MACAU: NA PROCURA DO ABRAÇO ARMILAR
Comunicação apresentada no ISCSP
30 de Outubro de 1997
©José Adelino Maltez
Macau, uma cidade-península com imprecisa superfície (4,8 km2 há oitenta anos; cerca de 7 km2, nos dias de hoje), quatro quilómetros no seu comprimento máximo, 1690 metros na sua maior largura, sobre um chão em movimento expansivo, dito, até há bem pouco, política de terras, onde os aterros vão secando as baías, as pontes atravessando as águas e os istmos destruindo as ilhas, numa confusão entre a terra e o mar que também leva àquelas águas turvas das interpenetrações do poder burocrático com as forças vivas do negocismo, mercê da especulação imobiliária e da consequente compra do poder, para não falarmos nas areias para os aterros trazidas da vizinha China, de onde também vêm os principais compradores dos prédios que se vão construindo.
Terra habitada por uma gente, ancorada ou flutuante, documentada ou ilegal, onde os extremos se reconciliam (Benjamim Videira Pires), onde os nossos (amicus, Freund) – portugueses ou chineses, conforme a perspectiva – sempre se misturaram com os bárbaros (hostes, Feind) – nome que todos os que se consideram o centro do mundo vão dando aos outros – desfazendo as teses de Carl Schmitt sobre a essência do político e pondo em causa aqueles que continuam a pensar as comunidades políticas dando primazia quase ontológica ao chamado instinto territorial e à necessidade de um espaço vital. Chão de sonhos, onde nós e os outros nos descobrimos pela amizade (poema chinês do século XVIII), mas também sítio de muitas perdições, essa Sodoma de vaidades, corrupção, jactância, prostituição e desvario, esse paraíso do jogo, dos jogos eróticos e dos próprios genes.
Tal local foi por nós chamado, em primeiro lugar, Amagao, e recebeu, depois, entre outras, as sucessivas designações de Porto do Nome de Deus, de Povoação do Nome de Deus de Amacao na China, até atingir o qualificativo de Cidade do Santo Nome de Deus (1585), a que se acrescentou, em 1642, o título de Não Há Outra Mais Leal. Está prestes a ser Região Administrativa Especial de Macau, sujeita à soberania da República Popular da China.
Um conjunto territorial a que, depois da Guerra do Ópio e de Ferreira do Amaral, acresceram mais cerca de 10 quilómetros quadrados das ilhas da Taipa (desde 1847) e de Coloane (desde 1864) e que foi sendo objecto de várias adjectivações político-jurídicas, conforme as modas reinantes em Lisboa, em termos de concepção do político e da linguagem do chamado direito internacional, quando este era fundamentalmente um direito colonial comparado. De assentamento a cidade, de estabelecimento (textos constitucionais de 1822, 1826 e 1838) a domínio (expressão do Acto Colonial de 1931), de província ultramarina (designação da lei ordinária de 1836) a colónia (expressão oficial, a partir de 1910), para voltar a ser província (revisão constitucional de 1951), até que, em 1976, de forma neutral e provisória, mas ainda sem data marcada para a saída, ficou apenas território. Porque, conforme a paráfrase do último deputado de Macau em Lisboa, Diamantino Ferreira – eleito em 1975 para a Assembleia Constituinte –, vivíamos num chão emprestado e em tempo emprestado. Com mais rigor internacionalista: território chinês, sob administração portuguesa.
Diremos que, hoje e desde o primeiro quartel do século XIX, Macau é uma cidade de matéria esmagadoramente chinesa, mas assente numa polis que os portugueses, depois de inventarem, quase a partir do nada, deram forma. Aliás, actualmente, nos talvez 400 000 habitantes do território, os portugueses que não são considerados chineses pela lei da nacionalidade da República Popular da China – reinóis, ou metropolitanos, e macaenses ou filhos da terra – não representam mais do que uns restritos 3% do total, apesar de haver cerca de 180 000 passaportes nossos. Deste modo se inverteu uma relação que ainda era de paridade entre comunidades étnicas no ano de 1800. Neste ano, existiam apenas cinco mil chineses no território, mas o número cresceu, logo em 1825, para 18 000, atingindo-se, no último quartel do século XIX, os cem mil. Nas primeiras décadas deste século deu-se novo desequilíbrio, com 145 000 chineses em 1920 e 200 000, um lustro volvido. Isto é, as convulsões internas na China, de guerras civis ou exteriores a mudanças de regime, transformaram Macau num lugar de refúgio ou numa porta aberta para o restante mundo. Ontem, hoje e talvez depois de 1999, Macau continuará a ser sítio de procura por todos os chineses que pretendem mudar de vida, isto é, por todos aqueles que, dentro do mesmo país, tratam de encontrar outro sistema.
