Qualquer observador isento consegue notar que, no último quartel do século XX, Portugal passou, do sonho imperial, à claustrofobia de um pequeno quintal europeu, com esta sensação de nos termos minimizado como um “pequeno Estado”, sempre em risco de se tornar mais uma província do Estado espanhol e de se diluir no grande espaço liderado pela locomotiva franco-alemã.
Na verdade, cada europeu passou a estar dependente de dois centros: o do Estado clássico e o do novo pólo supra-estadual, para onde se vão transferindo directamente os poderes tantos das velhas comunidades, pela via da cooperação política, como dos próprios cidadãos, através da integração política, surgindo novas lealdades e expectativas, com os consequentes conflitos de sonhos e frustrações.
Emergiu assim uma unidade nova, sem Papa, sem Império e sem totalitarismo, misturando “a hegemonia dos mais fortes” com “o consentimento real dos menos fortes”, segundo as proféticas palavras de Raymond Aron. Uma tensão entre as tendências centrípetas, que apelam para a associação de povos e para a soberania divisível, em nome de um novo pólo, e as resistências centrífugas, que preferem a associação de governos, a soberania indivisível e a regra da unanimidade.
Infelizmente, no plano doméstico, talvez ainda permaneça aquilo que Fernando Pessoa qualificou como a atávica “oligarquia das bestas” que marca os nossos sucessivos devorismos, sendo impossível mobilizar a memória dos setembristas de Passos Manuel para que permanentemente se denunciem tanto os Cabrais como os seus bastardos fontistas, mesmo que as inevitáveis Convenções do Gramido nos continuem a condicionar.
Logo, os portugueses que não são meros “ovençais” das ministeriais figuras, os que não querem continuar “bonzos”, entre “endireitas” e “canhotos”, como se direita e esquerda fossem posições ontológicas, só passíveis de benzeduras teológicas, têm de continuar a lutar contra todos os despotismos
Só os que querem ser cegos, surdos e mudos é que não reparam na circunstância das nossas oligarquias instaladas terem perdido a vontade de independência nacional. De outro modo, no Congresso da Justiça, ter-se-ia discutido o papel das multinacionais do direito como conselheiras privadas dos negócios de Estado, apesar dos muitos visíveis periscópios o denunciarem. De outro modo, perceberíamos que as recentes compras do capital castelhano têm a ver com a crescente independência da Catalunha e do País Basco, hábeis na navegação nos mares confusos do europeísmo e da globalização, e que está próximo um 1640 ao contrário, com a cobertura dos novos senhores do mundo.
Só quem nada percebe de grupos de pressão e de grupos de interesse é que não entende o processo de actuação dos serviços secretos estrangeiros em Portugal, onde, em vez dos mitificados espiões, opera a simplicidade da “pay list”, onde se acantonam intelectuais corruptos, professores vendidos, gestores partidários à procura de financiamento não registável, ou rapazinhos de província que, chegados à classe política, depressa são afogados pela lisonja da diplomacia do croquete.
Para cúmulo da confusão, alguns dos mais destacados agentes da compra do país são os mesmos que assumem publicamente o paradigma do patriota, do anti-corrupto e do intelectual impoluto. Nas águas turvas do negocismo e da política, o crime continua a compensar. Só que a maioria dos portugueses talvez tenha, como preço, o não ter preço.
E pode acontecer que um “anticomunista primário”, como o subscritor destas linhas, se veja obrigado a subscrever as conclusões de um recente artigo de Miguel Urbano Rodrigues, publicado no “Avante”: “o exemplo de firmeza, coerência, coragem e lucidez dos nossos compatriotas que há seis séculos tornaram possível a vitória de uma grande revolução democrática e nacional pode e deve ser um estímulo na luta contra a ameaça à soberania nacional que acompanha a progressiva colonização do país pelo capital espanhol. Aquilo que não conseguiu pela força das armas, tenta a Espanha de Aznar e das transnacionais obtê-lo agora pelo poder do dinheiro. A Resistência a esse projecto imperial anuncia-se como um dos maiores desafios que o povo de Portugal enfrenta neste início do século XXI”.
Monthly Archives: Dezembro 2003
Orlando Vitorino, presente!
O recente falecimento de Orlando Vitorino obriga-me a que, aqui e agora, preste uma breve homenagem a um dos últimos representantes do movimento da “Filosofia Portuguesa”. O autor de Introdução Filosófica à Filosofia do Direito de Hegel, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, da Exaltação da Filosofia Derrotada, Lisboa, Guimarães Editores, 1976, e da Refutação da Filosofia Triunfante, Lisboa, Guimarães Editores, 1983, sempre olhado com desconfiança por certos universitários, cumpriu o seu dever de ter vivido como pensava e até teve a coragem de esboçar uma filosófica candidatura à presidência da república.
