complexados pela circunstância de sermos uma jovem democracia, não deviam desconhecer este nosso antiquíssimo enraizamento constitucional que constituiu o alento fundamental para as regenerações de 1383-1385, 1640, 1820, para não falarmos de outras que se lhe sucederam em esperanças e frustrações.

 

Julgo fazer parte de uma dessas tribos portuguesas dos vencidos da vida que continuam a acreditar que é possível uma democracia portuguesa, através de uma releitura tradicionalista do processo de resistência nacional.

Para tanto, importa, por exemplo, que o nosso conservadorismo deixe de ser conservador do que está e assuma a autenticidade de apenas conservar o que deve ser. Da mesma forma, conviria que os nossos revolucionarismos e reformismos tivessem a humildade de se enraizarem no chão moral da nossa história e que não sofressem daquele habitual desviacionismo que os transforma, muito pós-revolucionariamente, nos mais reaccionários defensores do statuquo.

Para tal, torna-se imperiosa a ultrapassagem das categorias fratricidas que nos levaram à última e permanecente guerra civil, onde os tradicionalistas não puderam apresentar uma solução superadora da dicotomia miguelistas-pedristas que, até 1974, se reproduziu em salazaristas-antifascistas.

Julgo que só poderemos reencontrar o consensualismo perdido se reassumirmos o profundo republicanismo das nossas teses tradicionalistas, bem como o activo sentido anti-soberanista do nosso sentido de independência.

Assim sendo, pensando o Estado-Principado como algo que depende do Estado-República e concebendo este segundo de forma federativa, como um concelho em ponto grande, também temos de exigir uma comunidade maior, à maneira da Res Publica Christiana ou do Jus Gentium.

A chamada soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível pertence ao leviatânico Estado Moderno que expropriou os reinos, os únicos legítimos herdeiros da civitas da República Romana e da polis ateniense.

O meu reino ou a minha república é doutro mundo. De um mundo não moderno, chamem-lhe anti-moderno ou pós-moderno. É o reino como res publica, o reino que, nos séculos XII e XIII, inspirado em Aristóteles e Cícero, se revoltou contra a dominância do Papado e do Imperium e proclamou que rex est imperator in regno suo.

O reino de S. Tomás e do nosso Infante D. Pedro, o reino dos comuns, feito de um principe com toda a comunidade da sua terra.

Este reino tinha um Principe, tinha um poder supremo, uma vontade de independência. Mas o poder supremo era da mesma natureza dos poderes que lhe estavam abaixo, onde o vértice era apenas uma parte da pirâmide do poder da polis, uma parte que, sendo parcela do todo, era, não obstante, representante do próprio todo.

Acontece que este reino foi, a partir do absolutismo teocrático, expropriado pelo renascimento do Império, num processo que passou da república teocrática dos luteranos ao L’État c’est moi dos despotismos esclarecidos, continuando a mesma natureza despótica, quando se substituiu o rei absoluto pelo povo absoluto, da Revolução francesa à Revolução Soviética.

Os Estados a que chegámos na Europa, na Europa das potências e dos Estados em movimento, ainda são quase feudalizados por projectos imperiais frustrados. Da Espanha de Carlos V, à França de Napoleão. Da Alemanha de Hitler à Inglaterra de outras procuras de Império no além mar. Da Rússia sonhando-se polícia da Europa a outros Impérios espirituais ou económicos.

Com efeito, faço parte de uma família mental que tem uma matriz cultural perfeitamente avessa à chamada herança tricolor, considerando que a dita Revolução mais não fez do que perpetuar o absolutismo, ao substituir um rei de direito divino por abstractas assembleias tão absolutistas e tão terroristas quanto os anteriores detentores da Bastilha.

Assumo, na verdade, a herança contra-revolucionária, não na perspectiva dos que defendem uma revolução ao contrário, mas, bem pelo contrário, de acordo com os que pugnam pelo contrário de uma revolução.

Neste sentido, a minha estirpe contra-revolucionária tem mais a ver com o conservadorismo tradicionalista (que à maneira de Pessoa era liberal dentro do conservantismo) de Burke e Tocqueville do que com a besta esfolada do caceteirismo intelectual de José Agostinho de Macedo. Isto é, no âmbito daquela guerra civil político-cultural que, no contexto da civilização ocidental, foi desencadeada a partir de 1789, a concepção do mundo e da vida a que adiro não aceita nenhum dos absolutismos em confronto, seja o progresso da revolução, seja a reacção que dele nasceu, advogando a superação dialéctica proposta pelos moderados dos dois lados dessa barricada.

A perspectiva consensualista do pré-revolucionário António Ribeiro dos Santos é idêntica à moderação dos miguelistas António Ribeiro Saraiva e José Agostinho de Macedo ou dos liberais Sivestre Pinheiro Ferreira e Alexandre Herculano, tal como Burke, Tocqueville e os federalistas americanos se identificam no mesmo ambiente mental que desaguou neste século em Ortega y Gasset, Albert Camus, Hannah Arendt ou Raymond Aron.

Com efeito, a Revolução Francesa mais não é do que um simples episódio de uma mais ampla Revolução Atlântica desencadeada pela Revolução Inglesa e continuada pela Revolução Americana. Aquela Revolução Atlântica que marca o actual modelo ocidental de Estado Constitucional ou de Estado de Direito, por oposição aos vários desvios totalitários contemporâneos, e que já estava presente nas constituições históricas do Reino Unido ou do Portugal anterior ao pombalismo.

Acontece também que muitas das bandeiras que hoje se desfraldam como originárias de 1789 têm raízes bem mais remotas. É o caso dos Direitos do Homem, inequivocamente estabelecidos pelo cristianismo, ou da soberania popular e nacional, teorizada pela escolástica e consagrada pela nossa Revolução do 1º de Dezembro de 1640.

Na verdade, tento ser fiel a essa concepção contra-revolucionária que considera que todas as grandes revoluções são, ao mesmo tempo, pré-revolucionárias e pós-revolucionárias. Acredito que os processos revolucionários, os factos desencadeadores das revoluções, acabam por diluir-se num todo pós-revolucionário, onde o que estava antes se mistura desajeitadamente com aquilo que, de novo, tentou construir-se, restando sempre um hibridismo, onde também confluem algumas ideias contra-revolucionárias, no sentido de uma revolução ao contrário.

