Ago 15

Por uma Secretaria de Estado do Desentupimento!

Aqui, em meu refúgio saloio, longe da canícula político-jornalística que abrasa a capital e as suas extensões estivais, foi-me dado perceber que o meu vizinho de aldeia, anónimo habitante do país profundo, parece mais interessado em discutir a frescura da sardinha importada de Vigo, ou as causas da nossa olímpica derrota contra o Iraque, do que em defender a sorte do segredo de justiça e do segredo dos tachos.

Sinto que a democracia e o Estado de Direito caíram na ratoeira daquelas sacristães que perderam o sentido dos gestos. Entrámos na rotina de um ritual executado mecanicamente pelo sentido teatral proposto pelos assessores de imagem, de comunicação e de pose e não reparamos no essencial: a classe política, deste clube com reservadíssimo direito de admissão, esgotou a respectiva capacidade de recrutamento.

De outra forma, não seria possível que o símbolo da modernidade e do desenvolvimento continuasse a ser um jovem ministro do caetanismo que, depois de o ser do soarismo e do guterrismo, foi agora recuperado pelo lopismo par criar novas universidade, só porque pediu a desfiliação do PS. Aliás, neste domínio, a gerontocracia atingiu as raias do anedótico, porque basta pedir certidões de idade a directores de escolas politécnicas ou a avaliadores, para verificarmos o nível museológico a que estamos condenados.

Outro dos sinais decadentistas da actual classe política está na circunstância de se considerar, como símbolo de independência, honestidade e competência, o recurso a magistrados judiciais, politizados e abençoados mediaticamente, a fim de se ocuparem lugares públicos controversos, na senda da escola do ministro das crianças. O recurso ao partido dos becas como selo de garantia equivale à instrumentalização que ainda há uns anos se fazia do partido dos militares ou do partido dos catedráticos, demonstrando o falhanço do partido dos políticos.

Quando os mais politiqueiros dos políticos tratam de recorrer a tecnocratas que simbolizam os pilares de apoio ao sistema, invocando até, de forma provinciana, a fuga a personalidades da capital, utiliza-se um processo que pode tornar felizes os eleitos e os seus compadres, mas que não resolve a questão de fundo, ainda que se cite Agustina. A actual crise política resulta precisamente da ausência de política e da míngua de políticos.

As cassettes desviadas, furtadas, roubadas ou cirurgicamente colocadas nos meandros do poder estabelecido, apenas contribuíram para que se confirmasse o processo de fabricação de fenómenos políticos, oriundos das fontes geralmente bem informadas. De como o off record pode passar a fazer fitas, de como é possível a abertura de gavetas cerradas sem gazuas ou pés de cabra, e de como se decapita a Judite, pela via modernizante ou casapiana. Porque, nestas penumbras, o crime compensa.

Portugal político está como ainda há dias estava a minha fossa séptica, com o cano de esgoto entupido. Porque também na política, as necessárias mudanças, geram sempre aqueles desperdícios de energia que se transformam em lixo orgânico e que têm de ser expulsos pelo sistema para um adequado reservatório estanque, onde se vai auto-destruindo, com raras fugas para os locais circundantes. Para resolver o problema recorri ao departamento de bom ambiente da câmara municipal e, imediatamente, um solícito funcionário resolveu a questão pela mera pressão de ar livre, que restabeleceu os mecanismos circulatórios, sem necessidade das incineradoras de José Sócrates ou das comissões de inquérito de Nobre Guedes.

Julgo que tudo seria facilmente ultrapassável se Santana Lopes colocasse, aqui, em Mafra, a Secretaria de Estado do Desentupimento, e que não estivesse com a tentação de a meter na Ilha do Corvo ou de ceder à tentação de a instalar nas Selvagens. Sugiro também que não recorra a nenhum magistrado judicial ou do ministério público, a um militar feito empresário, a um sacerdote despadrado ou a um catedrático com oitenta anos. Aqui, na zona Oeste, há zelosos desentupidores do lixo orgânico que, carregando num botão, sabem fazer input e output, limpando as canalizações do esgoto e lançando, para a fossa, cassettes, ministeriáveis, descartáveis, assessores de imagem e outros que tais. O Zé Povinho está à espera que o chamem.