Coube-lhe a ousadia de lançar a primeira tradução portuguesa da Filosofia do Direito de Hegel, nos começos da década de sessenta do século XX, para, década e meia depois, também introduzir, entre nós, o pensamento de Hayek, O Caminho para a Servidão, Lisboa, Teoremas, 1977.
Bastavam estas duas iniciativas para lhe assegurarem um lugar perene na cultura portuguesa e para se compreender a razão do respectivo isolamento, e até da própria condenação ao silêncio.
Ele tinha compreendido que “os gregos chamaram cidade ao que nós chamamos Estado” e “chamaram política ao que nós chamamos Direito”. Por isso, proclamou que “Portugal é simultaneamente um Estado e uma Pátria”. Definindo a nação como “o conjunto das gerações ‑ passadas , presentes e futuras ‑ de portugueses”, considerava a pátria como “a entidade espiritual de Portugal”, que “exprime‑se, existe e perdura na língua, na arte e na história”.
Como Orlando Vitorino, também assumimos a república como “a coisa pública que reúne o que é comum interesse, virtual ou manifestamente imediato, de todos os portugueses”. E que o Estado não passa da ” efectivação do Direito ‑ na Nação, na República e na Pátria ‑ segundo a Verdade, a Liberdade e a Justiça”.
Logo, também subscrevemos que “a Nação, a Pátria e a república carecem de um poder real destinado a defender a sua perduração e a assegurar a positividade daquilo que, segundo a definição dos Princípios constitucionais, a cada uma delas é próprio. Esse poder é o Estado”
Como poucos, compreendeu que “o direito grego foi sistematizado por dedução do princípio da verdade”. Que “o direito romano por dedução do princípio da justiça”. E que “o direito moderno por dedução do princípio da liberdade”.
Foi, por isso, um neoclássico, portuguesmente enraizado, e só dele poderia ter vindo o pioneirismo na recuperação da ideia liberal no último quartel do século XX da “pequena casa lusitana”. Obrigado, Mestre!
Fascismo, poujadismo e outras coisas fétidas
Certa pretensa “intelligentzia” proveniente da nossa extrema-esquerda, mas já pós-revolucionariamente instalada no situacionismo, essa que se dedica à “caça” às bruxas no espectro político lusitano, partindo de uma grelha abstracta que mistura classificações do pré-gaullismo francês com os fantasmas do nosso PREC, veio, recentemente, colocar a Nova Democracia “à esquerda” do fascismo, mas bem “à direita” dos governamentais, integrando o mais jovem partido português, que assume “a democracia liberal e de valores”, na categoria do “neo-poujadismo fétido”.
Sem querermos pôr em causa a pessoalíssima soberania da sensibilidade nasal de tais analisadores, apenas notaremos que os mesmos não têm o monopólio da leitura dos jornais franceses, onde entrou no processo de “agenda setting”, a “grogne” dos 34 mil “buralistes”, que já mereceu uma adequada reflexão de Nonna Mayer, directora de pesquisa do CEVIPOF. A nossa pretensa “hard left”, que tanto gosta de “traduzir em calão” o “radical chic” do “français”, deve notar que, além de não termos 1,5 milhão de pequenos comerciantes, somos dotados de uma ministra das finanças que foi objecto de troça do respectivo homónimo parisiense, por causa das desventuras do PEC.
Será também conveniente notar que, entre nós, nos começos do século XX, o tal “poujadismo” dos tendistas e pequenos industriais foi o campo de mobilização da Carbonária e do Partido Republicano Português, isto é, a base da nossa esquerda afonsista, republicana e laica, mas bem pouco socialista, até à emergência de Mário Soares.
Aliás, no congresso fundador da Nova Democracia, estiveram presentes, não apenas de forma simbólica, dois vice-presidentes da Internacional Liberal e um representante da “Democracy International”. Não consta que tenham sido convidados um tal senhor Fini ou uma tal senhora Mussolini.
Contudo, alguns pretensos politólogos que, em tempos idos, eram iluminados pelos paraísos exóticos dos Che Guevara e dos Pol Pot, já, outrora, escrevinharam higiénicos “papers” de caça ao fascismo, chamando Jirinowski, Haider e Le Pen a quem foi gerado politicamente na luta contra o totalitarismo, durante o PREC. Os ditos cujos fazem, aliás, parte do sindicato de citações mútuas que continua a ser regiamente subsidiado pelos ex-companheiros ideológicos que ascenderam ao actual governo e que, ainda há pouco, escrevinhavam que a não-esquerda, crítica política externa norte-americana, era inevitavelmente “neo-fascista”.