Atentemos no exemplo da chamada revolução portuguesa posterior a 1974, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir entre nós. O que resta é um hibridismo onde entram os cravos de Otelo, o terror de Vasco Gonçalves e as atitudes contra-revolucionárias de Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e António Ramalho Eanes, donde resultou o 19 de Julho do cavaquismo. Isto é, treze anos depois do 25 de Abril, não voltámos para trás, nem demos um salto em frente. Pura e simplesmente, cedemos ao princípio da continuidade histórica das comunidades humanas, onde a revolução constitui um mero interregno que vai acumular-se à experiência histórica.

Por tudo isto é que o cavaquismo tem inúmeras semelhanças com outros momentos pós-revolucionários da nossa história, como o cabralismo, o fontismo e alguns instantes da Primeira República. Por tudo isto é que muitos críticos de costumes de antanho, como Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão ou Raul Brandão permanecem vivos nas respectivas farpas. Nas pós-revoluções há sempre cadilhes, belezas e barretos ao lado de conselheiros acácios, antónios marias e fradiques. . .

Esta não é, com certeza, a perspectiva daquela esquerda, herdeira da jacobina memória tricolor, que continua a definir-se politicamente pela procura de uma milenarista revolução. Essa tal esquerda que coloca a Revolução Soviética de 1917, o Maio de 1968 e o 25 de Abril numa mesma linha recta iniciada em 1789, sofre hoje da disfunção civilizacional da comemorativite, provocada por uma espécie de vazio de revolução. Isto é, essa tal esquerda não tem, no tempo presente, paraísos terrestres revolucionários que lhe sirvam de modelo.

Com efeito, os cravos de Abril murcharam, a longínqua China do Maio de 1968 transformou-se no massacre de Tian Am-men 1989 e o 1917 de Lenine e Estaline está hoje inventariado ao lado daqueles gulags que ainda permaneciam com Brejnev e de que húngaros, polacos e até russos tentam libertar-se através de uma revolução nitidamente contra-revolucionária, no sentido do contrário de uma revolução.

Compreende-se, pois, que essa esquerda , frustrada pelo tempo presente, tenha que procurar no passado o respectivo oxigénio existencial. Passou a ser o ontem a oferecer-lhe os necessários amanhãs que cantam.

Filiado nestes princípios, poderei dizer que por detrás das aparências, a democracia que vamos tendo e fingimos ser, se vão chocando contradições decadentistas que poderão volver-se, de um momento para o outro, em profunda crise política. O que acontecerá quando imensas revoltas individuais, moralmente assumidas pela interioridade, se incendiarem sociologicamente e quebrarem o conformismo ao abrigo de um qualquer pretexto político.

Durante séculos, isto é, antes de 1986 e também antes de 1974, quando falávamos em crise política, já tínhamos tipificada, pressupondo uma ou mais das seguinte coisas:

-num potencial golpe de Estado promovido por forças militares ou militarizadas;

-numa eventual ruptura de abastecimentos em bens alimentares ou em recursos energéticos;

-numa situação de ruptura financeira, provocada pelo defice orçamental ou pela dívida externa;

-numa invasão externa ou na participação numa guerra internacional;

-numa eventual conspiração de forças ocultas (jesuítas, maçonaria, extrema-direita ou PCP);

 

Portugal como o foi em 1974 ou em 1985 já não existe.

Com efeito, a adesão à Comunidade Europeia, com a consequente internacionalização da nossa economia, da nossa sociedade e da nossa segurança, fez terminar o ciclo do Portugal Velho, surgindo, mais do que um Portugal Novo, um Novo Portugal. Com efeito, a verdadeira alteração das circunstâncias existenciais sobre as quais pode realizar-se a ideia de Portugal (e Portugal é sempre uma ideia mais as respectivas circunstâncias), não foi provocada pelo fim do Ciclo do Império, mas sim pela integração da república Portuguesa no seio da Comunidade Europeia.

Isto é os mais determinantes factores do poder político já não são intra-nacionais. Dependemos do índice Nikei, da taxa de juro do Bundesbank, dos acsos de uma reunião do GATT sobre os texteis ou o calçado, do preço das alfaces francesas, dos tomates italianos ou do bacalhau da Noruega. Somos definitivamente o que podemos comprar para comermos num dos hipermercados de Alfragide ou da quinquilharia electrónica comerciada por ismaelitas.

Dependemos da segurança de Marrocos ou de uma qualquer revolta das nações dependentes do Estado espanhol. Para deslocarmos expedicionários para Moçambique voamos num avião russo e no cantinho dos nossos lares vamos zapando canais de todo o mundo à procura de informação ou divertimento.

Isto é, a soberania una, inalienável e indivisível que, muito pleonasticamente, consagramos nos textos constitucionais, transformou-se em mero espaço de gestão de interdependÊnciasd, dependências e efectivas obediÊncias, nomeadamente quanto às decisões directamente vinvulativas, emanadas de Bruxelas, de Estrasburgo e dos Tribunais Europeus.

Não vamos ter, a curto prazo, golpes de Estado, rupturas de abastecimento, espectros de bancarrota nem invasões externas. O 25 de Abril e as suas consequências subepisódicas, nomeadamente o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro, foram, talvez, os últimos acontecimentos determinados maioritariamente por factores domésticos de poder.

Não é por acaso que começamos a falar mais de segurança do que de defesa e não será de estranhar, se continuarem as tendências para a consideração da inutilidade do serviço militar obrigatório, que o instrumento mais forte em termos de forças armadas sejam as forças militarizadas…

Como escrevi, a terminar um livrinho que editei em 1986:

Importa que os portugueses reencontrem a tradição democrática portuguesa. Que deixem de sentir a democracia como a adaptação de um modelo estrangeirado, como, de certa maneira, aconteceu com o nosso demo-liberalismo entre 1820 e 1926. Importa chegar à conclusão que só é novo aquilo que se esqueceu. para além das Revoluções e dos sucessivos situacionismos, há o mesmo povo, com as suas grandezas e misérias. Quem reler o Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins, quase encontra os mesmos dramas político-pessoais perante outras circunstâncias políticas e sociais.

Encontra a mesma nação à procura do tempo perdido. Depara com a contradição permanente de uma comunidade de destino que teve direito a uma democracia portuguesa que gerou o municipalismo, a participação popular em Cortes em 1254, o primeiro Estado pós-feudal da Europa em 1385 e a primeira aplicação revolucionária das teorias da soberania popular em 1640. Uma democracia portuguesa que o absolutismo veio decepar, sobretudo, a partir do MarquÊs de Pombal, impedindo também que o demo-liberalismo posterior a 1820 pudesse coincidir com a tradição portuguesa.

O mesmo povo desta década de oitenta, traumatizado pela sucessão de absolutismos, ainda não conseguiu superar as consequências de quase meio século de autoritarismo, abruptamente interrompido por uma revolução que quase nos lançou numa ditadura comunista.

