Lopes e a luta de classes
21 de Setembro 2004
Numa espécie de reedição das famosas conversas em família de outras eras, o nosso mediático Primeiro-Ministro decidiu seguir o conselho dos seus assessores de imagem e apareceu num telejornal de fim-de-semana, vestindo a farpela de comentador político. O fim da charla foi reinterpretar autenticamente as muitas palavras que foi emitindo ao longo dos primeiros tempos da sua governação, dando alguns ditos por não-ditos e dizendo que disse o que desdisse, numa trapalhada demagógica e comicieira.
Pedro Santana Lopes, deixando-se encantar pelo estilo do jacobinismo verbal em que foi pródigo o Mário Soares dos velhos tempos, também meteu a cabeça no sítio dos pés, e vice-versa, ao anunciar que a mão longa do Estado, incapaz de combater a evasão fiscal, iria ao bolso da chamada classe média.
O Primeiro-Ministro, extremamente preocupado com a circunstância de acusarem o respectivo governo de ser um mero feitor de ricos, tratou de assumir o voluntarismo do Zé do Telhado, proclamando que iremos pagar a saúde pública de forma proporcional aos rendimentos fiscais declarados, inventando assim uma impossibilidade constitucional e, talvez, uma loucura burocrática, que não fará justiça e gerará revolta no justo que continuará a ser identificado como pecador, face à risada dos infractores que até poderão requerer um certificado de pobrezinhos.
Depois de algumas reflexões, tive de concluir que Santana Lopes é tão histórico do PPD que ainda se mantém fiel àquele pequeno parágrafo do programa inicial do partido que fazia uma invocação marxista. Daí que pretenda elevar ao máximo a ideia de luta de classes, utilizando cartões eventualmente coloridos que, começando a ser usados nos serviços de saúde, se estenderão, depois, às estradas e passeios, às escolas públicas, aos transportes e ao próprio acesso à recepção das ondas hertzianas.
Felizmente, fiquei a saber, pela própria voz de Santana Lopes, que, afinal, não haveria novos cartões de saúde, bastando, para a nossa identificação de classe, o cartão de contribuinte, com o qual seremos facilmente classificados como ricos, pobres ou remediados. Imediatamente fui à carteira, consultar o meu e, mirando-o e remirando-o, não encontrei nenhum sinal desse tipo, pelo que desconfio que ele possa estar oculto nos inúmeros dígitos que me qualificam ou que, clandestinamente, nele tenha sido introduzido um “chip” com ligação oculta a um centro de actualização de dados, dada a variação de poder de compra que, para baixo, tenho tido ao longo dos governos PP/PSD.
Tive de concluir que, afinal, vão ser emitidos novos cartões fiscais, com adequada diferenciação de classe, e sabendo como os serviços de finanças costumam demorar meses e meses para a renovação dos ditos cartões, temo que, na necessária renovação dos comandos informáticos do ministério finanças, alguém recorra aos agentes que tão magnificamente procederam ao presente sistema de colocação de professores.
Fiquei também sem saber como se vai identificar individualmente o rendimento de cada um, atendendo que parece haver famílias, isto é, pais, filhos, ascendentes, colaterais e dependentes, onde todos são iguais a gastar em saúde, mas onde só alguns são mais iguais quanto ao fornecimento de rendimento, num país onde apenas cerca de um terço dos residentes pertencem ao nível dos activos.
Julgo que nenhum regime fez justiça e eliminou a pobreza atacando aqueles que podem ser identificados como não pobres através do olhar do comunismo burocrático. Por isso, sou obrigado a reduzir as intenções lopistas a mais um flope. Porque assim continuaremos a ser o país da Europa Ocidental onde há mais pobres, onde os professores são os mais mal pagos, mas onde, pelo contrário, os gestores são os mais prebendados da Europa, principalmente os administradores da Caixa Geral de Depósitos e, muito especialmente, um deles, agora pobre aposentado, que, quando era ministro, proclamava, a sete ventos, que, infelizmente, em Portugal, apenas havia “postos de vencimento”, quando eram necessários “postos de trabalho”.