Esses derrotados do 25 de Novembro de 1975 que, noutra das respectivas facções, estão na base da cruzada “contra a globalização e o neoliberalismo”, tanto não esgotam o campo de oposição à política financeira do actual governo, como não têm legitimidade para a emissão de certificados de bom comportamento democrático. Por isso cheira mesmo a fétido chamar “poujadista” a todo um largo espaço do espectro político que não alinha nos campos de mobilização dos irmãos Portas. Mesmo por cá, há mais mundos no mundo e talvez ainda possamos semear a esperança.
O regresso do capitalismo de Estado
O Portugal político, traumatizado pelas memórias contraditórias do autoritarismo e do revolucionarismo, continua, infelizmente, a viver em regime de activa esquizofrenia e de “pura irresponsabilidade política”, onde quem quer assumir o monopólio do “tino político”, fingindo dar um salto em frente, brinca aos candidatos presidenciais, para que ninguém possa discutir a questão europeia e a grave crise económica e social que se avizinha, resultante da pura incompetência dos nossos governantes. Porque controlar o poder sempre foi monopolizar a central de distribuição autoritária de valores e dominar o processo de canalização da opinião publicada, principalmente pelo uso do poder de veto, atribuído a certos grupos económicos que assaltaram a comunicação social desta pequena casa lusitana.
Estamos, com efeito, a ser submergidos por um processo de criação artificial de factos políticos, onde, se uns tratam de inventar a direita pura “do século XXI”, qualificando-a como aquela que “faz a ponte entre o passado e o futuro” e que “sabe comunicar emocionalmente”, através do “futuro da comunicação política”, para citar o deputado Gonçalo Capitão, apoiante de Pedro Santana Lopes, eis que outros, cultivando o silêncio bíblico, continuam a apelar à esquerda imaculada pelo renovado estado de graça de António Guterres e, quiçá, pela emergência de José Sócrates.
Resta saber o nome dos activistas da economia paralela que decidiram investir nos falsos profetas que apelam à fusão do partido de Paulo Portas com o de Barroso/Lopes e apoiam a campanha de credibilização do Bloco de Esquerda, para a destruição de um PS, que não pode apenas viver das investidas vocabulares do “pai-fundador” ou do eventual regresso do comissário Vitorino.
Assim, antes dos novos episódios do prometido enredo da pedofilia, tanto na versão Casa Pia, como na sua dobragem micaelense, o tal país do “faz figura” continua a ser um restrito palco por onde circula a classe político-mediática e onde o povo não passa de mero objecto de marketing, de exógena paisagem, para onde se fazem campanhas eleitorais e se emitem os telejornais das entidades que têm direito à transmissão dos jogos do “Euro 2004″, a troco de homílias comentaristas de apoio ao governo.
Por outras palavras, continuamos a ser marcados pelo “conjunto d’os compadres e as comadres que constituem o país legal”, como dizia Alexandre Herculano, pelo que, do “país da realidade”, vem a constante da indiferença daquela massa de “brandos costumes”, onde a fúria dos mansos pode explodir através da revolta populista ou do apoio a “césares de multidões”, isto é, a experiências de poder pessoal encenadas pela demagogia do falso carismático e dos sucedâneos messiânicos.
O mal é antigo. Se em 1834 substituímos o frade do antigo regime pelo barão “usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário”, segundo as palavras do desiludido Garrett, eis que, com o cabralismo, inventámos a nova classe dos burocratas, esse clientelismo estatizante do “comunismo burocrático”, onde “burocracia, riqueza, exército” são “os três pontos de apoio da doutrina”, e “centralização, oligarquia”, “o seu processo”, para citarmos Oliveira Martins.
Isto é, ontem como hoje, sempre o mesmo capitalismo de Estado, onde, em vez de se instaurar a liberdade e a responsabilidade económicas, bem como a efectiva autonomia da sociedade civil e um mercado com regras, domina o proteccionismo e o privilégio, assente no mal baronal, típico de todas as oligarquias partidárias geradas à boleia do poder, que até mantêm zonas de encomendação de grupos de amigos, relativamente aos grupos dominantes do situacionismo anterior.
Em todas estas situações sempre a mesma tendência neofeudal de alguém económica, social ou politicamente enfraquecido se colocar sob a protecção de uma certa personalidade ou de um determinado grupo, bem colocados que, a troco de fidelidade, lhe vão dar emprego estável, a avença compensatória, a facilidade burocrática ou o acesso a círculos íntimos do poder económico, social ou político.
Toda uma teia de aristocracias semiclandestinas que eleva a tradicional “cunha” aos requintes da tecno-estrutura, donde até nem escapam as manipulações laboratoriais de uns serviços secretos que deviam ser da República… portuguesa. Mas não há estados de graça que sempre durem nem pecados que nunca acabem…