Mai 20

Europa: a mentira federalista

Faço parte daquele grupo de europeus, certamente minoritário, que considera não poder haver projecto europeu sem uma ideia de Europa e sem o sustento de uma pátria. Porque o principal perigo do projecto europeu em desenvolvimento continua a ser a tentação de regresso ao sistema da Europa dos projectos imperiais frustrados, desses que querem assumir-se como Estados Locomotivas, feudalizando todo o processo de construção europeia.

É contra este modelo que a República Portuguesa tem de resistir, invocando a possibilidade do grande espaço europeu continuar uma hipótese de conciliação das liberdades dos povos contra as perspectivas absolutistas do estadualismo e do soberanismo. E que reagir, não apenas em nome da liberdade de Portugal, mas também em nome da liberdade da Europa, da liberdade de todos aqueles povos da Europa que continuam a ser nações proibidas e a que, muito eufemisticamente, se dá a consolação do nomen de Europa das regiões.
Importa salientar que a própria generosidade da ideia federal, conforme a linha associativista do small is beautiful, que vai de Proudhon a Rougemont e deu asas ao Congresso de Haia de 1948, acabou por ser expropriada pelo modelo de uma espécie de super-Estado, uniformista e centralista, que trata de utilizar a metodologia do legalismo e do regulamentarismo.
Com efeito, sob o nome de federalismo europeu tem-se criado uma ideia que o pai do próprio federalismo contemporâneo, Proudhon, considerava como o principal inimigo do federalismo: a Europa como uma confederação única, como uma nova Santa Aliança que sempre degenera … numa potência única, qualificada como uma autêntica cilada, dado não ser precedida pela descentralização dos grandes Estados, impedindo que a nacionalidade volte à liberdade.
Ora, segundo o próprio Proudhon, importaria assegurar as nacionalidades dado que o sentimento de pátria deveria ser assumido como um elemento indestrutível da consciência dos povos.
Da mesma forma Rougemont, já no Congresso de Montreux de 1946, considerava que a união federalista da Europa nunca poderia ser concretizada pelos Estados, dado que importaria renunciar a qualquer ideia de hegemonia bem como a qualquer forma de arrange ensemble, dado que a federalização implicava a junção das realidades concretas e heteróclitas das nações e das regiões económicas, bem como a própria superação do problema das minorias. E isto porque seria essencial no federalismo a salvaguarda das qualidades próprias de cada grupo, nunca podendo apagar-se as diversidades, antes se exigindo o amor pela complexidade e uma construção política feita de baixo para cima, a partir dos grupos e das pessoas e não a partir do vértice de um centro político.
Certo europeísmo bancoburocrático corre assim o risco de juntar o mais gnóstico do idealismo alemão como o mais unidimensionalista do jacobinismo francês, gerando um pan-nacionalismo soberanista à escala europeia. Se se foi desdenhando daquela soberania que propiciava uma reserva em prol das liberdades nacionais, regionais e locais, eis que tratou de propiciar-se uma hipostasiada soberania de uma espécie de Europa-fortaleza.
Por isso é que nesta Europa leviatânica o homem comum sente que pensar a política europeia pode, muitas vezes, não valer a pena, dado que está a gerar-se uma consciência de indiferentismo entre as massas europeias, dada predominância da minoria tecnocrática nas altas esferas de decisão.
Veja-se como as recentes decisões ministeriais de tradução em calão das chamadas regras de Bolonha estão a preparar a venda em saldos da universidade portuguesa, com a entrega da decisão em áreas estratégicas aos grupos de pressão de certas universidades privadas e concordatárias, onde tios, sobrinhos, sacristias e sagradas unções, nos dividem entre universitários da laicidade e catedráticos do transcendente, mesmo sem concurso, dado que, ao que parece, basta um encontro imediato de primeiro grau com a sabedoria petrolífera ou o misticismo predatório das amizades de salão.

