Jan 31

A memória esquecida de 1640

“Devemos passar de uma concepção unipolar do Estado para uma outra multipolar, que passe por Lisboa, Barcelona, Bilbau, certamente por Sevilha, e juntos poderemos acabar de alguma forma esta península que nunca foi concluída” (palavras de Josep Carod-Rovira, o líder da Esquerda Republicana da Catalunha, com triângulo e tudo, de passagem por Lisboa, a convite da Fundação Mário Soares, no ano de 2005).  Nada de espantar pardais. Apenas protestamos contra o facto de não repararem nos meus amigos do Movimento de Libertação de Castela e de não assinalarem que em Portugal já é língua oficial uma variante do leonês, o portuguesíssemo mirandês. Também estranhamos que Rovira não tenha invocado Santiago da Galiza e o nosso enraizado sentimento mata-mouros, como continua a soprar lá para os lados do Funchal e que bem poderá incendiar Las Palmas.  Eu, português e iberista, adepto da aliança peninsular e conhecedor da soma de Aljubarrota com Toro, defendo convictamente que as muitas Espanhas da Espanha resolvam o respectivo contencioso com o Estado Espanhol sem nos incluírem no rol dos que não conseguiram fazer 1640. Porque foi a partir de então que nós, república dos portugueses, nos conformámos como comunidade política moderna e com adequado seguro de vida independente naquela pós-modernidade peninsular que bem pode portugalizar a Ibéria.  Notem apenas, irmãos ibéricos, que Portugal sempre foi mais do que este Portugal que resta. 1640 deu origem àquela América Portuguesa que, depois de ser Reino Unido, da armilar, se tornou independente da Santa Aliança sob o nome de Brasil. Mas nem por isso deixo de simpatizar com a ERC, a Convergência, a União e o Partido Nacionalista Basco. Sugiro que se faça uma tradução para catalão das obras de Francisco Velasco Gouveia e de João Pinto Ribeiro.

Jan 27

A Justiça em regime de queixumes…

A cerimónia de abertura do ano judicial quase pareceu uma sentença global de condenação do sistema de administração da justiça vigente. Condenou-o o Presidente da República, condenou-o o ministro da justiça, condenou-o o representante dos advogados, condenou-o o representante dos magistrados do ministério público, condenou-o o representante dos magistrados judiciais.  Não falou o povo, o mais condenado em toda esta teia de queixumes que me faz lembrar a história do velho, do rapaz e do burro, onde o menos burro de todos sempre foi o próprio burro.  Julgo que os excelentíssimos e reverendíssimos magistrados e advogados precisam de uma excelentíssima e reverendíssima reforma. Em vez destes expedientes dilatórios discursivos, onde a culpa é sempre da outra parte, que não a do nosso sindicato, deveriam recordar a história do ovo de Colombo, porque aqui, nesta casa onde todos ralham, afinal todos têm pão.  Se calhar Portugal precisa é de alguém que saiba ser ministro da justiça para estabelecer um adequado curto-circuito a estas corporativices. De alguém que tendo autoridade, isto é, sendo autor, possa refundar esta manta de retalhos de reformismos sem Norte. Quando importava reparar que, num Estado de Direito, a lei é menos do que o direito e o direito é menos do que a justiça, a tal maltratada criatura com que quase todos confundem os aparelhos da administração da justiça.

Jan 25

A direita a que chegámos e a esquerda que aí vem

A direita a que chegámos e a esquerda que aí vem são, de facto, o mais do mesmo, essa santa aliança laica entre a direita que convém à esquerda e a esquerda que é serventuária da direita dos interesses, entre a teledemocracia e a democratura, entre a ditadura da incompetência e a anarquia mansa. E por mais carrinhos de choque que nos prometam, entre o choque de gestão e o choque tecnológico, eles continuam a fingir que é verdade a mentira que os sustenta: isto é, um país de bananas governado pela união de facto do centralismo capitaleiro e do caciquismo bairrista, onde o primeiro continua a usar a técnica do dividir para reinar.

