Abr 28

Origens do Pensamento Democrático Português

ORIGENS DO PENSAMENTO DEMOCRÁTICO PORTUGUÊS

Conferência proferida na Casa Veva de Lima

em 28 de Abril de 1993

 

O gentil convite que me foi feito para que, nesta instituição, proferisse uma conferência sobre as origens de quem politicamente devemos ser (é isso o que eu entendo quanto às origens do pensamento democrático português), se, por um lado, me honra, eis que, por outro, me coloca numa posição particularmente incómoda.

Com efeito, perante os termos exactos da carta-convite que foi endereçada a terceiros, de cujo conteúdo sou, aliás, completamente alheio, e que, por portas travessas, me foi dado conhecer, eis que fui muito amavelmente atirado para o pelourinho dos iconoclastas do actual situacionismo.

Colocar um conservador, como muito narcisicamente me qualifico, nos terrenos movediços do anarquismo e do reviralhismo, é, na verdade, fingir que é verdade aquilo que paradoxalmente tende a ser uma das verdades do nosso tempo.

Na verdade, depois das sucessivas frustrações revolucionárias, pós-revolucionárias e contra-revolucionárias a retalho, temos de chegar à conclusão, imposta pela natureza das coisas, que só a tradição é revolucionária. Que as reformas no sentido da liberdade, da solidariedade e da justiça só são estruturantes, duráveis e enraizáveis quando a roda da mudança pode girar em torno do eixo dos valores permanecentes de uma dada comunidade histórica. Só com este enraizamento dinâmico, podemos revolucionar com autenticidade.

Daí, podermos dizer que quem quer conservar o que deve ser talvez tenha de revoltar-se contra todos aqueles que apenas pretendem conservar o que está, para, muito egoisticamente, conservarem os privilégios adquiridos pelo assalto que, sem legitimidade, fizeram à propriedade e ao poder.

É evidente que gostaria de ser bafejado pela virtude da insolência e de ter a coragem de ser minoria. Contudo, o meu inconformismo não consegue pisar essas raias da coragem e, infelizmente, não posso dizer que vivo como penso sem pensar como vivo, dado que nos últimos tempos tenho aderido ao partido dos abstencionistas face à militância cultural e política.

Direi apenas que o meu inconformismo não passa de um mero dever de ofício, dado que apenas sou um desses profissionais universitários a quem a comunidade paga para pensar de forma livre. Portanto, exercer o inconformismo não passa de uma simples contrapartida contratual do meu trabalho por conta de outrém ou do meu trabalho dependente, conforme tenho de escrever na declaração do IRS.

Acontece também que tenho a felicidade de ser um amador da minha profissão. Com efeito, como professor, não tenho apenas um posto de vencimento, dado que professo, dado que tenho paixão de ensinar, aprendendo, e de aprender, ensinando. Além disso, porque só ensino aquilo que penso e com o entusiasmo de poder exprimir aquilo em que acredito, julgo não ter ainda atingido as raias da intelligentzia, desse semi-proletariado intelectual para onde costumam ser marginalizados os professores e donde normalmente se recrutam os intelectuais orgânicos e os bacilos revolucionários.

Não foi contudo para analisar os meandros da intelligentzia portuguesa para que aqui fui chamado.

Vim aqui para vos manifestar uma antiquíssima tese, nitidamente contra-revolucionária: que esta democracia, que fingimos ser, nunca se poderá enraizar se não se assumir como uma democracia portuguesa. Por outras palavras, para vos dizer que já chegou a hora de encerrarmos o ciclo da jovem democracia e de redescobrirmos as constantes plurisseculares do nosso consensualismo. Para portugalizarmos a democracia, pensando em português e para portugueses as formas de polis feitas à nossa imagem e semelhança.

Isto é, chegou a hora de vencermos os nossos complexos de inferioridade que, para uma determinada geração, transformaram a democracia numa jovem democracia que devia imitar modelos estrangeirados polidos, cristãos e civilizados, muito à maneira dos iluministas, sempre à procura no mais além dos Pirinéus de um paraíso terráqueo ou de um sol da terra.