Porque, antes de chegarem os homens de longas barbas e grandes olhos – esses bárbaros que comiam pedras (pão) e bebiam sangue (vinho), ainda por cima, utilizando as mãos … –, apenas existiam uma inicial aldeia rural, dita Mong Há Chun, e uma pequena aldeia de pescadores, A Van Kai, dando-se ao conjunto o nome de Ho-Keang (baía do espelho em forma de concha) ou Ou-Mun (porta da baía do espelho de mar).
Eis uma pequena cidade, quase um pucarinho de barro que ousou aconchegar-se no seio da gigantesca panela de ferro que sempre foi a China e que, entre 1841 e 1997, viveu acompanhada, no outro lado do delta, a 65 quilómetros, pelo couraçado e dourado pote da colónia britânica de Hong Kong.
Macau, cidade que alguns, entre os portugueses da Europa que conjugavam de forma colonial o verbo ter, sem perceberem o ser, julgaram nossa, mas onde, apesar de tudo, ainda hoje vão tremulando, ao sabor das brisas, dos tufões, das cíclicas monções e dos inesperados sismos, com intervalos de longas e abafadiças calmarias, tanto a bandeira das quinas como a formal soberania da República Portuguesa. Contudo, para além dos portugueses reinóis e dos filhos da terra, pouca gente se encontra que saiba usar o nosso linguajar, que aqui parece uma pequena casca de nós navegando no gigantesco oceano de chinês. Acresce que, para um português comunicar com um chinês, precisa, muitas vezes, de utilizar o inglês, do táxi ao hotel, do restaurante ao próprio comércio mais recente.
Vão longe os tempos em que, entre portugueses e chineses, se trocavam palavras, quando recebíamos expressões como chá e pinga, mas deixávamos pão, tomate, amigo e adeus, para não falarmos de algumas influências na designação dos dias da semana. São também antiquíssimas as memórias, segundo as quais, da China, nos chegaram a bússola, a pólvora, o chá, as tangerinas (ou mandarinas, em castelhano), a açucena, os crisântemos, as camélias, as esteiras, etc., dando-lhe nós em troca o milho, o amendoim, a batata doce, a alface, a couve, os agriões (ainda hoje lhe chamam a hortaliça de Portugal), a mandioca, a papaia, a anona, o ananás, a goiaba, a azeitona, o vinho, o café, o leite, o queijo, a manteiga, a maçã, as uvas, o tabaco, a melancia, etc., para não falarmos de uma galinha à portuguesa que, afinal, veio de Malaca.
Depois de quase cinco séculos, para além das efectivas consequências desse pioneirismo português nas relações entre os europeus e os chineses, ficam muitos ses sobre tal processo. E se Pequim se tivesse convertido ao catolicismo, sinificando-o? E se os jesuítas não tivessem sido expulsos pela fobia do Marquês de Pombal? E se Portugal tivesse tido forças, vontade e conveniência para o alargamento territorial de Macau, depois de 1839? E se Sun Iat Sen ou Mao Tse Tung tivessem acabado de vez com a administração portuguesa do território? E se Hong Kong nunca tivesse existido? E se o aeroporto tivesse sido construído nas décadas de sessenta ou setenta? E se houvesse um porto de águas profundas? E se existissem mais portugueses a falar chinês e muitos mais chineses a falarem português? De pouco valem estas conjecturas. Vale mais deter-nos na ditadura dos factos e na força dos sonhos, assentes nas estacas da realidade…
Aqui, onde Luís Camões terá passado e Bocage desesperou, aqui, onde Camilo Pessanha viveu, eis esta cidade de Macau, que, no dia 20 de Dezembro de 1999, se integrará, pela primeira vez na sua história de mais de quatro séculos, na soberania do Estado chinês, quebrando-se assim aquele ciclo imperial português, iniciado em 1415, com a conquista de Ceuta, onde, sob administração espanhola, as bandeira das quinas continuará, aliás, a flutuar.
Macau, onde, manda a humildade, que reconheçamos a nossa pequenez actual em termos de influência política e de capacidade económica, mas onde também não podemos esquecer a grandeza quase mítica de uma singularíssima história de relações com o Oriente, que ainda permanece tanto nalguma cultura portuguesa de feição universalista como em certa capacidade de relacionamento humano. Esse abraço armilar, segundo a qualificação do saudoso Almerindo Lessa, que, sendo passado presente, tem que continuar a mobilizar a nossa saudade de futuro.
