Set 11

Twin Towers

Nova Iorque, a capital da nossa breve aldeia global, essa cidade feita quase por subscrição mundial, foi ferida de morte no postal ilustrado do seu próprio coração. Tudo aconteceu num dos últimos dias do primeiro Verão do século XXI, quando um breve fio de linho nos fez passar da ficção para a realidade, dos efeitos especiais hollywoodescos e dos simuladores de jogo da microsoft, para o eterno mistério da divina dignidade humana, através da exposição pública, e em directo, da íntima banalidade do mal. Eram duas torres gémeas, orgulhosamente feitas com a fragilidade do aço e do cristal, onde se concentravam algumas das principais sedes da geofinança que, muito higienicamente, iam maquinando negócios e especulações que, hora a hora, afectavam a vida de milhões de homens. De um momento para o outro, alguns guerrilheiros suicidas, treinados pelos sucessivos Lawrences da Arábia dos nossos serviços secretos, e armados com canivetes, decidiram não obedecer ao guião do produtor e, invertendo a posição das armas, fizeram sair o tiro pela culatra, em nome ódio. Afinal, esta bela ordem mundial, procedente de Yalta, esta paz dos vencedores, imperialmente comandada, que durante meio século nos iludiu, inventou demónios fora de nós mesmos, dizendo que o inferno eram os outros, quando, afinal, eles estão dentro de nós mesmos e não serão exterminados se, muito cientificamente, apenas assassinarmos aqueles que pensamos ser os mandantes do crime. Uns falam no ataque à própria democracia, outros num confronto entre a civilização e a barbárie, numa eterna luta do mal contra o bem. Muitos tratam de justificar o horror, usando argumentos cobardes, com um pau de dois bicos que recordam Hiroshima e Nagasaqui. E alguns outros alibis se vão lançando. Repetem-se anedotas sobre a burrice de Bush, não se reparando que a presidência norte-americana é, sobretudo, uma instituição, onde, conta mais a pilotagem automática do que a interpretação do actor que a representa. Não faltam sequer os comunistas cunhalistas que retomam os tiques escleróticos de certos discursos da guerra fria. Sei tudo isto, mas não quero lavar as mãos como Pilatos. Prefiro sujá-las no apoio que conscientemente dou às instituições da república norte-americana e aos líderes incontestados do bloco de aliados a que me orgulho de pertencer. Mas não posso deixar de dizer, angustiadamente, que, para além da necessária acção de polícia reprimindo os prevaricadores, importa dar força a um mais eficaz direito internacional. O compreensível e necessário acto de polícia, capaz de lancetar o terrorista, não deveria ser qualificado como acto de guerra, dado que este último depende da incerteza quanto ao vencedor, joga na roleta do acaso e na incerteza do jogo de morte. Queria que a acção de punição fosse duradouramente eficaz, sem necessidade de guerra, que sempre foi um terror institucionalizado e legalizado, assente no esquecimento de muitas outras “twintowers”, onde quem com ferro mata com ferro morre. Prefiro Kant a Rambo. O tal acto punidor que se avizinha, visando eliminar os autores morais e materiais do horror a que todos assistimos, pode ser terapêutico, mas nunca será suficientemente preventivo se não houver coragem para a criação de uma semente de Estado de Direito Universal. Sugiro que os norte-americanos, em nome dos princípios da bela constituição que os gerou, adiram, agora, aos modelos do tribunal penal internacional. É evidente que o mundo, aqui e agora, não vai vencer o inferno e aceder à salvação, que só a eventual vida eterna e a paz dos santos nos pode trazer. Mas, porque não somos anjos, mas homens, que caem e se levantam, que pecam e se arrependem, também não somos bestas. O mundo é imperfeito, mas podemos aperfeiçoá-lo, criando instrumentos para um mundo menos mau, ao contrário do que proclamam os Hobbesianos, desesperados com o homem-lobo-do-homem, sempre em luta com os adeptos da utopia, à procura do bom selvagem. Apesar de não ser adepto do pacifismo da paz dos cemitérios, julgo que todas as guerras são inconscientes nos seus mortos. Em todas as guerras do bem contra o mal, mesmo quando o bem triunfou, sempre perdemos muitos pedaços de bem. Em todas as guerras, os guerreiros sempre contabilizaram, de forma utilitarista, que os actos de violência são menos violentos do que os estados de violência que se combatem. Tenho medo que o mundo entre em regime de loucura sem regresso, caso se opte pelo aventureirismo da Lei de Talião e o instinto de “cowboy” esmague o sentido do “rule of law”. Porque se os norte-americanos seguirem a puritana sede de vingança, sofrerão a frustração de não poderem cumprir os respectivos objectivos. Seria trágico cairmos na tentação do conflito de civilizações, de cruzadas contra guerras santas, onde cristãos e muçulmanos, se deixem enredar no fanatismo cego de todos os talibans e inquisidores que temos dentro de nós, mesmo quando satirizamos os diáconos remédios. O terrorismo é uma das raízes permanecentes das sociedades contemporâneas. Todos os agentes da Razão de Estado, que com ele, agora, se alarmam, já, outrora, o instrumentalizaram. Todas as ideologias justificaram guerrilheiros do bem contra o mal e elaboraram teorias de guerras justas, quando não de guerras santas. Só abandonamos as teses de Hobbes quando tememos que a violência destrua as flores do nosso quintal. Porque tem razão quem vence e nem sempre vence quem tem razão. Porque a terra de ninguém que separa o amigo do inimigo acaba sempre por ser uma espécie de jogo de soma zero, onde se anulam as virtudes os defeitos de ambas as partes. Há palavras que matam. Há silêncios que são cúmplices do terror. Há ideias com boas intenções que, quando mal interpretadas, nos podem conduzir ao inferno do terror. Já fizemos de milhares de mortes um registo de frieza estatística que guardamos nas páginas coloridas de uma revista. Já todos contribuímos para esse grande pecado que é a banalidade do mal. Mas não nos esqueçamos que, desta, só sairemos se combatermos o crime, não pela guerra, mas por essa anti-razão ao serviço da razão, a que damos o nome de direito. Prefiro Kant a Rambo. O primeiro é real, o segundo, uma figura da ficção.