Precisando melhor esta posição, direi que todos os partidos políticos portugueses, criados ou implantados a partir de 1974, foram inspirados em modelos programáticos estrangeiros ou estrangeirados, não reflectindo a autonomia cultural portuguesa e as nossas específicas tradições políticas.

Se noutras épocas da nossa história predominou a influência das práticas políticas e dos modelos programáticos ingleses e franceses, a jovem democracia portuguesa posterior a 1974 foi, sobretudo, marcada pelos modelos ideológicos alemães e pelos estilos organizacionais franceses.

O PS foi fundado nos arredores de Bona, sob os auspícios de Willy Brandt, mas sem adoptar do SPD o pós-marxismo de Bad Godesberg.

Sá Carneiro, ao assumir-se em 1971 como social democrata, invocou a prática do SPD de Helmut Schmidt, isto é quis ser um SPD pós-marxista.

O próprio CDS inicial copiou a sigla do movimento de Lecanuet, adoptou um estilo giscardiano e procurou firmar-se ideológicamente citando Konrad Adenauer.

É talvez esta inspiração estrangeirada que tem obrigado os sucessivos partidos a ter que meter as ideologias na gaveta quando, no exercício da actividade governativa, são obrigados a largar do céu dos princípios e a sujar as mãos na realidade. É também talvez por causa disto que alguns falam em pragmatismo e outros anunciam, com cerca de duas ou três décadas de atraso, o crepúsculo ou fim das ideologias.

Assim talvez se compreendam as contradições doutrinárias daquele partido que obteve em Portugal duas maiorias absolutas sucessivas: começou em 1985 por declarar-se social democrata à alemã, à maneira de Bernstein, para, depois, se assumir como da esquerda moderna (quando dialogou e integrou alguns dos líderes do Clube da Esquerda Liberal), antes de se filiar na Internacional Liberal e de proclamar como do Centro, aberto à direita, à esquerda, ao centro e aos extremos da direita e da esquerda que se convertessem ao pragmatismo do apoio ao mesmo líder e que sufragassem o governo da modernização de Portugal.

Não há dúvida que a ascensão de Cavaco Silva ao poder maioritário exprimiu uma espécie de revolta popular contra os excessos ideológicos da revolução e da pós-revolução. Só que o excesso de anti-ideologia pode vir a ser tão nefasto quanto o excesso de ideologismos esquerdistas.

Com efeito, a moda anti-ideológica do cavaquismo trouxe consigo uma onda de ideologias inequivocamente ultrapassadas, desde o positivismo utilitarista do século XIX, que até tinha como divisa a ordem e o progresso, à ideologia tecnocrática deste século.

Não será este o bom caminho para a política portuguesa, principalmente quando somos simples parcela quase fungível do espaço supra-estadual e supra-nacional daquela Comunidade Europeia que não quer apenas construir um mercado comum ou um mercado único, mas também uma união política.

Porque se não praticarmos o nosso direito à diferença, reforçando a identidade cultural dos portugueses, mesmo no domínio das ideologias e das doutrinas políticas, corremos o risco de sermos colonizados por cosmopolitismos ideológicos e doutrinários sempre à procura de espaços culturais vazios.

Corremos o risco de continuarmos a ser mero receptáculo de vulgatas ideológicas estrangeiradas, chamem-se positivismo, nacionalismo, marxismo, social-democracia, ecologismo ou neo-liberalismo. Isto é, meros sucedâneos do caixote de lixo da história ou espaço laboratorial exótico para a experimentação de remédios que os autores originais não querem aplicar nos respectivos espaços culturais.

Corremos até o risco de nem sequer nacionalizarmos essas tendências importadas, perdendo definitivamente o direito a pensarmos com a nossa própria cabeça, convidando outros à pior das formas de agenciamento colonizador, como é a colonização cultural.

E o pior é que fazemos isto ao mesmo tempo que proclamamos o ecologismo da defesa do buraco do ozono ou da conservação da paisagem, esquecendo que a primeira exigência de uma autêntica ecologia é a reivindicação do direito à diferença cultural, com a consequente necessidade de cada pensamento ter uma pátria, de cada democracia e de cada Estado se inserirem no chão moral da história.