Macau, a beleza de Macau, esse encanto que nos vem das memórias e das sensações de cumplicidade pátria, numa terra onde, paradoxalmente, a esmagadora maioria da população é chinesa e cujo vulgo ainda nos vê de forma indistinta, como meros ocidentais, pouco diferentes de britânicos, americanos e outros mais.
Macau, terra que não é possível conhecer numa simples visita que apenas dure uma semana. Terra que nem sequer pode chegar a conhecer-se com anos de permanência, se não ousar compreender-se o seu mistério. Terra a que, aliás, só pode aceder-se através de uma espécie de osmose, passo a passo, descobrindo, todos os dias, novos recantos, novas ruelas, novos pátios e, sobretudo, novas gentes e novas contemplações. Terra que não se entende se a tentarmos detectar pela lufa-lufa do stress turístico, nesse percorrer de lugares que todos temos que ver, para aí registarmos a nossa presença física, através de uma fotografia. Macau tem que se apreender pela vivência do quotidiano, deixando escorrer o tempo, sorvendo, pouco a pouco, o seu mistério.
Eis Macau, um processo ingenuamente democrático, de acordo com as mais íntimas, mais antigas e mais autênticas concepções portuguesas do poder político. Com aquilo que Jaime Cortesão imorredoiramente qualificou como os factores democráticos da formação de Portugal. A comunidade precedendo o governo, a assembleia que aparece antes do executivo, o concelho que precede a câmara, isto é, a adopção daquele princípio fundamental do processo democrático, segundo o qual o principado, ou governança, deve ser uma emanação da república, ou comunidade. Macau transformava-se assim naquilo que Almerindo Lessa qualifica como a primeira república democrática do Oriente. Aliás, o citado Cortesão, comentando a vitória de Macau sobre os holandeses, em 1622, considera que a causa da mesma esteve na origens e na organização social e política da cidade, fundação urbana puramente democrática, e que aproximava Macau, sob esse aspecto, dos grandes burgos medievais.
As teses negativistas sobre a presença portuguesa em Macau, confundindo a parte com o todo, mantêm, aliás, uma certa lenda negra sobre a dinastia de Aviz, não entendendo essa linha de criatividade universal que, depois de ter sido precoce no estabelecimento do reino – essa novidade dos séculos XII e XIII que leva à restauração da autonomia do político contra o império e o patrimonialismo feudal e que, aliás, foi feito à imagem e semelhança do concelho –, assinala um processo de expansão, num crescendo que vai da esfera armilar, de D. João II e de D. Manuel I, ao quinto império da geração do padre António Vieira.
De fora, colonialmente, só vêm o governador ou capitão (o militar) e o magistrado (o poder judicial), mas ambos passam a depender do jogo de poder local, até porque a segurança só pode pagar-se com os financiamentos mobilizados pelos residentes e com o conhecimento profundo das circunstâncias que os mesmos, juntamente com os missionários, detêm. Por outras palavras, o distante poder central fica condenado a confirmar e a conformar aquilo a que localmente se vai dando matéria.
No entanto, a distância dava o símbolo unificador e nunca a autonomia local se fez contra o nome de Portugal, o rei e a própria Igreja, dado que a lealdade a tal via de acesso ao universal constituía condição sine qua non da própria ontologia do estabelecimento.
Antes de receber foral, a terra já passara de estabelecimento, ou assentamento, a povoação e, desta categoria, a cidade. Porque, primeiro, chegou a solidariedade horizontal da Misericórdia e do hospital e só depois se fixou a fronteira.
A pequena polis que recebeu o nome de uma prévia deusa local, logo construiu uma igreja, primeiro de madeira e, depois, de pedra, confirmando-se assim o predomínio do animal de trocas, materiais e espirituais, sobre o animal de guerra.
Uma perspectiva que já em 1547 era reconhecida por um funcionário chinês, Lam Hei-Yuen: os portugueses não invadiram as nossas fronteiras, não mataram a nossa gente, não nos roubaram e os chineses desejam comerciar com eles.
Aliás, nas relações com a China, os portugueses de Macau, como salienta o Padre Benjamim Videira Pires, no seu magnífico trabalho de 1988, Os Extremos Reconciliam-se, continuando uma imagem do Padre António da Silva Rego, em vez da postura do antes quebrar que torcer, sempre tiveram uma política de flexibilidade como a do bambu, que dobra, mas não quebra, onde torcemos sem quebrarmos. Por exemplo, em 1573, quando foram levantadas as Portas do Cerco, nunca tivemos nelas ameias guarnecidas com peças de artilharia nem outros fortes anteriores voltados para ela. As bocas dos canhões sempre estiveram voltadas para o mar, de onde poderiam vir os piratas e os salteadores, principalmente os nossos aliados cristãos e ocidentais…
As circunstâncias impunham-se, até porque os chineses facilitaram o assentamento em tal local, considerando-o como um mal menor, preferindo um porto cercado de terra china por todos os lados e, aliás, frequentado por piratas, do que uma ilha isolada e mais distante de terra, donde poderíamos desferir ataques com a flexibilidade e a força dos nossos navios. Assim se cumpriram os clássicos preceitos da arte da estratégia, segundo os quais as potencialidades podem tornar-se vulnerabilidades e as vulnerabilidades, potencialidades.