Importa esconjurar fantasmas e assumir a necessária libertação cívica. Uma democracia de cidadãos não pode consolidar-se se as sementes totalitárias não forem eliminadas.

Não vale a pena alimentar cesarismos, que sempre conduziram ao desespero, nem considerar a luta política como a continuação da guerra civil por outros meios…

Fev 01

Carta a Manuel Monteiro

Caxias, de Fevereiro de 1993

Meu caro Dr. Manuel Monteiro,
Presidente do actual CDS/PP e
legal sucessor de uma instituição
que foi apenas chamada
Partido do Centro Democrático Social:

Um dos problemas socialmente existenciais do cidadão subscritor desta carta prende-se com a circunstância do mesmo ainda estar simbolicamente inscrito numa instituição designada Partido do Centro Democrático Social. Esse problema pretende ser resolvido com esta carta-ruptura.
Com efeito, o cidadão em causa pretende exercer um dos seus direitos fundamentais que é pedir a desfiliação do CDS, invocando o princípio geral de direito sic rebus, sic stantibus. Não o faz, contudo, à maneira dos divórcios litigiosos, onde o amor-ódio costuma embrenhar-se em pretextos de faca e alguidar, sejam decisões congressistas ou actos pessoais de ingratidão da liderança mais recente.
Com efeito, a minha relação com o CDS continua a ser a de pleno amor institucional, só que esse amor pertence a um passado que já não há, pelo que não encontro, no arsenal individual de frustrações que actualmente tenho disponível, nenhuma bojarda de ódio susceptível de ser arremessada aos actuais detentores do poder no partido.
Antes pelo contrário: compreendo-os, respeito-os e até tenho por eles uma sincera estima. Só que o actual presente do partido, bem como o futuro que lhe vislumbro, nada tem a ver com as minhas crenças e as minhas concepções do mundo e da vida.
Por outro lado, não estou desiludido da luta política, dado que a mesma me continua a entusiasmar e também não renego ainda poder vir a desenvolver certa sociologia da esperança nesses domínios.
Tudo isto para dizer, muito formalmente, que, ao sair, não o quero fazer de mal com o Dr.Manuel Monteiro e de mal com aqueles que agora fazem a imagem e o combate do que até hoje foi, ainda que apenas simbolicamente, o meu partido.
Quero também acrescentar o seguinte: porque de forma não nominalista, mas substancial, continuo democrata-cristão, e cada vez mais democrata-cristão, tenho de ser cada vez menos liberal e cada vez mais libertacionista, cada vez mais nacionalista e cada vez menos soberanista, cada vez mais tradicionalista e cada vez menos conservador. Logo, não posso aceitar o maniqueísmo dos que falam numa fronteira mítica entre capitalismo e socialismo, entre o Estado e a Sociedade e entre Portugal e a Europa.
Porque depois deste globalismo do fim da guerra fria e da integração na Comunidade Europeia, nem libertar pode ser construir o liberal com o martelo da injustiça nem conservar o que está pode confundir-se com conservar o que deve ser. Logo, quem não entende que a justiça é o novo nome da igualdade e a continua a reduzir à comutação, esquecendo que a mesma tem também de ser justiça distributiva e justiça social, está a admitir que pode haver liberdade sem igualdade e libertação individual sem solidariedade, o que pode ser de muita outra doutrina, mas não é certamente da democracia-cristã.
Além disso, no plano tribal, não só estou, sociologicamente, na outra margem, face à imagem das forças vivas do actual CDS, como, no plano geracional, perdoem-me a ironia, pertenço àquele mundo trintão e quarentão contra o qual, muito freudianamente, se revolta o PP, quando tenta fazer uma pretensa conspiração entre os avós e os netos.
Isto é, quero tentar comprometer-me, muito evangelicamente, com a memória do sofrimento, em vez de alinhar como homem de sucesso, e prefiro assumir a condição de pai, em aliança com os filhos, sem esquecer os pais dos meus pais e os filhos dos meus filhos.
Um último parágrafo para dizer que não é o cavaquismo nem o anti-cavaquismo que estão por trás destas linhas. Nenhum dirigente, e, muito menos, nenhum insigne apoiante, do actual CDS tem legitimidade política ou pergaminhos morais para me poder acusar nesse domínio, dado que os denunciei quase in ovo, frontal e publicamente, e não me vejo a desaguar no oceano de águas turvas do situacionismo sistémico.
Enquanto não surgirem novas alternativas e se não modificarem as circunstâncias, continuarei o meu regime de votação sob o cavaquismo: a abstenção consciente ou o voto moral no partido que efectivamente liderar a oposição global à decadência de Portugal, pela democracia, pela justiça e pela liberdade da pessoa.
Com sincera admiração e velha camaradagem

José Adelino Maltez,
até à subscrição supra, dominus do cartão nº 110603136 do CDS

Dez 18

Carta a Constança Cunha e Sá

Caxias, 18 de Dezembro de 1992

Exª Senhor Director de O Independente
(ao cuidado da jornalista Constança da Cunha e Sá)

Mais uma vez, graças à irónica pena da jornalista Constança da Cunha e Sá, uma boca desgarrada da minha autoria, transportada por um terceiro, muito “habitué” nestas intermediações sobre a minha apagadíssima figura de ex-dirigente do CDS, surge nas “independentes” páginas de acompanhamento da vida interna do partido em causa.
Para uma adequada informação, gostaria de acrescentar:
-conservo a filiação no CDS, em cartão assinado em 1983 pelo Dr.José Vieira de Carvalho, mas, desde 1988, que pedi, ao Professor Freitas do Amaral, a formal suspensão da militância, atitude que não alterei com a subida ao poder da actual direcção;
-confirmo ter-me passeado pelo último comício, onde revi alguns amigos, mas onde nem por isso me converti ao actual estado de coisas de um partido, onde há quatro anos não tenho intervenção;
-conforme as cartas que tenho mandado ao Dr.Manuel Monteiro, continuo radical quanto aos desvios do partido face à perspectiva justicialista da democracia-cristã e, como também sou um radical europeísta (até sou o autor da proposta de modificação dos estatutos do partido que o fazem formal defensor da “união política da Europa”), não participei na última brincadeira referendária, até porque, em vez do não ou do nim face a Maastricht, optaria por um claro sim, conforme o tenho demonstrado em escritos, entrevistas e outras intervenções públicas que, apesar do público restrito que lhe acedeu, não deixam de ser públicas e bem anteriores ao referendo do CDS e à cimeira de Edinburgo.
Isto é, conservo-me como um radical democrata-cristão que considera possível a conciliação de um radical nacionalismo português, com um radical europeísmo, dado considerar que o “dividir para unificar” da construção comunitária poderá afectar potências herdeiras de impérios europeus frustrados, mas não antiquíssimas Nações-Estado como a portuguesa, necessariamente solidária com todas as nações sem Estado de uma Europa que eu gostaria e hei-de ver internamente descolonizada, desde a Ilha do Corvo até Vladivostoque.
A boca que me atribui e que não renego é tão radical na sua ironia quanto a crónica da senhora jornalista. Se outra ironia, a do destino, nos tivesse feito cruzar em tal comício, até poderia acrescentar à mesma jornalista-cronista que, em tal acontecimento social, só bati palmas quando o Manuel Monteiro fez justiça ao Narana Coissoró.
Se o CDS continuar nesta senda, em eficaz aliança com certos opinion makers de O Independente, desejarei sinceras felicidades pessoais ao jovem e corajoso líder, mas, parafraseando o Cardeal Retz, serei obrigado a dizer que, para permanecer radicalmente fiel às minhas crenças – democratas-cristãs, nacionalistas e europeístas – e à estratégia que, enquanto dirigente do CDS, entre 1985 e 1988, sempre defendi, terei de votar noutro partido: naquele que menos possa trair as minhas concepções do mundo e da vida. Apenas espero pelo próximo Congresso do CDS para resolver o problema do cartão nº 110603136 que, apesar de tudo, gostaria de conservar, mesmo com violações da disciplina partidária.