Porque também neste caso só é moda aquilo que passa de moda, só é novo aquilo que se esqueceu..

As tradições democráticas portuguesas datam dos alvores da nacionalidade. Com efeito, Portugal nasceu de uma Reconquista cristã marcada pela aliança entre o rei e o braço popular, dos municípios burgueses e rurais aos agricultores livre, donos da própria terra minifundiária.

São esses factores democráticos da formação de Portugal que levaram às Cortes de 1254, já participadas pelo povo, e à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa, na sequência de Aljubarrota e já com umas Cortes de Coimbra, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab omnibus decideri debet (o que a todos dsz repseito por todos deve ser decidido…).

Isto é, o Estado Nação dos portugueses nasceu da Comunidade para o Poder através de uma auto-determinação sustentada por proprietários livres, rurais e burgueses. E mesmo quando o Estado Poder foi ocupado pela degenerescência dos imperialismos e soberanismos absolutistas, a Comunidade sempre soube conservar o minifundiarismo da sociedade civil, considerando o Estado Poder como algo de estranho e de estrangeiro…

Assim, a restauração da nossa independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular que serviram de inspiração a todos os consensualistas para resistirem ao absolutismo iluminista, monárquico ou jacobino.

Até a Revolução Liberal de 1820 foi, pelos primeiros revolucionários, qualificada como simples Restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses.

Mesmo certas facções do tradicionalismo miguelista procurou a legitimidade da Constituição Histórica, com José Acúrsio das Neves, Ribeiro Saraiva e o Visconde de Santarém convocando as reprentativíssimas e legitimíssimas Cortes de 1828.

Também a partir de 1852, o liberalismo procurou regenerar-se e nacionalizar-se e o inicial republicanismo de Henriques Nogueira e Teófilo Braga, mergulhou as respectivas raízes no medievalismo democrático.

No seio da própria República gerou-se a Renascença Portuguesa, com o saudosismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo Coimbra, enquanto Fernando Pessoa procurava um nacionalismo liberal, o ser liberal dentro de um conservantismo português, animado pelas saudades de futuro de um quintimperialismo cultural.

Impõe-se proclamar, de uma vez por todas, que nem Portugal nem a Democracia nasceram em 1974.

Se a nossa geração não enraizar a democracia no modo português de estar no mundo, o sistema democrático continuará como um simples conjunto de regras do jogo, como mero sistema processualista, como mero Estado de Direito Formal, quando é necessário, cada vez mais, uma democracia de cidadãos, civicamente livres e civicamente responsáveis, quando é necessário passar do proceso à substância e da forma ao conteúdo.

Portugal corre o risco de continuar a ser democraticamente colonizado por ondas e modas ideológicas que podem agitar a classe política e alguma nomenklatura dependente do poder, mas que não chegam ao país profundo. Àquele antiquíssimo Estado Comunidade ou Estado República indiferente às desventuras do Estado Poder ou do Estado Principado que, voltado sobre si mesmo, vai resistindo.

Uma democracia portuguesa e um Estado de Direito Democrático pensados em português. Precisamos que a Comunidade, a Res Publica faça do Poder alguma coisa de seu. Precisamos que o Estado deixe de ser um estrangeiro que cobra tributos e, de vez em quando, dá algumas benêsses …

 

Voltando ao fio do meu discurso e fazendo uma pequena paragem em 1640, importa sublinhar que os nossos restauradores da independência nunca precisaram de utilizar, nos respectivos textos de combate e de teorização, expressões como Estado e Soberania, ao contrário do que fizeram outros portugueses adeptos do filipismo como Salgado Araújo e Miguel de Vasconcelos.

A teoria básica dos nossos teóricos da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, permaneceu ancorada nas teses da escolástica peninsular que, a partir de Francisco de Vitória, Menchaca e Covarrubias, já tinham dado argumentos para as célebres Alegações de Direito, de 22 de Outubro de 1579, elaboradas pelos juristas Félix Teixeira, Afonso de Lucena, Luís Correia e António Vaz Cabaço, onde, sustentando-se os direitos de D.Catarina, se defendia o princípio de à república pertencer escolher o rei, trespassando nele o poder, já que a liberdade, por direito natural, pertenceria à comunidade.