O gigantismo da multidão dos chineses, que não tinha a tecnologia dos nossos navios nem as nossas peças de artilharia, preferiu remeter-nos para um porto interior, fazendo-nos depender do abastecimento de víveres e água, e das ameaças de embargo sobre o sal, de encerramento do comércio, da saída dos chineses residentes e do mandar a pique os nossos barcos estacionados no porto. E nós, fechada a hipótese de utilização da força dos soldados, tivemos que usar dos factores imateriais do comércio, da religião e da cultura. Da mistura dessas forças e fraquezas, nossas e chinesas, nasceu Macau, condenado, desde sempre, ao diálogo de culturas e à mistura de civilizações, para não falarmos do cruzamento de genes, ficando-nos uma cidade cheia de semi-portugueses e de semi-chinas, e que, pelo menos, durou quatro séculos.
Em 1614 o Vice-rei de Cantão Chang Ming-Kan, em memorial apresentado à Corte Imperial ainda salientava: alguma gente é de opinião que os portugueses devem ser afastados para Lang-pai ou apenas autorizados a comerciar connosco a bordo dos seus navios, que devem permanecer em mar aberto. Na minha opinião, não devemos recorrer à força das armas sem pesar devidamente as consequências. Uma vez que Macau se encontra dentro dos limites do nosso país … sabemos como colocá-los às portas da morte ao primeiro sinal de deslealdade. Mas se os empurrarmos para o mar aberto, como podemos castigar os malfeitores estrangeiros e como podemos mantê-los submissos e defender-nos contra eles?
Um processo democrático que foi, muitas vezes, objecto de incompreensões pelos que como tal se proclamavam em Lisboa, principalmente a partir de 1820, quando os radicais liberalistas, confundindo tradicionalismo com absolutismo, sem perceberem que, muitas vezes, continuavam absolutistas, trataram de usurpar a plurissecular autonomia das instituições locais de autogoverno, comprimindo as liberdades e os privilégios foraleiros do Senado, quando substituíram as entidades eleitas por funcionários de nomeação e usaram, quase exclusivamente, do poder de um delegado militar do poder central, o governador, essa entidade que efectivamente estava ligada à qualificação que os chineses lhe davam de cabeça de soldados.
Macau, que fora obra de comerciantes, navegadores, missionários, degredados e aventureiros, onde sempre faltaram os soldados, acabou por ser dominado, neste último século e meio, por oficiais graduados em políticos. Até porque alguns políticos para lá despachados, não raras vezes, trataram de servir-se, em vez de servirem, comissionando o que devia ser missão…
A partir do Marquês de Pombal e com os decretos de Joaquim António de Aguiar chegou a vaga do anticlericalismo, comprimindo e quase liquidando essa forma de extensão do poder português que era actuada pelas congregações religiosas, não faltando sequer que o poder lisboeta despachasse representantes das nossas associações secretas como delegados do poder central, que, brincando com o fogo das seitas chinesas do mesmo teor, quase conduziram ao desastre da nossa presença.
Mais recentemente, alguns prosélitos portugueses de ideologias exóticas tentaram um abandono em nome do internacionalismo, como se fosse possível ensinar o padre nosso ao vigário, isto é, ao universalismo tradicional de chineses e portugueses. Para vergonha da cabeça do Império, mas para bem do nome de Portugal, valeu-nos a fidelidade, o sentido de honra e o respeito pelo princípio da continuidade das instituições históricas, manifestado por alguns filhos da terra e outros tantos chineses, bem como as excepções de alguns enviados de Lisboa, que conseguiram, apesar de tudo, vencer as tormentas do PREC e aquelas desditas corruptas da pós-revolução que procuraram em Macau algumas prebendas e outras tantas postas para o sôfrego clientelismo dos detentores do poder lisboeta.