 

Mar 23

Carta a Manuel Monteiro

Lisboa, 23 de Março de 1992
Meu caro Manuel Monteiro,
Exmº Senhor Presidente do CDS

Dirijo-me tanto ao Presidente do Partido de que ainda sou filiado, mas na irregular situação de militância suspensa, formalmente comunicada ao então Presidente Diogo Freitas do Amaral lá para os idos de 1988, como ao camarada de muitos combates antigos.
Escrevo-te em cima do calor do X Congresso, onde, sem ser basilista nem gostando pessoalmente do Dr.Basílio, apoiei conscientemente a opção “começar de novo”. E, a este respeito, quero dizer-te que, apesar de não fazer parte das listas dirigentes do mesmo Dr.Basílio, comprometi-me substancialmente com a respectiva candidatura e deixei que o meu nome por ele fosse instrumentalizado, com toda a lucidez. Aliás, depois do que se passou, se houvesse uma repetição do Congresso, seria mais do que reincidente, pois, além de sujar as mãos, daria um activo contributo organizacional a tal campanha, dando por finda a suspensão da minha militância e candidatando-me a congressista.
Sou filiado no partido desde o dia seguinte ao V Congresso, mas sou militante político da direita desde os meus bancos do liceu. Tenho 25 anos de vida política, 40 de idade, cinco anos de militância activa no CDS e 9 de filiação no mesmo partido. Isto é, não é pelo facto de não estar filiado num partido que me transformo num desempregado político.
Aliás, dedico toda a minha vida profissional à política, dado que sou e continuarei a ser professor de ciência política, misturando a paixão com a própria profissão, onde me pagam para todos os dias pensar cientificamente na própria política.
Importa dizer que nunca fiz parte de qualquer outro partido ou associação política, antes e depois do 25 de Abril, apesar de ter ajudado à implantação do Partido Popular Monárquico e de ter colaborado activamente com o Dr.Francisco Sá Carneiro, como o podem atestar as minhas participações no “Povo Livre” e o exercício das funções de adjunto do Ministro Magalhães Mota no VI Governo Provisório no ano de 1976.
Fui, aliás, um dos assessores que estiveram nas conversações que levaram à criação da A.D. e exerci funções de adjunto em dois governos da mesma coligação governamental.
Convém proclamar que não estou disponível para integrar ou para colaborar com o PSD do Professor Cavaco Silva.
O meu “cursus” no C.D.S. é conhecido. Comecei como dirigente de freguesia nos Olivais. Subi à Comissão Política no Congresso de Aveiro, através de um combate de bases e de uma activa participação no Grupo de Ofir. Integrei a primeira Comissão Directiva do Professor Adriano Moreira e, depois do Congresso do Porto, continuei na Comissão Permanente.
Com o regresso do Professor Freitas do Amaral, depois de me libertar de todos os cargos directivos que detinha a nível de base, acabei por requerer a suspensão formal da militância, tendo combatido publicamente a direcção do partido em vários escritos.
Sou agora obrigado a tomar uma opção depois do X Congresso. Ou interromper a suspensão, regressando à militância; ou solicitar a disfiliação.
O novo Presidente foi meu camarada em muitos combates. Tenho por ele e por alguns dos seus companheiros na directiva e na comissão política, dos quais destaco o Fernando Pais Afonso e o João Luís da Mota Campos, sincera admiração e muita estima, especialmente pela coragem e pelo desassombro. Do mesmo modo, ligam-me aos Presidentes do Conselho Nacional e do Conselho de Jurisdição laços de veneração e de respeito, profundos. Isto é, não seria capaz de os combater publicamente, mesmo que usando de estratégia indirecta.
Acontece apenas que em política o que parece é. E o C.D.S. com o Manuel Monteiro é a direita das muitas direitas de que eu não sou nem quero ser. É a direita que entende a direita liberal, segundo as concepções restritas do neo-liberalismo do Dr. Paulo Portas. É a direita que entende a direita populista segundo a imagem do Engenheiro Abecasis, que nem sequer conseguiu resistir nas urnas da urbe de Lisboa ao assédio do Partido da Solidariedade Nacional. É a direita que entende a defesa da economia privada, segundo os modelos de certa CIP e de certa CCP, a que vai de Nogueira Simões a Pedro Feist. É a direita que assume uma visão restrita da conspiração entre “avôs e netos”, excluindo certas gerações trintonas e quarentonas que nasceram para a direita entre o pós-salazarismo e o antes do PREC. É uma direita burguesa demais para os pequenos-burgueses e citadina em excesso para ruralões como eu. É uma direita muito esteticamente “yuppie” e “neo-rockeira” que não gosta de plebeus “feios, porcos e sujos”, muito “terra a terra”.
Por tudo isto é que o CDS corre o risco de assumir-se como o partido do eixo “Lisboa-Cascais”, com delegação na “Foz do Porto” e outras tantas tentativas de imitação nas muitas discotecas da província. Corre o risco de transformar-se no partido da “geração” de “O Independente”, tudo com óculos “Benetton”, tudo com casaquinhos do “Homem da Regisconta”, tudo com as mesmas vestes da “geração BCP”. Corre o risco de assumir-se como o partido que tendo a má imagem do “partido dos ricos”, trata de aderir, através de todas estas opções geracionais, mais estéticas e vivenciais do que políticas, às próprias ideias dos ricos.
Trata-se, evidentemente, de uma opção que pode ser benéfica em termos de dinamização do partido, mas que, para mim, constitui uma flagrante violação daquilo que considero o cerne da lealdade básica às minhas origens e às minhas concepções do mundo e da vida.
Com efeito, aquilo que no “freitismo” era uma ameaça, acaba por ocupar a central de comando da imagem do partido, em nome do “anti-freitismo”.
Portanto, o “pai” do militante António Maria, em nome da corência, não pode, de maneira alguma, identificar-se sociológica e axiologicamente com esta opção.
Para mim, a democracia-cristã é uma axiologia a que adiro, em nome daquilo que substancialmente me formou: o tradicionalismo consensualista português, de raiz monárquica e institucionalista.
Sou, portanto, mais libertacionista do que liberal, reivindicando aquele conceito tomista de justiça que a não reduz à justiça comutativa do animal de trocas, antes exigindo a permanência vivificante da justiça distributiva e da justiça social.
Neste sentido, não posso ser anti-socialista primário como os neo-liberais. Bem pelo contrário: defendo que a democracia-cristã tem de acentuar os valores da solidariedade e da justiça, na linha dos actuais desenvolvimentos doutrinários de João Paulo II.
Condeno, pois, que um partido democrata-cristão, em 1992, caia na tentação passadista dos alvores da revolução conservadora, tachteriana e reaganiana. Em Portugal, a tal direita natural, tem instintos populistas e justicialistas e alguns entusiasmos anti-plutocráticos.
Castrar tacticamente esta tendência das nossas forças vivas em nome de um entendimento “liberalista” e quase “marialva” do conceito de direito de propriedade, é não entendermos que o nosso “proprietarismo” vem menos da revolução burguesa do século XIX, do que da revolução alodial do minifundarismo medieval, onde mergulham os “factores democráticos da formação de Portugal”.
Porque adiro a esta concepção do mundo e da vida, tenho de me posicionar contra os actuais defensores da religião secular da teologia do mercado, protestantes demais para as minhas raízes.
E não me basta que alguns batam muito demo-cristianamente com a mão no peito do pieguismo e do pietismo, porque, pelo menos, desde Luigi Sturzo que a tal democracia-cristã é uma perspectiva política independente da sacristia e dos muitos beatos que dela são satélites.
Traduzindo em miúdos estas doutrinarices, quero dizer ao Senhor Presidente do CDS que sou daquela direita que está muito à esquerda do marialvismo, do pietismo, do mercadismo e do proprietarismo e que quero ter as mãos livres para poder votar na força política que seja mais fiel a esta concepção do mundo e da vida. Isto é, se o CDS, como infelizmente temo, se desviar das raízes dos movimentos católicos operários do século XIX e do solidarismo das mais recentes encíclicas, não me repugna votar e defender publicamente um Partido Socialista, se ele conseguir dar provas de fazer a síntese entre o humanismo laico e o humanismo cristão.
É este o entendimento que tenho da direita dos valores, por oposição à direita dos interesses. E porque considero que a política tem de ser marcada pela preponderância da ética da convicção sobre a ética da responsabilidade, não sou capaz de ceder aos neo-maquiavelismos e neo-realismos que adoram o bezerro de ouro do utilitarismo e do pragamatismo.
Perante estas minhas angústias de fidelidade axiológica e sociológica, a razão e as convicções apontam-me, como única via de superação do impasse, a desfiliação deste CDS. Contudo, o coração, as amizades e o passado comum aconselham-me que dê um tempo de espera e que diga tudo o que penso ao jovem Presidente.
Com efeito, devo-te a lealdade de só sair do Partido, depois de uma conversa pessoal. E, desde já, prometo que não instrumentalizarei publicamente essa saída, nomeadamente pela publicação de qualquer texto na comunicação social ou através de uma qualquer controlada fuga de informação.
Também não colaborarei em qualquer subversão interna, pela constituição de grupos à margem da vida institucional do partido, como vai ser inevitável face à não existência de oposição organicamente representada, circunstância que representa para a tua liderança um dos principais calcanhares de Aquiles.
Peço-te, pois, uma audiência, para, de homem para homem, nos definirmos. Se considerares que não vale a pena, até podes esquecer-te de a marcar, pelo que serei obrigado a considerar que tacitamente tens conveniência em livrar-te de pessoas com o meu perfil, consumando, deste modo, a minha desfiliação no trigésimo dia posterior à recepção desta carta.
Com saudações democratas-cristãs