Estes fundamentais factores democráticos da formação de Portugal, avessos à teocracia, ao concentracionarismo e ao absolutismo, inseriam-se numa corrente europeia consensualista que, depois de ser magistralmente reinterpretada por autores como Bento Espinosa, Francisco Suarez e Johannes Althusius, vai servir de fundamento para uma precoce manifestação da soberania popular no nosso 1640, da mesma maneira como levou ao separatismo das Províncias Unidas, à partida da Mayflower e à constituição da Confederação Helvética.

Com efeito, o Primeiro de Dezembro, menos do que uma simples secessão face a Madrid, foi um grito de revolta contra as tentações absolutistas manifestadas por Olivares e uma última tentativa de restauração das teses consensualistas, tanto em Portugal como nos restantes reinos da Hispania.

1640 poderia ter sido o ponto de partida para uma “portugalização” de toda a Espanha, para utilizarmos uma imagem de Miguel de Unamuno, aplicada noutro contexto. E, a partir de então, as teses da soberania popular, poderiam ter transformado a Europa Católica na vanguarda da Revolução Atlântica, precedendo as Revoluções Inglesa e Americana e evitando a ruptura de 1789.

Infelizmente, vai acabar por triunfar a Razão de Estado à maneira de Richelieu que, entre nós, atinge o seu clímax com Sebastião José de Carvalho e Melo que logo tratou de taxar os juristas da Restauração como monarcómacos e republicanos, colocando-os no index do despotismo esclarecido, donde ainda não foram retirados.

Pode parecer paradoxal, mas os nossos teóricos da Restauração, entre o soberanismo e o federalismo, optaram pelo segundo, respeitando aquela profunda tradição democrática portuguesa, que levou à institucionalização da nossa polis, de baixo para cima.

Com efeito, Portugal começou por ser uma stateless society, isto é, entre nós, o Estado Comunidade, o Estado enquanto res publica, precedeu o Estado Aparelho de Poder, o principado.

Aliás, uma das primeiras teorizações do Estado em Portugal, com o Livro da Virtuosa Benfeitoria do Infante D.Pedro, pensou a República como uma espécie de concelho em ponto grande, uma aliança entre o Príncipe e a comunidade da sua terra. De qualquer maneira, é inequívoco que antes de se ter estruturado ou construído o Estado, já estavam enraizadas as comunidades concelhias e outros corpos intermediários.

Isto é, a comunidade política portuguesa, a comunidade dos portugueses, o nosso pacto de união, precedeu, em muitos séculos, o pacto de sujeição que tivemos de constituir face a um soberano absoluto.

Com efeito, antes de Maquiavel ter inventado o nome de Estado e de Bodin ter estruturado o conceito de soberania, Portugal, como organização política dos portugueses, já tinha mais de quatro séculos de existência e uma revolução clarificadora, como o foi a de 1383-1385.

Os que continuam complexados pela circunstância de sermos uma jovem democracia, não deviam desconhecer este nosso antiquíssimo enraizamento constitucional que constituiu o alento fundamental para as regenerações de 1383-1385, 1640, 1820, para não falarmos de outras que se lhe sucederam em esperanças e frustrações.

 

Julgo fazer parte de uma dessas tribos portuguesas dos vencidos da vida que continuam a acreditar que é possível uma democracia portuguesa, através de uma releitura tradicionalista do processo de resistência nacional.

Para tanto, importa, por exemplo, que o nosso conservadorismo deixe de ser conservador do que está e assuma a autenticidade de apenas conservar o que deve ser. Da mesma forma, conviria que os nossos revolucionarismos e reformismos tivessem a humildade de se enraizarem no chão moral da nossa história e que não sofressem daquele habitual desviacionismo que os transforma, muito pós-revolucionariamente, nos mais reaccionários defensores do statuquo.

Para tal, torna-se imperiosa a ultrapassagem das categorias fratricidas que nos levaram à última e permanecente guerra civil, onde os tradicionalistas não puderam apresentar uma solução superadora da dicotomia miguelistas-pedristas que, até 1974, se reproduziu em salazaristas-antifascistas.