Jan 23

Há uma razão humana que governa todos os povos da terra

Continuo a ouvir, ver e ler perlengas bispais sobre a IVG como pena capital, as quais constituem uma espécie de caricatural fuga ao que deviam ser os tempos de antena da campanha do “sim”. Dou assim razão a Bergson, para quem o homem é um animal que sabe rir, porque não há nada de cómico fora do que é propriamente humano. É que o cómico nasce quando os homens reunidos em grupo voltam a sua atenção para um deles, calando a sua sensibilidade e exercendo só a sua inteligência. Portanto, sobre a matéria, quase me apetece citar José Ortega y Gasset, o tal espanhol que, desde 1942 até à data da sua morte, sempre se disse “residente em Lisboa” (no nº 10 da Avenida 5 de Outubro, diga-se), para quem quando a paixão invade as multidões, é crime de lesa-pensamento o pensador falar. Porque para falar tem que mentir. E o homem que aparece antes de mais entregue ao exercício intelectual não tem o direito de mentir. Acontece apenas que, de vez em quando, há que seguir outro dito do mesmo mestre: reivindico inteiramente o direito de me manifestar tal como sou. Ingresso na política, mas sem abandonar um átomo da minha substância… Reclamo o pleno direito de se fazer uma política poética, filosófica, cordial e alegre. Outra coisa seria coarctar-me injustamente. Daí que me apeteça sublinhar que nunca foram os prelados que levaram à abolição da pena de morte em Portugal. Estavam presos demais aos autos de fé e ao caceteirismo do partido do Ramalhão, e não consta que, entre os dogmas, tivessem o princípio de abolição de coisas como a escravatura ou a pena de morte. E não mentirei se sublinhar que tais conquistas se devem a famílias humanistas daquela parcela do Ocidente que, mergulhando nas profundidades do estoicismo greco-romano e nas irmandades medievais, faziam parte daquela corrente que vai de Beccaria a Ortega y Gasset, misturando Locke, Montesquieu e Kant. Os senhores bispos são ilustres representantes de um legado político-cultural humanista e libertador, mas dele não têm o monopólio. E não convém que atirem pedradas aos telhados e janelas dos outros, porque basta chegarem a casa e achar as suas quebradas. Quem aboliu a pena de morte em Portugal para crimes políticos foi o Acto Adicional à Carta, de 1852, obra da Regeneração e dos ilustres seguidores e companheiros de valores de Alexandre Herculano, o tal eu que se opôs às circunstâncias do então clero. Quem a aboliu na generalidade para todos os crimes foi o acto legislativo de 1 de Julho de 1867, o da fusão liberal, dos companheiros de valores de Vicente Ferrer de Neto Paiva e António Luís de Seabra. Diremos, a este respeito, que os indivíduos só começaram a ser vistos como sujeitos activos a partir do século XII, com o desenvolvimento da Escola dos Glosadores e com o proto-individualismo franciscano. Só a partir de então é que a teoria e a prática começaram a distinguir-nos do grupo, principalmente quando se iniciou o processo de conquista da primeira das liberdades: o direito à segurança, o direito de cada um à apropriação do seu próprio corpo. Porque até então havia um poder do todo sobre o corpo de cada um, havia o ius vitae necisque, um poder de vida ou de morte, que o paterfamiliashavia transmitido ao princeps. Foi então que começámos a deixar de ser escravos, quando nos passámos a distinguir das coisas. Quando o homem passou a ser mais que um simples ter e, por isso, não pôde continuar a ser um simples tido. Quando o homem passou a exigir um direito penal humanista, onde a definição dos crimes deixou de ser retroactiva, onde o processo proibiu a tortura, onde as penas cruéis foram abolidas e a própria pena de morte começou a ser posta em causa. Quando os homens começaram a ser humanos, pensados à imagem e semelhança de um Deus em figura humana. Até porque importa recordar, conforme as palavras de Battaglia, que não existe nenhuma grande conquista da humanidade no sentido da liberdade e do progresso, que se não ligue ao nome de um filósofo do direito. Da extinção da escravatura à abolição da pena de morte, da igualdade de oportunidades entre pessoas de sexo ou etnias diferentes, à aplicabilidade política de um conceito de cidadania activa – com uma igualdade entendida não apenas como igualdade da lei ou perante a lei, mas antes como igualdade pela lei, isto é, como igualdade de oportunidades, como igualdade perspectivada com o sal da liberdade, da justiça e da solidariedade –, é todo um secular processo de luta pelo direito como dever-ser que, muitas vezes, tem de assumir-se contra o direito que está posto na cidade. Como salienta Metz, a dinâmica essencial da História é amemória do sofrimento, como consciência negativa de liberdade futura e como estimulante para agir, no horizonte desta liberdade, de modo a superar o sofrimento. Uma memória do sofrimento que força a olhar para o “theatrum mundi” não só a partir do ponto de vista dos bem-sucedidos e arrivistas mas também do ponto de vista dos vencidos e das vítimas. Determinar qual o além do direito tem sido, aliás, constante tarefa dos que pensam o direito. Desse direito, conforme a definição de lei dada por São Tomás de Aquino, como uma ordem elaborada pela razão tendo em vista o bem comum e promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade. Dessa lei que, conforme Montesquieu, tem de ser a razão humana enquanto governa todos os povos da terra. Desse direito que se é verdade além dos Pirinéus não pode ser mentira aquém ou além de qualquer barreira geográfica ou mítica Somos portugueses, pensamo‑nos portugueses, ensimesmando uma história que também foi precoce na consideração do homem como sujeito, no sentido vincadamente existencial de dono do seu próprio corpo, tanto na abolição da escravatura como na abolição da pena de morte. Por mim, quero retomar o estoicismo romano de Cícero, para quem, das leis, todos somos escravos, para que possamos ser livres (legibus omnes servi sumus, ut liberi esse possimus). Para bons compreendedores, meias palavras bastam. Releiam os trabalhos de Eduardo Correia e Guilherme Braga da Cruz, no centenário da abolição. Ambos sabiam que a nossa tradição humanista sempre juntou o humanismo laico ao humanismo cristão. E não consta que o segundo, consolidado católico tradicionalista, tenha saneado da história o patriotismo iluminista, o patriotismo liberal e o patriotismo republicano. Nem todos os que não seguem a sacristia têm de ser da cavalariça.