Nov 25

Sobre a forma republicana de governo

Intervenção no colóquio sobre a revisão constitucional e a monarquia em 25 de Novembro de 1989

Embora tenha de agradecer aos organizadores o convite que me foi feito, queria dizer que não me sinto titulado para debates da área puramente constitucionalista. Apesar da minha remota formação de jurista, do meu gosto pelo direito constitucional e da minha vocação politológica, julgo que iria além da minha chinela se entrasse em dialécticas típicas da hermenêutica constitucionalista. Além disso, até nem tenho fé absolutamente nenhuma naquele tipo de constitucionalismo que olha o Texto à maneira dos Pontifices romanos e que certas ilusões do nosso tempo têm transformado numa espécie de religião civil.
Mas se não posso interpretar, como constitucionalista, a cláusula pétrea vigente em Portugal, não quero deixar de a tentar ler de forma político-cultural.
Interpretando tal parcela de texto que vincula os portugueses à forma republicana de governo, talvez seja capaz de dizer, com todo o cuidado literal e doutrinário, que foi alguém de formação monárquica que inspirou esse agregado de palavras. Com efeito, julgo não poder haver nenhum doutrinador monárquico, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo os próprios integralistas, que não defenda a monarquia como forma republicana de governo.
Em abono desta afirmação, poderia, aliás, começar por invocar Francisco Suarez e depois passar aos clássicos do tradicionalismo contra-revolucionário e anti-absolutista, dado que todos eles assentaram as suas crenças consensualistas no pacto de associação e na consequente origem popular do poder.
Diria até que, para ser profundamente constitucionalista, teria de começar por reverenciar a matriz de todos os constitucionalismos modernos, que é o muito res publicano constitucionalismo da monarquia britânica, um constitucionalismo que nunca precisou do conceito de Estado nem do conceito de Constituição para ser a matriz de todos os Estados de Direito Democráticos da nossa contemporaneidade.
E mesmo na nossa história portuguesa, talvez convenha dizer que antes das constituições liberais escritas, nós já tínhamos sido, antes da recepção do iluminismo absolutista, com o seu despotismo ministerial, um Estado Constitucional e, desse modelo de Constituição Histórica, ainda hoje poderíamos extrair muitas lições de consensualismo para alguns desvios absolutizantes do nosso tempo.
Até tivemos uma monarquia e uma constituição, as nossas tão esquecidas leis fundamentais, antes de se terem elaborado os conceitos de Estado Moderno e de soberania, nos séculos XV e XVI. Isto é, a organização política dos portugueses tinha não só uma espécie de Estado pré-estadualista como também um género de constituição pré-constitucionalista.
A este respeito, direi apenas que o problema da Constituição é um problema eterno do homem, o problema da luta pelo controlo do poder através de uma ideia, de uma ideia de moral ou de uma ideia de direito, contra a pura força.
E como acontece sempre, cada situação histórica tem a sua constituição e o consequente registo do equilíbrio que se conseguiu estabelecer entre a força e a ideia, entre o poder e a liberdade. Ora, porque cada constituição é sempre uma obra humana eis que tem necessariamente de ser uma obra imperfeita.
Porque o problema de qualquer Constituição é sempre o problema de institucionalização do poder. É sempre o problema de construirmos o Estado à imagem e semelhança de algo que não foi construído: o Homem.
Na verdade, muitos parecem esquecer que o Homem, além de razão e vontade, é também imaginação, é também um animal simbólico e, consequentemente, a nossa Cidade e a nossa Constituição não podem excluir esta realidade, a verdadeira e necessária terceira dimensão: o Homem como animal simbólico, onde o elemento imaginação constitui uma vertente estrutural da existência.
Daí que não possamos ter apenas um Estado racional e construtivista. Temos que ter um Estado e uma Constituição que assumam a dimensão mítica da polis, que institucionalizem, não apenas a autoridade racional, mas também a autoridade tradicional, aliás as únicas formas de seguro contra o desespero da autoridade carismática, para utilizarmos as categorias weberianas. Isto é, temos de ter uma organização das coisas políticas que não seja apenas sociedade, mesmo que nascida de um contrato de constituintes ou de um referendo, mas também comunidade.
Temos que ultrapassar o simples problema de uma sociedade de legalidade e que assunir os génios invisíveis da cidade, a chamada legitimidade. Temos que dar alma àquelas constituições escritas que continuam marcadas por velhas e caducas ilusões de historicismo e de construtivismo positivistas, temos que lhes dar a força daquelas clássicas concepções do homem que são as forças dos consensualismos gradualistas, dos realismos, dos evolucionismos, das velhas leis fundamentais.
Temos todos que fazer uma hermenêutica adequada para o nosso tempo, que fazer um esforço de construção da lei à imagem e semelhança da cidade. E para tanto, temos de ter a humildade de ler os velhos clássicos, de ler a melhor constituição que nós tivemos, aquela constituição que não saiu, como dizia o velho Professor Cabral de Moncada, da cabeça de Minerva, num determinado momento histórico, com a ilusão de querer controlar todo o futuro.
Temos de regressar ao espírito daquelas constituições que nascem dos plebiscitos quotidianos, dos seculares consensos, dos contratos permanentes entre as sociedades e essas coisas que são puros instrumentos dessas mesmas sociedades que são os Governos.

Nov 08

A sociedade aberta numa estante fechada

Karl Raimund Popper, hoje com cerca de noventa anos, constitui, sem dúvida, um dos principais patriarcas intelectuais deste nosso tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só há poucos anos é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.  Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.  Apesar de tanto atraso, Popper também tem sido um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utiliza para desgarradas citações.  Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo: The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.  O exemplar da Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.  Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma. Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.  Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente. Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam! Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.

Jun 10

Tudo pela humanidade, nada contra a nação

Conferência proferida na Sociedade Histórica da Independência de Portugal, em 10 de Junho de 1989