Na revista Tempo

Mai 06

A Nova Constituição e o Regresso a 1580

O recente anúncio de mais uma revisão constitucional mostra como tal decisão fundamental continua a estar dependente da hipótese de acordo entre o partido dominante da situação governamental e o principal partido da oposição parlamentar. Daí que os defeitos partidocráticos do actual sistema político sejam agravados pela tentação bipolarizadora, podendo ficar ainda maior a distância que separa a chamada classe política da chamada sociedade civil.

As revisões constitucionais continuam assim presas nas teias da partidocracia bipolar, nessa balança de poderes do sistema político português, onde prevalece o modelo de bipartidarismo entre partidos directores, apesar do ambiente ser formalmente pluralista.

Talvez seja conveniente lembrar aos dirigentes dos nossos principais partidos pós-revolucionários que o poder político numa democracia pluralista não é tanto uma relação entre governantes e governados, quanto uma relação entre a sociedade e o aparelho de poder. Ora, quando, ao arrepio destas tendências, os dois principais partidos portugueses assumem a pretensão de conformar a Constituição em termos da partidocracia de partidos directores, parecem esquecer que a complexidade do poder político em regime pluralista, vai além do mero aparelho de poder, exigindo que o Estado-Comunidade não se transforme num marginal, susceptível de se perspectivar como um pária ou um ser indiferente perante uma decisão excepcional como é a revisão constitucional.

Julgo que qualquer norma constitucional não pode deixar de inscrever-se no âmbito mais vasto de um pacto de união. Qualquer norma constitucional não é suprema por ser ditada de cima para baixo, isto é, do aparelho de poder para a sociedade, mas antes porque resulta daquela procura da perfeição democrática que é a única via que lhe pode dar esse sonho da soberania que se traduz no máximo consenso da comunidade.

Se a verdadeira autoria de uma Constituição deve caber à comunidade, qualquer desvio partidocrático do processo, apenas contribui para que se agrave a distância entre o Estado Aparelho e o Estado Comunidade. Sobre a matéria, apenas me apetece citar o antigo conselho de um dos pais-fundadores da Constituição americana, John Adams: “uma constituição é um padrão, um pilar, uma garantia, quando compreendida, aprovada e amada. Mas sem esta compreensão e amor, é como se fosse um papagaio de papel, um balão, pairando no ar”.

De facto, as boas constituições, as constituições amadas e compreendidas pela comunidade, são as que vêm da república para o principado, as que constituem um Estado a partir da própria sociedade. Só assim é que as constituições podem unir. E só assim é que também podem durar.

Acontece também que a presente revisão à porta fechada, sufragada pelo Partido Popular, ao arrepio de todas as declarações que emitiu antes da subida à governamentalização, é o resultado de outra bipolarização dominante: a do oligopólio europeísta do Partido Popular Europeu, onde se integra o PSD, e do Partido Socialista Europeu, onde se dilui o PS.

Por outras palavras, PSD, PS e PP, abusando da posição dominante, fizeram com que Portugal voltasse ao ritmo de 1580, quando as nossas elites instaladas sufragaram Filipe II como rei de Portugal, ele que já acumulava o actual espaço da Espanha, da Bélgica, da Holanda e de outras largas parcelas da actual União Europeia.

Também então, distintos constitucionalistas, e candidatos a lugares cimeiros da supra-estadualidade, elaboraram uma científica teoria da justificação que demonstrava, com toda a qualidade hermeneûtica, que Portugal mantinha a sua formal independência.

Cá por mim, prefiro o partido de Febo Moniz e estou disponível para alinhar com o Manuelinho de Évora, contra todos os “ministros do reino por vontade estranha”, esperando que distintos juristas da cepa de Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro preparem uma justa aclamação da república dos portugueses, onde as Actas das Cortes de Lamego possam subverter o conformismo situacionista dos Cristóvão de Moura e dos seus tachos eurocráticos ou os fundamentalismos teóricos dos Miguel de Vasconcelos.