Jan 19

Um sistema político que é, ao mesmo tempo, um retrato da nossa impotência e uma causa dela

Alguns dos políticos a que temos direito continuam a minar a raiz da democracia, quando tratam de destruir o sentido da palavra pública e, consequentemente, a racionalidade comunicativa. Porque quando se gasta a necessária paixão da palavra pelo mau uso, da demagogia, e até se prostitui tal sinal pelo abuso, os discursos saem da zona do “logos” e passam para a pouca vergonha da falta de autenticidade. Valia mais enumerarem-se os muitos concursos públicos por fotografia, os inúmeros directores-gerais de aviário, a imensidade dos assessores de imprensa ganhando mais do que os respectivos ministros, o desaparecimento de todas as chefias que o mesmo ministro da defesa herdou no palácio do Alto do Restelo, a lista das encomendas às empresas de consultadoria dos inúmeros amigos de colégio e de croquete, bem como a utilização de multinacionais do direito para tratamento concorrencial dos contratos envolvendo funções de soberania do Estado. “Não sou Bocage, discurso no Nicola e vou para a oposição se o povo votar noutra pistola”.  Portugal tem quatro senadores que já foram líderes partidários, com um deles como Presidente da República e outro como Primeiro-Ministro, que estiveram unânimes no reconhecimento da necessidade de liquidação do presente sistema eleitoral que eles criaram e, depois, usaram e abusaram, para se manterem no poder, salientando, muito hipocritamente, que as actuais “lideranças apenas procuram descredibilizar-se umas às outras”, quando deveriam identificar “as novas causas” por que lutar. E nenhum deles mostrou a ficha das aposentações, reformas e mordomices que os sustentam financeiramente, desde os fornecimentos directos do OE aos subsídios vindos do mesmo bolo, ou das empresas publicamente dele dependentes,  Portugal continua a ter presidentes de câmara que persistem em assumir o título do termo de identidade e residência, enquanto se assistiu a um debate entre os estalinistas e os trotskistas, ou entre os adeptos do sovietismo e do albanismo, onde os dois estiveram de acordo sobre tudo e mais alguma coisa, salvo quanto ao uso da gravata. Portugal tem, afinal, políticos que continuam na senda decadentista, confundindo a administração pública com a empregomania e a sociedade civil com o devorismo. E quem denuncia a presente calamidade pública, desobedecendo aos ditames dos que expelem os slogans da “convicção”, da “lealdade” e da “competência”, não passa de gente maldosa que anda a fomentar a “depressão” nacional e que deverá talvez ser internada num desses hospitais psiquiátricos comprados nos saldos do Gulag. Entretanto, lá vão saneando, devagarinho, muito sem dor, de acordo com as regras da “imagem, sondagem e sacanagem”. Esperemos que um dia deixemos de ser o tal país de bananas desgovernado pelos ditos cujos…  Tudo me pareceu vogar num clima de irrealidade e de inutilidade considerável. Para já, havia “senado” a mais, num país que não o tem, e, portanto, como é um defeito dos nossos costumes políticos, demasiada reverência e pouca discussão. Parece uma maldição: ou temos a má educação das “jotas”, ou as vénias dos que gostariam de ter uma política sem conflito, higiénica, obrigada e reverente.  Foram primeiros-ministros, presidentes, ministros, dirigentes partidários, deputados. O problema é que, quando se chega à “hard politics”, os “senadores” dizem pouco, porque se o dissessem pareceriam menos “senadores”. É que o mero acto de identificar as resistências e interesses, sem ser de forma vaga e genérica, já é política pura e dura e conflitual, divide amigos e inimigos, torna-nos pouco “consensuais”, um mito da nossa política.  …eles são os “pais” de um sistema político feito para ninguém mandar e todos poderem impedir os outros de mandar. Um sistema político que é, ao mesmo tempo, um retrato da nossa impotência e uma causa dela.