Hoje, 10 de Junho de 1989, dia de S. Camões, no terceiro ano da chamada adesão à Europa e a outros tanto do advento do Novo-Leviatão que é o Grande Mercado Único de 1992, comemorarmos Portugal, comemorarmos a nossa independência nacional, pode parecer um ritual tribal, próprio daqueles primitivos actuais que se recusam a aceitar as gnósticas leis modernistas ditas da reforma e da modernização.
Hoje, em plena campanha eleitoral para o Parlamento de Estrasburgo, quando atingiu o seu clímax o provincianismo estrangeirado de certo europeísmo, que continua a traduzir em calão os folhetos de propaganda da eurocracia, invocarmos portuguesmente a mais antiga nacionalidade da Europa, constitui, sem dúvida, um acto não só de insolente rebeldia, mas também de legítima fidelidade.
Nós que somos o mais permanente dos Estados Europeus e talvez o único que não tem problemas de minorias nacionais nem reivindicações históricas significativas de unificação, pela integração de outras populações e outras parcelas territoriais, temos necessidade de proclamar meia dúzia de verdades elementares que alguns querem convenientemente esquecer.
Temos de recordar que o actual mapa político da Europa é dominado por uma série de Grandes Estados, herdeiros de projectos imperiais de vocação europeia ou regional que, dentro de si, incluem várias nações sem direito a Estado.
Temos de lembrar, também, pelo contrário, que grande parte dos pequenos Estados europeus resultam de meros tratados de paz entre potências vizinhas e que, em quase todos eles, persistem problemas de minorias nacionais.
Temos de assinalar que as actuais fronteiras estaduais europeias foram fixadas, na sua grande maioria, há menos de um século, em virtude tanto da explosão das nacionalidades do século XIX como das duas guerras mundiais deste século.
Temos de insistir no facto de sermos um pequeno Estado Nação que conseguiu conquistar, manter e, algumas vezes, reconquistar a respectiva autodeterminação, ao longo de oito séculos de independência política, ousando resistir tanto às naturais tentativas de absorção levadas a cabo pelo forte Estado vizinho como aos cantos de sereia de certos espaços supranacionais.
Importa, na verdade, reconhecer que o segredo da nossa secular resistência nacional, se assentou em factores internos, consolidou-se, fundamentalmente, pela forma como conseguimos situar-nos internacionalmente, na balança das alianças externas. Com efeito, o ser com outros na comunidade internacional sempre potenciou o nosso eu comum. Sempre soubemos gerir interdependências para garantirmos a independência nacional. Sempre soubemos submetermo-nos para sobrevivermos, ao mesmo tempo que também sempre lutámos para continuar a viver.
A independência afonsina, por exemplo, afirmou-se tanto na luta contra o Islão, em aliança com os cruzados do norte da Europa, como também nas resistências aos Reis de Leão e Castela, sendo especialmente garantida pelo reconhecimento internacional da Santa Sé. Isto é, Portugal surgiu no contexto de um espaço supra-estatal e não apenas como resultado de um diálogo bilateral. Porque sempre procurámos o d’além para salvarmos o d’aquem, porque nunca caímos na ingenuidade de afrontar o muro de Castela como simples púcaro de barro em choque com uma panela de ferro. Porque sempre utilizámos a manha e o jeito, onde nos faltavam as forças. Sempre demos entusiasmo ao pensamento, aventura ao pragmatismo e paz na terra aos homens de boa vontade, através de uma cultura de diálogo e de universalismo.
Temos hoje que reconhecer o facto de, a partir de 1986, termos que efectivar o processo de defesa da independência nacional num terreno onde, de há muito estávamos desabituados a mover-nos. Isto é, no quadro de dois grandes espaços supranacionais: o da Aliança Atlântica e o da Comunidade Europeia.
É evidente que, nestas circunstâncias, a ilusão de um nacionalismo autárcico, temperamentalmente isolacionista e tendencialmente auto-suficiente, foi claramente substituída pela realidade de uma soberania autocondicionada num grande jogo de diálogo multilateral.
Voltámos, de certa maneira, às nossas origens medievais, quando também conquistámos a independência no seio da Res Publica Christiana, jogando com a tensão entre dois pólos hegemónicos desse espaço:o imperium e o papado.
Também agora a nossa independência nacional tem de afirmar-se num quadro multinacional através de uma adequada gestão de interdependências, pelo que a afirmação da nossa personalidade nacional tem que desdobrar-se nos vários diálogos intra-europeus, intra-ocidentais e face ao resto do mundo, muito especialmente face ao mundo que o português criou.
Defender a independência nacional portuguesa em 1989 talvez não seja manter a utopia do conceito de soberania elaborado por Jean Bodin nos finais do século XVI, quando Portugal já tinha quatro séculos de independência nacional.
De facto, não aprendemos a construir o Estado com Maquiavel, nem precisámos do romantismo da Revolução Francesa ou do idealismo alemão para descobrirmos a consciência nacional. Já tínhamos Estado antes de haver o nome Estado; já éramos soberanos antes de ser inventado o conceito de soberania. Do mesmo modo, desde 1385 e, sobretudo, desde 1640, já praticávamos a soberania popular e a autodeterminação nacional, precedendo muitos dos princípios que virão a ser consagrados universalmente com as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa.