Julgo que só poderemos reencontrar o consensualismo perdido se reassumirmos o profundo republicanismo das nossas teses tradicionalistas, bem como o activo sentido anti-soberanista do nosso sentido de independência.

Assim sendo, pensando o Estado-Principado como algo que depende do Estado-República e concebendo este segundo de forma federativa, como um concelho em ponto grande, também temos de exigir uma comunidade maior, à maneira da Res Publica Christiana ou do Jus Gentium.

A chamada soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível pertence ao leviatânico Estado Moderno que expropriou os reinos, os únicos legítimos herdeiros da civitas da República Romana e da polis ateniense.

O meu reino ou a minha república é doutro mundo. De um mundo não moderno, chamem-lhe anti-moderno ou pós-moderno. É o reino como res publica, o reino que, nos séculos XII e XIII, inspirado em Aristóteles e Cícero, se revoltou contra a dominância do Papado e do Imperium e proclamou que rex est imperator in regno suo.

O reino de S. Tomás e do nosso Infante D. Pedro, o reino dos comuns, feito de um principe com toda a comunidade da sua terra.

Este reino tinha um Principe, tinha um poder supremo, uma vontade de independência. Mas o poder supremo era da mesma natureza dos poderes que lhe estavam abaixo, onde o vértice era apenas uma parte da pirâmide do poder da polis, uma parte que, sendo parcela do todo, era, não obstante, representante do próprio todo.

Acontece que este reino foi, a partir do absolutismo teocrático, expropriado pelo renascimento do Império, num processo que passou da república teocrática dos luteranos ao L’État c’est moi dos despotismos esclarecidos, continuando a mesma natureza despótica, quando se substituiu o rei absoluto pelo povo absoluto, da Revolução francesa à Revolução Soviética.

Os Estados a que chegámos na Europa, na Europa das potências e dos Estados em movimento, ainda são quase feudalizados por projectos imperiais frustrados. Da Espanha de Carlos V, à França de Napoleão. Da Alemanha de Hitler à Inglaterra de outras procuras de Império no além mar. Da Rússia sonhando-se polícia da Europa a outros Impérios espirituais ou económicos.

Com efeito, faço parte de uma família mental que tem uma matriz cultural perfeitamente avessa à chamada herança tricolor, considerando que a dita Revolução mais não fez do que perpetuar o absolutismo, ao substituir um rei de direito divino por abstractas assembleias tão absolutistas e tão terroristas quanto os anteriores detentores da Bastilha.

Assumo, na verdade, a herança contra-revolucionária, não na perspectiva dos que defendem uma revolução ao contrário, mas, bem pelo contrário, de acordo com os que pugnam pelo contrário de uma revolução.

Neste sentido, a minha estirpe contra-revolucionária tem mais a ver com o conservadorismo tradicionalista (que à maneira de Pessoa era liberal dentro do conservantismo) de Burke e Tocqueville do que com a besta esfolada do caceteirismo intelectual de José Agostinho de Macedo. Isto é, no âmbito daquela guerra civil político-cultural que, no contexto da civilização ocidental, foi desencadeada a partir de 1789, a concepção do mundo e da vida a que adiro não aceita nenhum dos absolutismos em confronto, seja o progresso da revolução, seja a reacção que dele nasceu, advogando a superação dialéctica proposta pelos moderados dos dois lados dessa barricada.

A perspectiva consensualista do pré-revolucionário António Ribeiro dos Santos é idêntica à moderação dos miguelistas António Ribeiro Saraiva e José Agostinho de Macedo ou dos liberais Sivestre Pinheiro Ferreira e Alexandre Herculano, tal como Burke, Tocqueville e os federalistas americanos se identificam no mesmo ambiente mental que desaguou neste século em Ortega y Gasset, Albert Camus, Hannah Arendt ou Raymond Aron.

Com efeito, a Revolução Francesa mais não é do que um simples episódio de uma mais ampla Revolução Atlântica desencadeada pela Revolução Inglesa e continuada pela Revolução Americana. Aquela Revolução Atlântica que marca o actual modelo ocidental de Estado Constitucional ou de Estado de Direito, por oposição aos vários desvios totalitários contemporâneos, e que já estava presente nas constituições históricas do Reino Unido ou do Portugal anterior ao pombalismo.