Jan 19

Devorismo e empregomania

Há regimes políticos que, apesar de nascerem de bons e justos propósitos construtivistas, depressa caem nas teias do devorismo e da empregomania, especialmente quando apodrecem por dentro e tentam sobreviver gerindo a manutenção no poder através da erosão situacionista daquele rotativismo onde se vai fingindo mudar para que tudo fique na mesma. Tudo começa, aliás, pelo revolucionarismo frustrado, por essa esquizofrenia puritana onde se desperdiçam energias em verborreia, vinganças e perseguições inquisitoriais. Essa oportunidade perdida para a racionalidade das metodologias reformistas, as únicas que seriam capazes da necessária regeneração que sempre foi conservadora dos valores permanecentes da colectividade, apesar de exigirem revolucionários objectivos quanto à pilotagem do futuro e ao empenhamento individual.  Com efeito, ao contrário do que tem sido difundido pela grande coligação antiliberal que, da direita à esquerda, nos comanda, entre fantasmas da dita direita e complexos da assumida esquerda, são os liberais coerentes que mais se devem preocupar com a justiça e, consequentemente, com a defesa da confiança pública, da concorrência desleal e da luta contra a corrupção.  Acresce que, apesar de haver variadas famílias dos integrantes da futura, urgente e necessária união, ou federação, dos liberais portugueses, não podemos esquecer que um dos focos inspiradores desta corrente, o nosso enraizado herculanismo, ainda por cumprir, longe de se diluir na urbanidade destribalizadora do centralismo apátrida, sempre assumiu as virtudes camponesas e burguesas daquilo que os “capitaleiros” desdenham como província. Sem o urgente regresso às virtudes dos radicalismo desecntralizador não haverá uma espontânea unidade nacional. Sem assumirmos a denúncia dos modelos absolutistas do Estado a que chegámos não haverá regeneração da nação portuguesa.  Só através da restauração das liberdades locais e das proibidas liberdades regionais, poderemos federar as muitas pequenas pátrias da nossa grande pátria. Só através do liberdadeirismo dos muitos povos do nosso grande povo é que poderemos extinguir o Leviathan do centralismo absolutista que é tanto mais perigoso quanto se disfarça de visitador das vilas e aldeias em tempo de campanhas eleitorais.

Jan 18

A Santa Aliança das tiazinhas com os bloqueiros

Nos tempos dos ideologismos delirantes dos tempos do fim do antigo regime e do “prec” que tal esquizofrenia gerou, a causa de todas as nossas crises chamava-se “burguesia”, como se ela alguma vez tivesse existido, a não ser no Porto. A sincrética coisa social que recebia esse nome não passava da casta dos contínuos dos donos do poder, num misto de fidalgote falido e de devorista assanhado, especialista nos sucessivos adesivismos que marcam o crepúsculo, ou a génese, de qualquer regime lusitano e que durará “ad nauseam”, enquanto a capital estiver mentalmente onde está: no umbigo serviçal dos mandadores.  Essa tal coisa social que persiste camaleonicamente, mantendo o cobarde equilibrismo e o opostunismo balofo, parece extasiada pelo falso brilho de alguns dos respectivos filhotes que a si mesmos se decretam como “as elites”. Assim, depois de estar cansada de enviar, para as feiras do Norte, alguns dos respectivos gladiadores populistas da direita a que chegámos, depois elevados à categoria ministerial, parecem agora virar à esquerda e tratam de pactuar com os irmãos e primos dos ditos, os tais que ainda não se conseguiram curar da epidemia do revolucionarismo frustrado.  Com estes olhos, já eu vi como as tias da linha de Cascais e da Avenida de Roma, embora com alguns maus fígados e certos brilhantismos de falantes picaretas, estão sequiosas desse radicalismo verbal e desse ilusionismo conceitual, julgando que assim lhes será concedida uma absolvição colectivista para a respectiva má-consciência.  Ao contrário de alguns receosos puritanos que, em muito ulcerosa indignação, temem a chegada desses vermelhuscos albaneses, bem desejaria que tal coisa social pudesse ter os respectivos destinos norteados pelas legiões vingadoras do major da Polícia Militar e que todos fossem à missa por alma de São Trotsky.  Porque se os esquerdistas revolucionários forem a balança do regime, incomodando o sonho maioritário, apenas poderemos concluir como seriam baldados os longos e coerentes esforços de uma esquerda democrática e pluralista que, mesmo quando se afirmou socialista, nunca desdenhou a religião secular do liberalismo político.

