Jan 30

Confesso que fiz greve

Com quase três décadas de oficial público, decidi, há dias, aderir, pela primeira vez, a uma greve, sem deixar de ser insidicalizável e de direita. Dei a aulinha, escrevi no sumário que cumpria um serviço mínimo, para não defraudar os alunos, mas formalizei a minha situação de grevista, ajudando a reduzir o défice e assumindo publicamente a minha colocação na lista negra, que terá sido solicitada a certas escolas por fiéis burocratas da nossa decadência.

É evidente que, com esta atitude, não apoiei a recente proclamação de Mário Soares, para quem «o espírito do 25 de Abril está ser posto em causa por parte de forças políticas de direita, algumas no poder, o que não pode acontecer”. Nem sequer o fiz com esperança de ouvir, do Primeiro-Ministro, que “o Executivo está a trabalhar no sentido de aumentar os salários dos funcionários públicos em 2005”. Já não vou em eleitoralismos…

Com efeito, inclino-me mais a subscrever o Presidente Sampaio, para quem Portugal «precisava era de um Lord Hutton», e a reconhecer o irreal da situação: «imagine-se aqui o primeiro-ministro a abrir um inquérito, nomear um juiz para o realizar e definir um procedimento a seguir». Mas, com isto, não adiro à doutrina de Francisco Louçã, sobre a existência de ministros “inimputáveis”, porque também não sei distinguir essa categoria das “garotices”. Apenas sei que a queda deste sistema político, antes de o ser, já o é. Há muito lodo perto do Cais das Colunas.

O tal “sistema político-partidário” constitui um modelo de canalização da representação política que corre o risco de desenraizar-se da cultura portuguesa e da sociologia dos portugueses que temos. Está e estará em crise porque, pura e simplesmente, lhe faltam ideias e lhe falta povo, isto é, não tem sustentáculo na vida nem horizonte de sonho. O que leva ao crescente indiferentismo das massas face aos profissionais da política que nele circulam e acirra a tendência do mesmo servir como agente colonizador de ideias estrangeiras, no sentido de estranhas à nossa própria índole.

Discordo frontalmente do dr. Mário Soares, o nosso velho professor de democracia pluralista, quando este confunde aquilo a que, há tempos, deu o nome de “tumores” com “forças políticas de direita”. Porque se tal fosse verdade, eu que sempre me disse de direita, teria que passar para a extrema-esquerda.

Até porque, “antes de eu ser de esquerda”, ou de direita, “já era da Pátria. A Pátria é a minha política”, como dizia Passos Manuel, em carta dirigida a José da Silva Carvalho, em Novembro de 1836.

Logo, ser radicalmente democrata, isto é, fazer a defesa moral da liberdade individual contra a tirania do Estado, implica reconhecer que “se o poder enlouquece, o poder absoluto enlouquece absolutamente”, como nos ensinou Alain.

Prefiro concordar com outra recente intervenção pública do mesmo Mário Soares, segundo o qual o que, agora, nos falta é o sentido da honra e um adequado norte de patriotismo. Por isso é que me sentiria menos colectivamente inimputável, se pudesse ouvir o povão exigir do parlamento que nos fizesse aprovar uma lei, segundo a qual as conclusões dos trabalhos das inspecções estaduais não mais ficariam dependentes do arbítrio do despacho de arquivamento de um qualquer figurão ministerial, dado que esses segredos de gaveta não podem estar imunes à publicidade da justiça, nomeadamente à remessa de tais papéis para o Ministério Público.

O que nos falta é uma adequada cultura de Estado de Direito, capaz de eliminar, pela raiz, os “tumores” dos micro-autoritarismos ministeriais, secretariais e sub-estatais, onde inúmeros bonzos, ministeriais e autárquicos, incluindo presidenciáveis, continuam o absolutismo, dizendo que tem valor de lei tudo aquilo quanto vociferam, sob o nome de ordens, e não estando dependentes da ordem geral e abstracta que dão aos subordinados. O que faz falta, não é animar a malta, é um pedacinho de patriotismo científico.