O plano que pretendia integrar a variedade e a diferença de Macau num todo unidimensional, sujeito a modelos imperiais alienígenas, não podia ser concretizado e vinham ao de cima os métodos tradicionais da nossa diferença. Aliás, as seitas chinesas logo arranjaram uma lucrativa actividade, quando, a partir de Macau, organizaram o célebre tráfico dos cules, a emigração, mais ou menos forçada, de mão de obra chinesa para a Malásia, Bornéu, Austrália, Cuba e América do Sul, ao mesmo tempo que continuavam outros contrabandos, incluindo o do ópio. Refira-se que o tráfico de cules, começado em 1851, durou até 1873, constituindo uma fonte extraordinária de rendimentos para o território.
Macau continuava um acaso nascido de uma efectiva e profunda necessidade. Em Macau, os portugueses reinóis, os filhos da terra e os chineses residentes iam fazendo história, sem saberem da história que iam fazendo, para parafrasearmos Alexis de Tocqueville. E, obedecendo àquele instinto que manda submeter-nos para que sobrevivamos, ao mesmo tempo que impõe que lutemos para continuarmos a viver, contornaram a revolta dos Taipingues e dos Boxers, o turbulento processo da implantação da república na China, bem como as posteriores guerras civis e a própria instalação do maoísmo.
Julgo que só com o esotérico das esperanças de Portugal no futuro do mundo podemos entender o percurso de Macau, esse supremo hibridismo que tanto se mostrou legítimo como eficaz. Esse resto do Primeiro dos Impérios que os portugueses, continuando Alexandre, puderam edificar. Esse milagre que se foi tecendo por conclusão, onde as virtudes públicas aconteceram, mesmo quando assentaram em vícios privados.
Não concordamos com Gilbert Durand, quando este salienta que o sebastianismo é … uma espécie de quixotismo lusitano que afirma a surrealidade do sonho em que vive um povo contra as mesquinhas verdades do Sancho Pança, dado que, muitas vezes, chegámos ao sublime do Quinto Império, utilizando as próprias manhas do Sancho Pança, que sempre ousámos a aventura sem desdenharmos o pragmatismo.
A história Macau é um excelente laboratório que prova este escrever direito por linhas tortas segundo a política da flexibilidade do bambu. Figuras controversas, como o Ouvidor Miguel Arriaga, fazem parte de uma galeria, ainda recentemente continuada, onde se demonstra que podem ser atingidos objectivos patrióticos sem limpeza de mãos, havendo também o inverso, isto é, impolutos e garbosos servidores públicos que fracassaram por serem de antes quebrar que torcer.
E valerá a pena recordar que alguns dos nossos mitos literários que passaram pelo território caíram naqueles vícios que só nos traseiros do Oriente se encontram, no exacto inverso de muitos degredados que aí acabaram por seguir a via da regeneração?
O facto é que Macau, apesar das valetas do sórdido e da podridão, sobreviveu como a flor que nasce do lodo. E talvez possa continuar o seu ciclo de esperança depois de 1999.
Éramos no século XVI pouco mais de três milhões de almas, apertados entre o oceano e o muro de Castela. Tínhamos sobretudo fome de terra e dessedentámo-la no mar. E, pelo Atlântico, a caminho do sul, depois de dobrarmos a Boa Esperança, começámos a nortear.
Quisemos a Índia que visionámos do rio dos Bons Sinais. Mas a própria Tapobrana não bastou. Descemos para Malaca e voltámos a subir, flanqueando o Grã Catai, pelo mar oriental. Pousámos na encruzilhada de Macau, situada estrategicamente entre Goa e o Japão e que também vai servir para seguirmos China dentro.
Tudo acontecia quando os Habsburgos de Madrid e de Viena comandavam a resistência europeia à pressão turca, vencendo em Lepanto (1571) e em Viena (1638). Quando os russos começavam o avanço cristão para Leste (vencem em Kazzhan em 1552 e conquistam Nerchinsk em 1689). Na mesma altura em que os espanhóis se estabeleciam nas Filipinas (1570). E depois de termos conquistado Ceuta (1415), Goa (1510), Malaca (1511) e Ormuz (1515). Depois de Vasco da Gama, de D. Francisco de Almeida, de Afonso de Albuquerque e de D. João de Castro.
Mas onde o modelo ofensivo da Blitzkrieg de Albuquerque não pôde repetir-se, depois da tentativa falhada de Simão de Andrade. Recorrendo, então, à táctica do doux commerce de Leonel de Sousa, fomos ficando, mas acrescentando-lhe as da religião, bem como as armas dialogantes da política e as manhas da diplomacia, apesar de, por vezes, termos caído na tentação do chicote e da fanfarronada dominadora. Mas sem nunca deixarmos de mobilizar o arcabuz e o canhão, usados ciclicamente contra os inimigos convenientes, isto é, os inimigos comuns de chineses e portugueses, desde os piratas chineses aos corsários ocidentais.