Acontece também que muitas das bandeiras que hoje se desfraldam como originárias de 1789 têm raízes bem mais remotas. É o caso dos Direitos do Homem, inequivocamente estabelecidos pelo cristianismo, ou da soberania popular e nacional, teorizada pela escolástica e consagrada pela nossa Revolução do 1º de Dezembro de 1640.

Na verdade, tento ser fiel a essa concepção contra-revolucionária que considera que todas as grandes revoluções são, ao mesmo tempo, pré-revolucionárias e pós-revolucionárias. Acredito que os processos revolucionários, os factos desencadeadores das revoluções, acabam por diluir-se num todo pós-revolucionário, onde o que estava antes se mistura desajeitadamente com aquilo que, de novo, tentou construir-se, restando sempre um hibridismo, onde também confluem algumas ideias contra-revolucionárias, no sentido de uma revolução ao contrário.

Atentemos no exemplo da chamada revolução portuguesa posterior a 1974, cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir entre nós. O que resta é um hibridismo onde entram os cravos de Otelo, o terror de Vasco Gonçalves e as atitudes contra-revolucionárias de Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e António Ramalho Eanes, donde resultou o 19 de Julho do cavaquismo. Isto é, treze anos depois do 25 de Abril, não voltámos para trás, nem demos um salto em frente. Pura e simplesmente, cedemos ao princípio da continuidade histórica das comunidades humanas, onde a revolução constitui um mero interregno que vai acumular-se à experiência histórica.

Por tudo isto é que o cavaquismo tem inúmeras semelhanças com outros momentos pós-revolucionários da nossa história, como o cabralismo, o fontismo e alguns instantes da Primeira República. Por tudo isto é que muitos críticos de costumes de antanho, como Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão ou Raul Brandão permanecem vivos nas respectivas farpas. Nas pós-revoluções há sempre cadilhes, belezas e barretos ao lado de conselheiros acácios, antónios marias e fradiques. . .

Esta não é, com certeza, a perspectiva daquela esquerda, herdeira da jacobina memória tricolor, que continua a definir-se politicamente pela procura de uma milenarista revolução. Essa tal esquerda que coloca a Revolução Soviética de 1917, o Maio de 1968 e o 25 de Abril numa mesma linha recta iniciada em 1789, sofre hoje da disfunção civilizacional da comemorativite, provocada por uma espécie de vazio de revolução. Isto é, essa tal esquerda não tem, no tempo presente, paraísos terrestres revolucionários que lhe sirvam de modelo.

Com efeito, os cravos de Abril murcharam, a longínqua China do Maio de 1968 transformou-se no massacre de Tian Am-men 1989 e o 1917 de Lenine e Estaline está hoje inventariado ao lado daqueles gulags que ainda permaneciam com Brejnev e de que húngaros, polacos e até russos tentam libertar-se através de uma revolução nitidamente contra-revolucionária, no sentido do contrário de uma revolução.

Compreende-se, pois, que essa esquerda , frustrada pelo tempo presente, tenha que procurar no passado o respectivo oxigénio existencial. Passou a ser o ontem a oferecer-lhe os necessários amanhãs que cantam.

Filiado nestes princípios, poderei dizer que por detrás das aparências, a democracia que vamos tendo e fingimos ser, se vão chocando contradições decadentistas que poderão volver-se, de um momento para o outro, em profunda crise política. O que acontecerá quando imensas revoltas individuais, moralmente assumidas pela interioridade, se incendiarem sociologicamente e quebrarem o conformismo ao abrigo de um qualquer pretexto político.

Durante séculos, isto é, antes de 1986 e também antes de 1974, quando falávamos em crise política, já tínhamos tipificada, pressupondo uma ou mais das seguinte coisas:

-num potencial golpe de Estado promovido por forças militares ou militarizadas;

-numa eventual ruptura de abastecimentos em bens alimentares ou em recursos energéticos;

-numa situação de ruptura financeira, provocada pelo defice orçamental ou pela dívida externa;

-numa invasão externa ou na participação numa guerra internacional;

-numa eventual conspiração de forças ocultas (jesuítas, maçonaria, extrema-direita ou PCP);

 

Portugal como o foi em 1974 ou em 1985 já não existe.