Jan 18

As velhas cabalas e a nova teledemocracia

Se misturarmos os meandros visíveis do processo da Casa Pia com o nervosismo dos pré-candidatos presidenciais, teremos de recordar que foi Salazar que, na inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional, declarou que “em política o que parece é”.
Mas, hoje, importa dizer um pouco mais: em política, só o que “aparece”, nos grandes meios de comunicação de massa, é que se torna social e politicamente relevante. Daí que seja inevitável o nível de compenetração entre a classe política, a classe dos novos-ricos e a classe mediática. Compenetração que tanto gera coincidências como conflitos, com as inevitáveis relações de amor-ódio, especialmente nesta nossa democracia, cada vez mais emaranhada nas teias do videopoder, do Estado Espectáculo e da teledemocracia.
Podemos, pois, dizer, como nos povos primitivos, que o normal da chamada “conquista do poder” é a “conquista da palavra”, dado que, também aqui e agora, manda aquele que pode discursar, aquele que, pela palavra e pela imagem, consegue transformar o “conceito” em “preceito”, principalmente pelo controlo o programa de debates. Aliás, os tais que efectivamente mandam sabem que qualquer povo é “uma comunidade de significações partilhadas”, pelo que procuram dominar a produção de símbolos, sabendo que quem manipula a palavra e os signos, quem controla a comunicação, controla o poder.
Se no Portugal Velho, que ainda marcou o salazarismo, quase tudo se resumia à família, à igreja, ao quartel e à escola, eis que os novos clérigos são cada vez mais os donos da agenda do videopoder e os anónimos fazedores dos dicionários de opinião comum, o thesaurus donde se retiram os argumentos, os conceitos, as interpretações dos factos e as palavras.
Com efeito, o púlpito foi substituído pela caixa televisiva, o comentador sucedeu ao retórico e o histriónico passou a dominar os novos “picaretas falantes”, os que cozinham a salada russa ideológica do “politicamente correcto” que se impõe à moral do esforço interior de libertação, como manancial das regras de conduta justa.
Os velhos armazéns da memória de um povo, como eram a família, a universidade, o adro da igreja ou do pelourinho das comunidades locais, foram assim substituídos pelos arquivos de “fast food” dos chamados “opinion makers”, os tais que traduzem em calão as ideias vindas de centrais de condensação neo-enciclopédicas com as suas “lendas negras”.
O papel de controleiro e repetidor passou a caber aos canalizadores oficiosos da opinião, previamente demarcados por quem organiza o programa dos debates e que assim limita o âmbito das escolhas. Compreende-se, pois, como o anterior processo de luta política entre os grupos passou, de luta aberta, a luta oculta, onde, na nebulosa e nas brumas, conspiram sociedades secretas, sociedades discretas, grupos de amigos e muitas outras minorias militantes e feudalizantes, ao serviço de programas gnósticos, por onde circulam inúmeros idiotas úteis que executam sem nada saberem de programação.
É por tudo isto que Portugal, colonizado por forças exteriores e empobrecido por forças internas, se vai dessangrando em autonomia, em identidade e em consciência, tendendo para uma mediocracia. Porque, depois de uma crise do discurso sem sujeito (o tempo das ideologias dos anos do Maio 68), vivemos o espectáculo do sujeito sem discurso (o tempo do artista mediático, onde vale mais o continente do que o conteúdo).
A pluralidade de cabalas que produziu a presente ditadura dos fazedores da agenda mediática só pode ser superada se, aos grandes meios de comunicação de massa, puder ser aplicado o essencial da democracia pluralista, isto é o princípio do controlo do poder. Está em reconhecermos que todo aquele que tem poder tende, inevitavelmente, a abusar dele e que a única maneira conhecida de o impedir consiste no estabelecimento de “forças de bloqueio”. De, para cada poder, entendido como acelerador, se municiar o aparelho com um contra-poder, funcionando como um travão.
Porque, na actual democracia portuguesa, os intermediários quase monopolistas da soberania popular já não são apenas os directórios partidários ou o parlamento, mas aqueles que montaram uma neopidesca e inquisitorial rede clandestina de informadores, ao serviço de projectos de poder pessoal, onde os crimes da bufaria e da chantagem têm compensado.
Aliás, algumas decisões fundamentais do sistema político passaram a ser tomadas a nível da face invisível da política, dando-se a convergência da união dos interesses económicos dos chamados parceiros sociais com o processo de holding não aparente dos financiadores do sistema partidário e das campanhas eleitorais.

Jan 04

O governo dos espertos

Ano novo sem vida velha, só para quem sabe que a esperança não rima com medo. Importa, pois, mudar. Crescer. Para cima e para dentro. Importa regenerar, para vivermos como pensamos. Sermos liberdadeiros, para nascermos, de novo, todos os dias.
Começando com estas mensagens que enviei aos mais próximos amigos, durante esta chamada época de festas, regresso à quinzenal intervenção jornalística, dizendo que julgo saber analisar laboratorialmente a vontade de poder dos que dizem querer “salvar a cidade”, apenas a pensar na paróquia, no quintal, na casa, na bolsa, na barriguinha, na inveja ou nas vaidades. E que talvez entenda o libidinoso de muitas ânsias “dominandi”, o dogmatismo de acaciana pacotilha, bem como o indisfarçado desejo quanto à imposição de um paradigma único, que elimine as dúvidas do pensamento e nos dilua na corrente dos que pensam vencer na história.