Jan 18

Da campanha

Campanha é esta flagrante violação dos deveres de um governo de gestão, mas julgamos que poucos já engolem a febre inauguradora, bem como os protestos do partido oposicionista, quando diz que estão a inaugurar obras que foram lançadas pelo governo anterior. O povo é que paga! Bem gostaríamos que estes especialistas em gerirem mal o dinheiro de nós todos fossem obrigados a indicar, em qualquer obra que lançam ou inauguram, a percentagem individualizada, por média, do dinheiro que cada cidadão é obrigado a entregar ao Estado. Sobretudo que deixássemos de ser qualificados pelo eufemismo de “contribuinte”, dado que não contribuímos voluntariamente naquilo que é “imposto”. Valia mais chamar aos que gerem a nossa massa os “imposteiros” e aos que pagam os “impostados”.

Jan 16

Somos o sinal do que há-de ser, as mãos livres que hão-de vencer

Esses ex-”ministros do reino por vontade estranha” que por aí continuam a pensar que somos desgovernados, persistem em suas acções de supremos teóricos de sopeiras intelectuais, adjuntos ministeriais e candidatos a lugares de serviços de espionagem, mas que acabam patrões de empresas municipais de lixo e estacionamento.  Por mim, que tenho sido sucessivamente vítima dessas vérmicas vindictas, com efeitos visíveis em todos segmentos hierárquicos onde os mesmos manobram, desde as zonas do Estado que ainda estão sob a suas directas tutelas, às que dependem dos ministros que inspiram, dos reitores que controlam e dos amiguinhos de vigésima quinta hora que lhes requerem as falsas amizades para os poderem substituir, quero, aqui, declarar que se os voltar a ver, mesmo a meio metro de distância, nem que seja num corredor da morte, voltarei a não os conhecer e a nãos os olhar do pequeno alto da minha pobre coerência, para eles terem de desviar a sua rica perspectiva para o sítio onde costumam cair os dejectos que os sustentam.  Essas ilustres misturas do Cristóvão de Moura, na caça ao cargo, com o Miguel de Vasconcelos, na pesca da notabilidade teórica, pelo cheque recebido em cada artiguelho publicado, com boa tradução das compinchas que lhes aparavam as angústias de impotentes e encomenda da “pay list”, revela como nosso Portugalório continua a ser vítima desta invasão sem dor chamada cobardia, assente na traição, na quebra da honra e na venda da inteligência.  Por mim, um dos membros do clube do que desdenhosamente chamam poetas mortos, dos ditos mal-amados, a quem seria óptimo organizar um “in memoriam”, quero declarar que, mesmo que seja sujeito ao inevitável processo inquisitorial que marcou os meus antepassados culturais, tenho, nos directos ascendentes, a razão que me leva a estar disponível para passar imediatamente às barricadas, quando sentir que as garras do autoritarismo ameaçam cravar-se no dorso dos aparelhos de Estado. Alguns dos meus avoengos sofreram nas masmorras salazaristas durante anos, por denúncia do senhor regedor da paróquia que, clamando pela GNR da cidade, chamou revolta comunista a uma justa movimentação de camponeses. E, muito justamente, um desses meus exemplos de vida terá dado, em legítima defesa, uma enxadada no pobre cabo da polícia que o ameaçava com a espingarda.  Eu sei que Mateus Álvares não vai vencer e que ele até é, conscientemente, um falso D. Sebastião. Também sei que somos apenas oitocentos guerrilheiros encurralados nas falésias de São Julião. Até reconheço que os nossos discursos terão o destino que levou à inevitável derrota do Manuelinho de Évora. A rede estadual-fradesca do invasor e a magnífica pleiâde dos colaboracionistas, aquilo que vossas premiáveis comendas chamam a “bela ordem”, já comanda todos os interstícios do formidável vazio de poder gerado pelas muitas homílias hipócritas e pelas imensas sacristias controladas pela prebenda. Mas também sei que somos o sinal do que há-de ser, as mãos livres que, um dia, hão-de vencer e retomar a lusitana antiga liberdade.  Há frades livres que vão escrevendo novas e apócrifas actas das Cortes de Lamego, por mais que os hutus organizem os planos de genocídio contra os tutsis, com os doces e higiénicos subsídios das internacionais sentadas em Estrasburgo ou Bruxelas, as tais que aqui vêm retratar o nosso progresso turístico, visando transformar-nos em reserva ecológica mundial, esquecendo que há portugueses que querem ser independentes, que querem a efectiva continuidade da independência política de há oitocentos e tal anos e não apenas o reconhecimento e inventário das ONGs que registam selvagens e primitivos actuais.  Vossas mãos papudas pelos tais salamaleques contorcionistas, podem ser finas e abençoadas, cristãs e democráticas, democristãs e democretinas. Elas podem ainda guardar algumas das pingas tombadas das galhetas e muitos restos de incenso e velas de cera, mas não têm a altura da benção nem a fluidez alada das ascensões. Estão poluídas pela água choca das falsas pias de água que já não é benta e o tlim tlim de vossos anéis e pulseirinhas são mais astral de macumba do que ânsia de divino.  Mesmo a pretensa racionalidade de vossos discursos enlatados é o mais desse mesmo, silogístico e cadavérico, recheado citacionalmente pelas más traduções de revistas a que agora todos podem aceder na Internet. Já cheiram ao bafio de um tempo em que mandava quem estava apenas lá em cima, desses que, para serem ministros, tinham que se fingir heróis galifões nas recepções do “jet set”, prometendo noivar as fealdades deserdadas do prazer da felicidade. Agora, há povo e, cada vez mais, intelectuais livres. Talvez ainda possamos evitar a derrota das Cortes de Tomar. Viva Febo Moniz.