Somos antigos, mas não somos antiquados. Porque o nosso modelo de autodeterminação nacional constitui, sem dúvida, o melhor exemplo de transição entre a aldeia e a república universal.
Tal como a polis grega serviu de luzeiro para os séculos vindouros a forma portuguesa de Estado Nação pode constituir um adequado modelo de harmonia universal para todos esses povos à procura de nação que, como brasas debaixo das cinzas, se estão a transformar na nova fogueira dos nacionalismos que incendeia as carcaças de certos imperialismos europeus, dos Balcãs ao Báltico e da Biscaia aos Urais.
O nosso modelo de comunidade nacional, bem distante dos imperialismos ditos nacionalistas, que se enfrentaram nas últimas guerras mundiais, constitui o small is beatiful que melhor permite a conjugação internacional. Não entender esta aspiração profunda da diversidade europeia é não percebermos as constantes da liberdade europeia.
Nesta viragem de século, temos de compreender que a construção do espaço integrado da Comunidade Europeia vai inevitavelmente gerar a descolonização da Europa e a ultrapassagem do ambiente de pós-guerras, incluindo as próprias guerras frias, em que continuamos a viver. Que o diga o chamado regionalismo e o chamado federalismo intra-estadual que marcam os grandes Estados europeus e que constituem simples eufemismos tecnocráticos que escondem efectivos nacionalismos proibidos.
Seria trágico que o exemplo português fosse por nós substituído por modelos que tendem a ser ultrapassados.
Temos de reconhecer que defender a independência nacional nestas circunstâncias passa sobretudo por defendermos um conceito português de independência nacional.
Isto é, passa, em primeiro lugar, por defendermos um efectivo conceito de nação cultural, de um modelo que seja mais Nação-Estado do que Estado-Nação. Passa, portanto, por um nacionalismo enraizadamente português.
Um nacionalismo que, assim, tem de ser cada vez mais regresso aos próprios factores democráticos da formação de Portugal. A um conceito mais de comunidade do que de sociedade, mais de instituição do que de contrato, mais de valores do que de interesses.
Tem que ser a procura das raizes da nossa harmonia. Das aldeias e bairros que constituem as repúblicas municipais e de um conceito mais federativo de Estado em todas as frentes, onde o carácter unitário não exclua a participação e a descentralização. Porque é típico do nosso modo de estar no mundo e de construir o Estado, estabelecer uma unidade de ordem através da diversidade dos elementos institucionais que a compõem. Que o diga esse resultado chamado Brasil, o mais grandioso dos Estados-Nações e o mais unitário dos grandes espaços estaduais do nosso tempo.
O nosso nacionalismo tem, pois, de ser o nacionalismo que convém aos portugueses.
Por mim, não me temo do muro dessa nova Castela que é a CEE. Receio mais o cheiro da nova canela que, em nome dela, está a despovoar o reino dos valores nacionais. Dessa imperceptível colonização que nos vai massificando e destribalizando, gerando um destrutivo individualismo, onde não há rei nem lei, nem paz nem guerra.
E as nações são sempre, como assinalava Georges Burdeau, um sonho de futuro partilhado, situando-se naquela terra de fronteira, onde confluem a poesia e a história.
Porque se o homem é razão e vontade, também não deixa de ser imaginação. E nestes tempos de homo aeconomicus, importa fazer lembrar que também somos um animal symbolicum.
Porque, como dizia Paul Ricoeur, toda a razão tem um horizonte sobredeterminado pela crença;porque há um ponto onde o racional comunica com um mítico; porque há toda uma constituição simbólica do laço social.
A nação não é contudo um qualquer mito, da mesma família das ideologias, como certo neomarxismo tende a propagar, com algum êxito, sob aparentes roupagens vocabulares que recobrem as respectivas origens . A nação é também um facto e um valor. E os valores nada têm de subjectivo ou de arbitrário. Nem sequer estão para além da realidade. Os valores apenas existem para penetrar a realidade. São como a luz que atravessa certos corpos e lhes dá significação.
Veja-se o que ensinou esse grande mestre que foi Hernâni Cidade, quando definia a nação como algo que tanto é um corpo geográfico como uma alma espiritual. Para ele os agrupamentos sociais, já unidos ou em processo de se unir pela comunidade do sangue e da língua, vivem durante transcursos, que podem ser de séculos ou de milénios, sob idênticas forças de modelação física e espiritual – o mesmo ambiente geográfico, o mesmo clima, a mesma alimentação, as mesmas condições de actividade, os mesmos estímulos de pensamento e de imaginação. A esta situação chama o autor vago e instintivo impulso de convergência a que se pode seguir um intencional esforço de concórdia de vontades lúcidas, o que acontece sob o incitamento de um chefe e na oposição a outro grupo.
E a Nação forma-se com o seu corpo geográfico e a sua alma espiritual, quando às colectivas determinações do presente começam a dar apoio as memórias colectivas do passado, começam a determinar objectivo as aspirações colectivas do futuro.
Por seu lado, a Pátria é algo de dferente: da Nação emerge a Pátria, quando, à luz da cultura clássica, que ensina a palavra e aviva o orgulho que ela suscita, se exalta o sentimento de suas singularidades reais e supostas, de seus triunfos no esforço por que as vai afirmando. E estamos em face duma nova realidade espiritual, duma nova personalidade colectiva