Reconheço, com efeito, que vivemos em autêntico regime do “governo dos espertos”, para utilizar a qualificação dada por Hannah Arendt ao modelo austro-húngaro e otomano, onde os burocratas destes regimes imperiais, ao contrário dos agentes do totalitarismo, apenas exerciam uma opressão externa, deixando intacta a vida interior e gerando uma espécie de “domínio perpétuo do acaso”, na qual o agente imperial tinha a ilusão da acção permanente, não se notando a vivência dos princípios gerais de direito por detrás dos decretos.

Ora esta lógica decretina, também assumida pelo salazarismo e pelos salazarentos permanecentes, pouco tem a ver com a essência igualitária e justicialista da democracia representativa e pluralista, a qual não admite excepções para qualquer corporacionismo que tente restaurar um foro especial ou um sistema privativo de privilégios, imunidades e isenções.

Volto assim ao aqui e agora. Sem pensar em Moderna e em Minerva. Na Casa Pia ou na lista dos pedófilos prescritos, do PSD, do PP e do PS. Porque mesmo quando desaparecem os sinais exteriores e institucionais de repressão, dos autoritarismos e totalitarismos, pode manter-se o subsistema de medo que infra-estruturalmente mantinha aqueles aparelhos e sustenta alguns dos figurões florentinos de outrora, esses que continuam a florear, de forma revisionista, em lugares oficiais de hoje.

A culpa da escravatura, como dizia Beaumarchais não cabe apenas aos tiranos, mas também aos que não promovem a revolta dos escravos, só porque têm “medo da liberdade”, segundo Erich Fromm. A liberdade não é apenas vítima daqueles que a atacam, mas também daqueles que a não defendem.

O tirano é sempre um produto da “servitude volontaire”, como dizia Étienne La Boétie, tem apenas o poder que se lhe dá, esse poder que vem da “volonté de servire” das multidões solitárias. “N’ayez pas peur!”

Aliás, nem todos os “antifascistas” são democratas, tal como nem todos os ditos democratas são “antitotalitários”. Porque, como dizia o mesmo Erich Fromm, “o poder não é produto da força, mas filho bastardo da fraqueza”.

Não devemos aceitar a humilhante mediocracia do escravo, bem como que nos coloquem na categoria dos tolerados, agradecendo aos vencedores a mercê de não nos terem assassinado. Aliás, os mesmos, sempre dependentes do equilíbrio mecanicista do situacionismo, nem sequer admitem a hipótese de alguém cultivar a insolência do excêntrico, chamando extremistas a todos quantos, muito regeneradoramente, pela irreverência, procuram o concêntrico, quando exigem a necessária eliminação das raízes do apodrecimento situacionista.
É por isso que o direito se confunde crescentemente com um legalismo frouxo e hipócrita. Que a justiça é medida pela espada retaliadora da vingança do vencedor. Tal como o sentido cívico tende a degradar-se pela contabilidade hipócrita dos que são condecorados só porque assinaram o livro de ponto da obediência conformista.
Esses pretensos moderados que, vindos da extrema-esquerda ou dos bancos do poder salazarista, se assumem como o paradigma do bom europeísta e do excelente aliado do amigo do norte-americano, são, por vezes, capazes de desencadearem as diabólicas tenazes que desgrenham as instituições, quando estas não lhes fazem os jeitos, usando golpadas assentes na mais mísera das demagogias, actuações em que são pródigos pretensos marechais do espírito, mantidos pelo decretino da tentação burocrática e que ainda têm a desfaçatez de continuarem a dedilhar a lira da modernidade, quando não passam de simples repetição de outros tantos “adesivos” e “viracasacas”.

Apenas dura aquele que obedece a princípios, e não aquele que cantarola princípios, pensando que tudo é uma questão de semântica. Apenas consegue superar a conjuntura quem se entrega a uma corrente de pensamento e que, sem fazer o discurso da caricatura institucionalista é efectivamente institucional, dado que procura servir uma ideia de obra e integrar-se numa comunhão com outros, companheiros ou camaradas, que partilham as mesmas crenças e que obedecem às mesmas regras do jogo.