Jan 15

O elemento mais marcante do salazarismo

O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, atingiu-se o exacto contrário daquilo que se foi proclamando.  E tudo se disfarçava com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato podia ser gratificante. Sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parecia transportar para a delícia cultual dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta. O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade.   O nosso yes, minister não é apenas uma sátira para série humorística, dado que ainda transporta os punhais assassinos que nos violaram, nesses colossais edifícios de gigantescas colunas amedrontadoras, nesses longos átrios que poderiam servir para cadaverosas exéquias, onde ameaça sempre soprar o gélido vento da morte, enquanto neles vão desaguando os passos perdidos de labirínticos corredores que sempre nos fazem lembrar hospitais-prisões. E nesse arquitectónico feito pelos engenheiros do absolutismo, a solidão do indivíduo, que resiste em suas crenças, quase se transforma em medos enregelantes. Sobretudo, em agrestes noites de invernia, quando as diluídas luzes de néon contrastam com as saudades do diurno e luminoso sol, dessa memória de força que nos vai despertando a vontade de fugirmos para bem longe desta prisão dos tempos cronometrados. Porque a liberdade e o movimento estão lá fora, rimam com rua, rimam com povo, com esse povo proibido, que continuam a comprimir em filas de autocarro, em ditaduras de relógios de ponto, horas para entrar, horas para sair, horas para almoçar, segundo o ritmo da burocracia cinzenta, planificada, avaliadora. Por isso apetece peregrinar pelos exílios que podem ser e sempre estão à nossa espera. Há desafios que só podem ter daquelas respostas imediatas assentes na intuição que nasce da honra e apenas é comandada pelo lume da profecia, mas com um discurso daqueles que têm o sangue frio dos que sabem manejar a racionalidade em pleno olho do furacão. Porque é em plena crise, acompanhando o movimento das circunstâncias, que podemos evitar ser arrastados pela tempestade.  Não para domarmos os ciclones, mas para podermos continuar a domar-nos a nós mesmos, garantindo a resistência da nossa autonomia e tentando continuar a viver como a nós mesmos nos pensamos. Se não somos superiores às forças desabridas que outros provocam, nem por isso nos temos que juntar aos pretensos vencedores, nesse ritmo dos cataventos que apenas servem para registar o que os outros fazem, donde vêm, para onde vão e por onde passam. Nossas mãos, serenamente livres, porque nada devem a quem não o merece, podem continuar a acalentar o prazer da descoberta, acariciar cordas do navio que nos vai levar longe daqui, para o outro lado de um mar que há-de ser.