Com efeito, a adesão à Comunidade Europeia, com a consequente internacionalização da nossa economia, da nossa sociedade e da nossa segurança, fez terminar o ciclo do Portugal Velho, surgindo, mais do que um Portugal Novo, um Novo Portugal. Com efeito, a verdadeira alteração das circunstâncias existenciais sobre as quais pode realizar-se a ideia de Portugal (e Portugal é sempre uma ideia mais as respectivas circunstâncias), não foi provocada pelo fim do Ciclo do Império, mas sim pela integração da república Portuguesa no seio da Comunidade Europeia.

Isto é os mais determinantes factores do poder político já não são intra-nacionais. Dependemos do índice Nikei, da taxa de juro do Bundesbank, dos acsos de uma reunião do GATT sobre os texteis ou o calçado, do preço das alfaces francesas, dos tomates italianos ou do bacalhau da Noruega. Somos definitivamente o que podemos comprar para comermos num dos hipermercados de Alfragide ou da quinquilharia electrónica comerciada por ismaelitas.

Dependemos da segurança de Marrocos ou de uma qualquer revolta das nações dependentes do Estado espanhol. Para deslocarmos expedicionários para Moçambique voamos num avião russo e no cantinho dos nossos lares vamos zapando canais de todo o mundo à procura de informação ou divertimento.

Isto é, a soberania una, inalienável e indivisível que, muito pleonasticamente, consagramos nos textos constitucionais, transformou-se em mero espaço de gestão de interdependÊnciasd, dependências e efectivas obediÊncias, nomeadamente quanto às decisões directamente vinvulativas, emanadas de Bruxelas, de Estrasburgo e dos Tribunais Europeus.

Não vamos ter, a curto prazo, golpes de Estado, rupturas de abastecimento, espectros de bancarrota nem invasões externas. O 25 de Abril e as suas consequências subepisódicas, nomeadamente o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro, foram, talvez, os últimos acontecimentos determinados maioritariamente por factores domésticos de poder.

Não é por acaso que começamos a falar mais de segurança do que de defesa e não será de estranhar, se continuarem as tendências para a consideração da inutilidade do serviço militar obrigatório, que o instrumento mais forte em termos de forças armadas sejam as forças militarizadas…

Como escrevi, a terminar um livrinho que editei em 1986:

Importa que os portugueses reencontrem a tradição democrática portuguesa. Que deixem de sentir a democracia como a adaptação de um modelo estrangeirado, como, de certa maneira, aconteceu com o nosso demo-liberalismo entre 1820 e 1926. Importa chegar à conclusão que só é novo aquilo que se esqueceu. para além das Revoluções e dos sucessivos situacionismos, há o mesmo povo, com as suas grandezas e misérias. Quem reler o Portugal Contemporâneo de Oliveira Martins, quase encontra os mesmos dramas político-pessoais perante outras circunstâncias políticas e sociais.

Encontra a mesma nação à procura do tempo perdido. Depara com a contradição permanente de uma comunidade de destino que teve direito a uma democracia portuguesa que gerou o municipalismo, a participação popular em Cortes em 1254, o primeiro Estado pós-feudal da Europa em 1385 e a primeira aplicação revolucionária das teorias da soberania popular em 1640. Uma democracia portuguesa que o absolutismo veio decepar, sobretudo, a partir do MarquÊs de Pombal, impedindo também que o demo-liberalismo posterior a 1820 pudesse coincidir com a tradição portuguesa.

O mesmo povo desta década de oitenta, traumatizado pela sucessão de absolutismos, ainda não conseguiu superar as consequências de quase meio século de autoritarismo, abruptamente interrompido por uma revolução que quase nos lançou numa ditadura comunista.

Importa esconjurar fantasmas e assumir a necessária libertação cívica. Uma democracia de cidadãos não pode consolidar-se se as sementes totalitárias não forem eliminadas.

Não vale a pena alimentar cesarismos, que sempre conduziram ao desespero, nem considerar a luta política como a continuação da guerra civil por outros meios…