E assim fizemos, até hoje, a nossa peregrinação permanecente nessas paragens. Tínhamos uma estratégia que era animada pela ideologia de um humanismo católico renascentista e ainda vigorava alguma coisa da raiz relativista de um aristotelismo tomista, restaurado pela neo-escolástica da Contra Reforma, segundo os quais a verdade tem sempre um bocado de erro e o bem, sempre um bocado de mal, tal como a verdade tem muitos erros e o bem, alguns pedações de mal. Uma doutrina para a qual as essências só se realizam através da existência e pela consequente aplicação dos princípios gerais às circunstâncias. Esse realismo não desligado dos princípios que nos permitiu conciliar o pragmatismo e a aventura, sem recurso às drogas estáticas da utopia e da ucronia, porque, como referia Camões, vale mais experimentá-lo do que julgá-lo, deixando as especulacionices para que o julguem os que não podem experimentá-lo.
Tínhamos também a táctica precisa de enquadrar o small is beautiful da pequena polis macaense no grande quadro da república maior do reino de Portugal, como o demonstraram as lealdades de Macau durante a guerra da Restauração e as invasões francesas, quando o intermediário goês mais foi ajudado do que pôde ajudar.
Trazíamos connosco a experiência de um reino filho da Europa da respublica christiana, num ambiente universalista que conseguia conversar com o Império Celeste, onde também vigorava o império da ideia e o governo pelo pensamento. Sendo fiéis a Portugal, íamos além de Portugal, mobilizando pretensos estrangeiros como São Francisco Xavier ou Mateo Ricci, sem esquecermos todos esses africanos, asiáticos e insulíndios que, connosco, deram o corpo nos combates de vida e de morte para bem do nome dessa super-nação ainda por cumprir, desse projecto maior que nos irmanou.
Segundo a Declaração Conjunta do Governo da República Portuguesa e do Governo da República Popular da China, assinada em Pequim em 13 de Abril de 1987, o governo de Pequim passará a assumir o exercício da soberania sobre Macau a partir de 20 de Dezembro de 1999, data a partir da qual se estabelecerá uma Região Administrativa Especial de Macau, dentro da República Popular da China e directamente subordinada ao respectivo Governo Central, onde manter-se-ão substancialmente inalterados os actuais sistemas social e económico, bem como a respectiva maneira de viver durante cinquenta anos, pelo que a região poderá por si própria definir as suas políticas de cultura, educação, ciência e tecnologia, bem como as suas políticas orçamentais e fiscais, tendo como línguas oficiais o chinês e o português.
Macau, esse originário concelho medieval que, primeiro, teve o consenso dos mercadores e missionários e, só depois, foi super-estruturado por burocratas e soldados, poderá assim continuar a cultivar a memória de ter sido uma pequenina república portuguesa. Talvez seja esse um dos melhores seguros de garantia para resistir face ao rolo compressor uniformista do grande Estado Continental onde se inserirá.
Não temos ilusões quanto a poder continuar a funcionar o small is beautiful da pequena polis, mesmo que compensado pelo pragmatismo do buscar canela, nem que possa ser reanimado o fazer cristãos. A actual herança macaense que se integrará na República Popular da China já pouco tem a ver com a memória de autogoverno da comunidade dos séculos XVI e XVII, tanto nos aspectos de organização política como no próprio equilíbrio étnico e religioso que lhe deram ser. A crescente sinificação do território nos séculos XIX e XX e a inevitável resposta da nossa gestão colonial, até pela integração nas realidades geopolíticas posteriores à guerra do ópio, retiraram base de apoio a tal projecto. Aquilo a que hoje damos o nome de Macau é apenas vaga memória de um tempo que já não há: inverteram-se esmagadoramente as relações étnicas; quase desapareceram os restos de filhos da terra; e os portugueses, que por lá ainda estão, só formalmente são descendentes dos portugueses que desembarcaram. Apesar das excepções confirmarem a regra. Daí a contradição de sairmos sob o comando de um cabeça de soldados sem soldados, mas com garantia de fidelidade face às brumas da memória e um certo sentido de Estado.
O sonho da língua portuguesa poder volver-se na língua oficial de mais uma das minorias nacionais integradas na grande China não passa de mero símbolo que não depende do voluntarismo, optimista ou pessimista, dos gestores da actual administração pública do território. Resta a honra de ainda poder haver alguns, embora poucos, militantes do sonho português de Quinhentos, desses para quem ser português implica um saber de experiência feito e pela experiência pensado. Não o veni, vidi, vinci de quem traz os manuais de acesso à verdade já todos escritos, esse chegar, ver e concluir, conforme a tese prévia que se procura demonstrar com bocadinhos da experiência.