Ago 01

O governo dos filhos de algo

Depois de gémitos imensos, a montanha parlamentar deu luz o ratinho do novo programa governamental. Esse conjunto de frases metidas a martelo num texto “copy and paste”, que bem podia ser adquirido num desses supermercados das pós-graduações para gente fina.

Esse solene nada tanto poderia ser assumido por José Sócrates como ser incluído na próxima colectânea de discursos de Jorge Sampaio e os rapazinhos e as rapariguinhas que, nesta conspiração de avós e netos, por aí circulam com o nome de ministros e ministras, secretárias e secretários de Estado, esse máximo denominador comum da presente união dos interesses sociais, políticos e económicos, são, precisamente, aquilo que o marcelismo gostava de ter sido. Essa direita das chamadas forças vivas, bem representativas do estado de cobardia generalizada a que chegámos.

A culpa não está evidentemente em Pedro Santana Lopes ou Paulo Portas. Porque, se eles não existissem, outros teriam que ser inventados, nesta genealogia de fidalgotes que, querendo cumprir a etimologia, são, precisamente, os descendentes de alguns dos principais gestores de influências da presente encruzilhada decadentista da pátria.

Estes governantes apenas cantarolam ideias e ideologias. Um dia são liberais, adeptos de agressivo individualismo. Outro, sociais-democratas ou democratas-cristãos, cheios de preocupações sociais, fazendo discursos sobre os velhinhos, os pobrezinhos, os reformadinhos, os aposentadões, os jubilidassímos e outros que tais. Um dia estão à direita, de faca na liga, à maneira de Alberto João. Outro, viram à esquerda, no choradinho “jet set”, como os ex-líderes de RGA feitos figurões de Estado.

Produzidos pela nossa tradução em calão dos Berlusconi, sabem que o povão está embriagado de fado, futebol e fátima e que, em caso de crise, basta mobilizar um novo João Braga, um novo Eusébio ou um novo Rasputine para que, no baralhar e dar de novo, tudo continue como dantes.

O subscritor destas linhas, defensor assumido do capitalismo liberal, que, aliás, nunca recebeu um só tostão do complexo banco-burocrático que nos domina, a título de consultadoria, subsídio ou patrocínio, pensa ter alguma legitimidade para declarar que são os efectivos liberais que mais odeiam o liberalismo sem ética, a concorrência sem regras ou a corrupção já sem vergonha.

Os melhores aliados do Bloco de Esquerda e de todos quantos estão a fazer renascer o socialismo marxista são, na verdade, os que assumem o presente devorismo desta direita dos interesses, deste modelo de economia privada sem economia de mercado.

A corrupção é bem mais grave quando os aliados dos corruptos são os que, actualmente, fazem o discurso contra a corrupção. Os grupos de pressão tornam-se bem mais agressivos quando os analistas das pressões e dos interesses são os avençados dos ditos grupos. Os abusos de posição dominante agravam-se quando os mesmos dominantes se assumem como os próprios árbitros do processo.

Que saudades começamos a ter das heróicas virtudes burguesas do capitalismo mercantil. Que pena já não existirem os clássicos criadores de riqueza, como eram os activos cavalheiros da indústria. O estado a que chegámos não passa de uma declaração de guerra à luta pela justiça, pela liberdade e pela solidariedade.

Onde estão as tradicionais forças morais da resistência? A plurissecular Igreja Católica que, na hora da verdade, nunca traiu o povo? A bi-secular Maçonaria que sempre deu sentido de futuro às elites monárquicas, republicanas e democráticas da nossa classe política? Onde está a própria Universidade não jubilada, que seja capaz de dizer não aos pratos de lentilhas da gestão dos fundos destinados à investigação científica? Onde estão os homens livres? Livres da partidocracia, da finança e dos subsídios feudalizados?

Por mim, continuarei em Vale de Lobos. Meti sabática à espera que passe este interregno.