Sermos Portugal, querermos continuar a ser Portugal, não é apenas termos direito a dispôr de uma história privativa que podemos comemorar com mentalidade de museu ou de turismo cultural, como certas comissões oficiais tendem a estabelecer.
Sermos Portugal não é apenas estarmos na terra de Portugal ou possuirmos o bilhete de identidade de cidadão português. Sermos Portugal é cremos em Portugal e querermos ser Portugal de forma actualista, sem utopias e sem acronias. Ser Portugal é vivenciar um Portugal permanecente. É, como dizia Jacques Maritain, sermos uma comunidade de modos típicos de sentimentos, enraizada no chão físico da origem do grupo e no chão moral da história. É reconhecermos que uma determinada comunidade só se torna ou só permanece como nação quando esta situação de facto entra na esfera tomada de consciência, quando o grupo alcança ou resiste numa psique comum. É, como dizia Fernando Pessoa ter raízes no passado e raízes no futuro.
Porque a nação teria sempre uma triplice relação com o passado, o presente(nacional e estrangeiro) e o futuro. Porque em todos os períodos há forças que tendem para manter o que está, porque tendem a adaptar o que existe às condições presentes, e forças que tendem a dirigir o presente para um norte previsto, visionado no futuro.
Uma Nação é, assim, um organismo específico em que, como em todos os organismos, lutam, sustentando-o, forças que tendem a dissolvê-lo e forças que tendem a conservá-lo. Entre as forças de integração, Pessoa coloca, em primeiro lugar, a homogeneidade do carácter nacional, cuja acção integradora consiste em nacionalizar todos os fenómenos importados do estrangeiro. Refere, em segundo lugar, a coordenação das forças sociais e, em terceiro, a sociabilização das forças individuais, considerando que a decadência artística e literária é o fenómeno mais representativo da decadência essencial de uma nação.
Temos, pois, que a nação é entendida como um conceito puramente místico, como um meio de criar uma civilização, como um organismo capaz de progresso e de civilização. Porque a nação sendo uma realidade social não o é material. É mais um tronco do que uma raiz. O Indivíduo e a Humanidade são lugares, a nação o caminho entre eles. . . A Nação é a escola presente para a Super-Nação futura.
Ser Portugal é viver Portugal, esta algema de séculos que nos prende e nos liberta, este sermos pigmeus sobre a cabeça de um gigante. Ser Portugal tem de ser, cada vez, aquele ser tudo pela Humanidade e nada contra a Nação.

Out 21

Testemunho sobre a blogosfera e as redes sociais

Pequeno testemunho meu sobre a blogosfera e as redes ditas sociais

1. Qual é a génese do seu blogue? O que o/a levou a criar um blogue?

Reagir à asfixia cívica e, sobretudo, à posição dominante de alguns iluminados que ocupavam a primitiva blogosfera, mas que apenas a usavam como trampolim para o tacho da “intelligentzia”, em forma de pulhítica ou de director-geral.

2. Possui conta no Facebook? Se sim, usa essa rede social para a postagem de textos?

Sim. Cada meio tem a sua forma e, se há coincidências, é impossível o “copy and paste”.

3. E o Twitter, usa? Com que frequência e finalidade?

Deixei de usar, por causa dos inquisidores que pululam cobarde e anonimamente na rede.

4. Considera que as redes sociais vieram roubar leitores e influência aos blogues ou são apenas ferramentas que acompanham o fenómeno de contributo pessoal para a rede?

Nem os blogues roubaram influência à escrita de livros, ou aos jornais. Blogues e rede são instrumentos do espírito, quase como o papel e a pena.

5. Será que os blogues têm os dias contados em virtude do crescimento das redes sociais?

Não. Podem é ser integradas num meio mais convergente que permita a integração das diversas tentativas de procura da comunicação íntima, como a net o permitiu.

 

Nov 30

O vudu dos mortos-vivos e um intervalo de não-bombardeamento em plena guerra

Hoje, trinta e um do mês sete, quando em 1826, D. Isabel Maria jurava a Carta, quando, em 2001, morria Francisco da Costa Gomes, que, aliás, estão um para o outro, em cinzentismo e rolhice. Porque ontem, se tivesse teclado, também teria de assinalar que, em 1930, no dia 30, surgia um decreto do Conselho de Ministros criando a União Nacional, o antipartido que seria o partido único do regime que estava antes deste, tal como em 1931, nessa data de 30, era criada a Polícia Internacional Portuguesa, base da futura PIDE, que era bem mais domesticamente a polícia política da coisa salazarenta, onde ninguém me é capaz de dizer, ao certo, quem era o criador ou quais eram as criaturas, porque todos se foram amalgamando no vudu dos mortos-vivos.

Começo assim, naturalmente, porque os bombardeamentos no Médio Oriente terão sido suspensos e não há repórteres de guerra que nos tragam novas do Afeganistão e do Iraque. Só há guerra nos sítios para onde vão a CNN, a BBC e a SKY. E as guerras todas acabam quando Londres e Washington decretam que acabem, ao fazerem uma dessas efectivas cimeiras que tanto dispensam a ibérica presença de Barroso e de Solana como irritam os restos gaullistas ou mitterrandistas de Paris, sem que alguns dos mais atlantistas dos nossos deputados europeus, exprimam, em palavras épicas, a respectiva indignação, dado que se transformaram em meros caçadores de anti-semitas domésticos.