Porque são sempre possíveis argumentos feitos com pedacinhos destacados da realidade e que conseguem dar ar de justificação a qualquer hipótese. Não! O que vale é procurar compreender, apanhar as coisas da realidade em conjunto, coisa com coisa, todas as coisas no todo, tentando chegar ao global, detectando que cada coisa parcelar pode ter o sentido do todo. Que no singular, na diferença, pode, e tem que estar, o universal.
Talvez seja esta seja a maneira portuguesa do europeu aceder ao universal. O respeito pela diferença dos outros e a tentativa de assumirmos a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações, como diria Toynbee, para que, expatriando-nos nas nossas próprias origens, possamos dialogar com o outro, conforme o conselho de Heidegger.
Portugal, como entidade estadual, nunca teve soberania sobre o território. Os portugueses chegaram a Macau antes de haver o conceito de Estado e antes de haver o conceito de soberania.
Diremos, a respeito da perspectiva absolutista do soberanismo, que vai dominar a teoria oficial portuguesa até aos tempos mais recentes, que Macau foi bem diferente das praças do norte de África, porque, para tal sítio, não fomos fazer a guerra, nele deixando, apesar de tudo, uma pequena comunidade mista de filhos da terra, que faltou em Marrocos. Aí, a convivência e a simbiose foram e são mais fundas que a nossa passagem pelo Magrebe, apesar de, nas pedras, não sermos tão resistentes, como no norte de África.
Aliás, tal mistura lusotropical chegou ao final do século XX, apesar da distância e das abissais diferenças entre a China o Ocidente.
De certo que houve intolerância. Houve muitos soberanistas e alguns outros esclavagistas, mas estes talvez tenham sido compensados pela paixão do diálogo e pelo interesse no negócio.
Viemos à procura de bugigangas, enquadrados pelos que acalentavam fazer cristãos e, comerciantes e missionários, uns e outros, quando aqui pousaram, sempre usaram a espada embainhada.
Aqui chegámos antes de podermos trazer a soberania. Aliás, só Ferreira do Amaral com fortalezas e fronteiras vai tentar implantar o que nunca podia ter havido até então.
Aqui não se deu a chamada exportação do Estado referida pelo falecido Professor Doutor Jorge Borges de Macedo. Pagávamos foro de chão, os chineses tinham alfândegas dentro do território de Macau e os mandarins chineses assumiam jurisdição criminal sobre os chineses residentes e reclamavam-na relativamente a portugueses que ofendessem o Imperador. Da mesma forma, o Senado de Macau praticava uma constante negociação com as autoridades chinesas, utilizando meios irregulares de pressão e negociação, como as ofertas e os subornos.
Os dogmas do soberanismo e do centralismo administrativista da modernidade política que marcam o edifício do Estado a que chegámos fazem com que pareçam naturais modelos políticos artificialmente instituídos pelas terapias de choque do terrorismo de Estado absolutista e pelo construtivismo das reformas administrativas do liberalismo que, entre nós, passaram pelo terramoto pombalista e pela instituição dos modelos de reforma administrativa da primeira metade do século XIX com que acedemos ao esquema organizacional napoleónico, desde o centralismo de Mouzinho da Silveira ao concentracionarismo de Costa Cabral.
Aliás, foram estes chicotes lisboetas que aqui tiveram reflexo com a instituição da omnipotência do governador, delegado da soberania, da Coroa ou da República, nomes que fomos dados à abstracção do Estado.
Sopra uma brisa fresca e as árvores agitam-se levemente. Ao longe a Ilha da Lapa, numa breve aguarela de um cinzento acastanhado. Aliás, nesta terra, em cada dia que passa, surgem novas cores, com a variação da tonalidade do horizonte, pelo que a paisagem nunca corre o risco de monotonia. As mesmas coisas, conforme os dias, são outras coisas. Os próprios sítios passam a depender das circunstâncias do tempo, da atmosfera que os envolve, desde a densidade do ar aos próprios sons que os rodeiam.
Aqui ficámos pelo comércio, pela religião e pelo prazer do exótico. Aqui ficámos porque quisemos fugir de Portugal, procurando Portugal fora do próprio Portugal. Aqui ficámos para podermos ser portugueses à solta, excedendo-nos, a fim de nos diluirmos em todos os outros.
Ainda hoje Macau conserva resquícios de uma longa tradição de real autogoverno, apesar da cobertura que lhe é dada pelo diáfano manto da legalidade e da administração pública portuguesa, tal como antes se fingia a existência de uma colónia plenamente integrada no império português. Com efeito, não é Macau que está dependente de Lisboa, dado que, desde há muito, é o próprio status de Macau que determina as decisões de Lisboa quanto aos interesses de Macau.
