Mar 27

O clero, a nobreza, os fidalgotes e a falta de povo

De há uns tempos a esta parte, grande parte dos comentadores e analistas lusitanos vem observando que Portugal continua a estar dependente das corporações. E cada um, conforme as respectivas tendências freudianas, atira, para cima do respectivo fantasma dilecto, o labéu dessa feia palavra que nos evoca a Constituição de 1933 e o salazarismo, de más memórias. Aos costumes, apenas diremos que, apesar de sermos um país relativamente pluralista, uma sociedade restritivamente aberta, uma democracia deficientemente competitiva e um Estado vulneravelmente de Direito, falta-nos muita boa educação para atingirmos os níveis das comunidades de homens livres e da autonomia pessoal, enquanto indivíduos que pensam o sentimento e actuam em conformidade, sem porem os pés no sítio da cabeça. Tentemos uma explicação sócio-satírica, sem marxianos ou liberalismos, mas com alguma historicidade viva. Julgamos que a sociedade de ordens e a sociedade de Corte do “Ancien Régime” absolutista não foram suficientemente decepadas pelo individualismo regenerador do movimento liberal que, desde o início, se viu a braços com um longo conflito entre o partido da tropa e o partido dos becas, juristas ou magistrados, com o primeiro a querer conservar a função clássica da nobreza e o segundo a querer usurpar a missão inerte dos clérigos e teólogos. E, a partir de então, quase todas as nossas chamadas revoluções viveram esta tensão, desde o 28 de Maio, onde o partido da tropa indicou o venerando chefe de Estado e o partido dos becas nomeou o tal Salazar que acabou por instaurar o clericalismo de uma autêntica república dos catedráticos, transformando as faculdades de direito, isto é, a união da faculdade de cânones com a faculdade de leis, nos verdadeiros seminários do regime. Também com o 25 de Abril, o conflito entre a vigilância militar revolucionária e os chamados constituintes e constitucionalistas manteve o pano de fundo que atingiu o clímax quando o presidente-tutor, político-militar, se civilizou pelos votos e recebeu, nos costados, a agressividade dos Soares e Sá Carneiro, herdeiros dos velhos becas, fortemente apoiados pelos cultores do Texto. Isto é, por uma classe política dominada pelos novos teólogos que, entretanto, multiplicaram as escolas de becas pelo quase infinito das três dezenas, mantendo, contudo, o rigoroso controlo do restrito corpo de doutores que, durante décadas, deixou intacto o “numerus clausus” herdado do salazarismo e do caetanismo, quando apenas existiam duas escolas de leis. Terá escapado ao atavismo a brevíssima I República, dado que, ao lado de becas-politiqueiros, como Afonso Costa, surgiram inúmeros médicos, segundo o paradigma de António José de Almeida. Também com a passagem do abrilismo para o cavaquismo deu-se aa emergência dos cultores da “rainha das ciências sociais”, como mestre Aníbal, coisa que desviou muito do nosso falso messianismo para o mito da macro-economia. Acabou, contudo, por acontecer aquele desespero da erosão do poder que nos obrigou a chamar um “engenheiro”, desde o chamado “picareta falante” ao presente de Sousa, ainda sem alcunha  adequada, porque ainda se não abriu o melão. Entretanto, começam a mostrar os ímpetos conquistadores outras corporações, desde a eterna casta banco-burocrática, reanimada pela engenharia financeira, à novíssima fauna dos patos bravos e da futebolítica, esse sucedâneo de povo, com muita pronúncia do Norte. Apenas acresentaremos, à maneira de Garrett, que a sociedade já não é o que foi, nem pode voltar a ser o que era. A velha nobreza militar acabou elogiando um grande comprador de todos os brinquedos para as próximas décadas. E os velhos clérigos legistas, com tantos doutores das privadas e outros mais produzidos nas Espanhas e araganças dos doutorados por correspondência ou permanência sazonal, que aqui apenas precisam de registo. E a casta banco-burocrática nem sequer parece ter força para deitar abaixo uns sobreiros, dado que o Ministério da Agricultura não autorizou o corte de sobreiros em Benavente, na golfíca Herdade da Vargem Fresca. Valha-nos o espírito que ainda é santo, não comercial, nem de Lisboa… E no meio de tanta penumbra e desemprego de jovens licenciados em ciências ocultas e engenharias de província, apenas se confirma que a Olivedesportos passou a mandar na comunicação social e que continuamos a ser algemados, nos interstícios transicionológicos, tanto pela gerontocracia como pelo partido dos fidalgotes, isto é, não pela nobreza da função, mas antes pelos “filhos de algo”, isto é, pelos que, tendo nome de família, não precisam de pagar cem euros por mês para poderem frequentar um estágio de pós-licenciatura num desses hospitais estaduais, agora dominados por gestores profissionais que ganham mais do que o próprio Presidente da República. Quando é que o povo acede ao poder, sem ser pela via dos empreiteiros, futeboleiros e quintareiros das celebridades? Segundo consta, o pelagianismo é uma teoria alegadamente defendida pelo monge Pelágio (360-435), originário das Ilhas Britânicas, que, segundo os seus detractores, defendia que o pecado original não contaminava a natureza humana porque ela tinha sido criada por Deus e era por isso divina. Esta doutrina foi condenada como herética pelo Concílio de Cartago, em 417. Todos os cursos, patrocinados pelo Millenium BCP, são equivalentes aos mestrados portugueses, bastando, para tanto, um mero registo, de acordo com a legislação em vigor. Dan Brown não será usado como bibliografia, o eurocepticismo de Paulo Teixeira Pinto não será recordado e os participantes receberão, para além do adequado certificado anti-herético, um indulgente argumentário, com fotografias a cores, para ser usado na próxima campanha do referendo sobre a IVG. Outros anti-europeístas do costume, como um professor da Universidade Católica, um nomeado constitucionalista, não foram convidados. Cerca de metade do eleitorado europeu corre também o risco de excomunhão. Amen!