E a China nunca esteve arredada deste processo, tendo algo mais que a mera influência no governo do território. Partidos, ainda hoje, não existem, dado que dominam os lobbies formais e informais, transformados em verdadeiros canais de poder.
Neste sentido, Macau aproxima-se de uma espécie de corporacionismo presidencialista, dado que a síntese de todo este paralelograma de forças acaba por ser o governador que, sem forças de bloqueio institucionais, face à não existência de efectiva separação de poderes, acaba por ser uma espécie de Vice-rei que concentra as funções executivas, legislativas e moderadoras. Tem sobretudo o poder confederativo de que falava John Locke, o poder de representação que lhe advém das relações externas.
Aliás, o regime ainda hoje vigente é tipicamente colonial, advindo-lhe a autoridade do flutuar da bandeira portuguesa nos mastros oficiais e nos mastros imateriais do prestígio.
Acresce que o governador não tem, como fonte da respectiva legitimidade, qualquer ligação à vontade popular, difícil de canalizar-se, até pela circunstância de só uma restrita minoria da população estar territorialmente enraizada pela nascença ou pela residência permanente.
O regime não é efectivamente democrático, embora exista uma democracia da sociedade civil integrada nos quadros de uma autoritarismo tipicamente colonial, dado que a Assembleia Legislativa já não é o auto-organizado Senado de antigamente.
Do mesmo modo, existe uma sociedade pluralista que é, ao mesmo tempo, uma não sociedade aberta.
Finalmente, se procura instituir-se um Estado de Legalidade, não funcionam, nem podem um funcionar, os mecanismos de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
Macau já não é a república de antanho, nem pode volver-se na fortaleza de uma qualquer cidade-Estado. Ficou um principado negociado entre Lisboa e Pequim, sem qualquer intervenção daquilo que o Senado, ainda em 1808, reconhecia como os seus negócios estrangeiros. Desapareceu a comunidade que lhe dava suporte. E não pode haver democracia numa megapolis, a não ser que se decrete o apartheid ou que se consiga um altar ou outro qualquer símbolo que gere uma comunhão pelas coisas que se amam.
O tempo de Macau vai chegando ao fim. Olho o último entardecer nestas terras com o sol caindo por trás dos montes da China que se acumulam na distância num sombreado sucessivamente esbatido. A calma domina. Do cimo da colina da Taipa, vou olhando os dias que passei e revivendo as sensações. Ao longe, seguem os jetfoils para Hong Kong. Olho o cair do dia dentro de mim, despeço-me desta cidade com este humor merancórico, com esta dor da saudade que nos distingue por dentro daqueles outros que não sentem o esotérico português.
Aqui é impossível sermos eurocêntricos, mas devemos ser europeus e portugueses, mesmo quando falamos para não europeus e para não-portugueses. Porque todo o pensamento tem uma pátria; porque só através da autenticidade das nossas raízes podemos aceder ao universal e dialogar com outros pensamentos, outras pátrias, outras formas de aceder ao universal.
O resto é cosmopolitismo balofo, mundialismo de pacotilha, pretensiosismo que sempre disfarça uma efectiva vontade colonizadora, mesmo que os agentes palrantes da mesma o façam inconscientemente, servindo como idiotas úteis de um projecto a que são alheios.
Talvez Macau não acabe em 1999. No dia 20 de Dezembro desse mesmo ano, cerca de dois anos e meio depois de Julho de 1997, data da devolução à China de Hong Kong, deixará de ser hasteada a bandeira da República Portuguesa neste território, mas Macau há-se permanecer a cidade de Macau, sob administração chinesa.
Ser fiel a Portugal há-de ser, a partir de então, manter a lealdade básica face a uma criatura que os portugueses contribuíram para fazer nascer, crescer e desenvolver. O mistério de Macau passará, a partir de então, por saber se a personalidade dessa entidade vai ou não resistir à vaga unidimensionalizadora dessa megapolis que é a República Popular da China.
Alguns apostam em pedras de calçada, no cimento armado e no betão das grandes obras, ditas de regime. Outros nas televisões, nas bibliotecas e nas instituições de ensino. Certos tácticos falam mesmo na potencialidade disseminadora dos quadros intermediários da administração pública localizada. Mas a fase das grandes obras públicas terminou com a nova ponte, o aeroporto e o centro cultural ainda em construção. E sentimos falta de tempo nessa apressada aposta nos bens imateriais. Alea jacta est…