Às vezes o “homo institutionalis”, isto é, o que deve cumprir uma ideia de obra, o que tem o prazer da relações de comunhão e o que obedece a regras processuais, entra em conflito com o “homo sectarius”, quando os agitadores dos fantasmas do “homo partidarius” consideram que os excêntricos devem passar à categoria de “inimicus”, só porque não alinham no unidimensionalismo louvaminheiro que se reproduz em silogismos propagandísticos e exorcismos inquisitoriais. Malhas que a nossa educação continua a tecer. Sempre preferi estar de acordo comigo mesmo, ainda que, momentaneamente, pudesse parecer discordar com todos os outros e remetendo-me para a minoria, às vezes, constituída pela minha própria pessoa. Sempre rejeitei ceder à técnica do velho maquiavelismo que tenta instrumentalizar os excêntricos, pondo-os uns contra os outros, para que resulte o “divide et impera”, coisa que aprendi pela experimentação sofrida com a politiqueirice lusitana, plena de tacticismos sem estratégia, gerida por alguns que, num dia, mandam morrer soldadinhos, fiéis ou jagunços, para, no “day after” à derrota, se passarem para o vencedor, ultrapassando assim a própria desvergonha do pilatismo. Sempre assumi o risco de, não sendo vice-rei, ficar de mal com el-rei por amor dos homens e de mal com os homens com amor de el-rei, até porque, muitas vezes, me engano, errando, e, outras tantas, tenho dúvidas, típicas de bicho intelectual. Contudo, tento não me enfileirar no conceito de “prima dona”, entre aquela que anda sempre em bicos de pé e a sua irmã-inimiga, a que anda sempre de pé atrás, pensando que, ao não sujar as mãos nos compromissos, se podem escoucear os outros, eternamente. Não sou “homo partidarius”, mas sou militante, especialmente de causas, e quase sempre das perdidas. Tudo isto para comunicar aos meus queridos leitores que, no mesmo dia em que aqui elogiei um líder político de uma organização a que estava ligado, imediatamente formalizei a minha desvinculação da mesma, concretizando processualmente o que, já antes, tinha substancialmente assumido e manifestado. Para bons entendedores, aqui fica a coisa sem meias palavras.
Monthly Archives: Abril 2005
O meu 25 de Abril, em textos coevos e ainda coimbrinhas, muito pouco cravotípicos, a trinta e um do dito
Dar um depoimento sobre o 25 de Abril em sessenta segundos, só através de uma caricatura. Digamos que nesse dia de 1974 nos vimos livres de um regime que havia sido montado por um avô autoritário, ao estilo do pai tirano, e que chegou o tempo da geração do pai modernaço e “bon vivant”, muito viajado, que não tinha problemas de abrir as janelas, porque resistia às correntes de ar. A certa altura, no fim da década de oitenta, os membros da família, fartos dos laxismos desse pai modernaço que não gostava de ler “dossiers” e que até meteu a ideologia na gaveta, pediram ajuda a um tio austero, que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava. E foi ele que tratou de pôr ordem no orçamento, pintou a casa e arranjou os caminhos e as cêrcas do quintal. Depois, tanto o pai Mário como o tio Aníbal saíram da coabitação, dando lugar ao primo António que logo mostrou o que valia, abrindo a gestão ao Durão, ao Portas, ao Santana e ao Sócrates. Por outras palavras, como dizia Ortega y Gasset, todas as revoluções são pós-revolucionárias. Medem-se menos pelas intenções dos primitivos revolucionários e mais pelas acções dos homens concretos que fazem a história, sem saberem que história vão fazendo. Porque, na prática, a teoria é outra… Daí que comemore o dia com pequenos textos recolhidos de meus diários, concluindo com parte de um artigo que publiquei no “Povo Livre”, em 1976. Em 25 de Abril de 1974, a minha mãe acordou-me às dez horas a dar-me a notícia do golpe de Estado. Fiquei toda a manhã a ouvir os comunicados que a rádio ia transmitindo. De tarde, tive exame de Medicina Legal, comprei “A Capital” na Portagem e fiquei toda a noite a ouvir rádio e a ver televisão. Só dei um pulo de contente, quando ouvi o nome do General Spínola. Afinal aquilo podia ser o meu golpe de Estado. O vinte e cinco de Abril foi a tão esperada pedrada no charco do nosso letargo, o tal indisciplinador de que falava o poeta. Poucas vezes terá acontecido na história deste país uma tal explosão de emoções e uma tal mobilização de vontades, que criaram condições para que a tal libertação da mola desoprimida que se partiu se transformasse numa autêntica revolução libertadora, pois raras vezes os ideais de pão, paz, justiça e liberdade terão sido, ao mesmo tempo, de tantos. Mas a ilusão não duraria muito tempo. Nos subterrâneos do processo, começava a gerar-se uma aliança “contra natura” entre certos militares, que haviam sido libertadores, e alguns intelectuais ditos “unitários”, aliança essa que pretendia fazer uma leitura totalitária de um programa que se asumia como de salvação nacional. E o espírito do vinte e cinco de Abril a que quase todos tinham aderido, foi sendo progressivamente usurpado pelo oligopólio dos que não queriam, ou não sabiam, entender a palavra liberdade. “Ser-se revolucionário de acordo com as maiorias é um contra senso”, afirmou certo dia um tal marinheiro que havia sido alto-comissário (não) de Portugal em Angola. Era o estado de espírito de todos os pretensos libertadores que pretendiam alcançar o poder através da “insurreição a partir do aparelho de Estado”. Traduzindo em calão todos quantos modelos de revolução haviam sido inventados desde os tempos de Lenine, os nossos surrealistas revolucionários não se entendiam quanto ao modelo mais adequado. Tivemos, assim, desde os mais estalinistas dos leninistas, aos maoístas ultravermelhos, com passagem pelos titistas, guevaristas, trotskistas, castristas, oportunistas, vigaristas e outros que tais. Um repetir “ad nauseam” de todos os “ismos” que o mundo e o submundo haviam produzido no meio século anterior. Em todos eles, sempre o mesmo erro: o de pensarem a história, não como uma co-criação de homens livres, mas como algo que os manuais das respectivas ideologias já trazem escrito; o de, obcecados por determinados modelos de homem e de sociedade, quererem neles encaixara realidade de qualquer modo, nem que fosse pelo camartelo das propagandas e das polícias. Mas a revolução não eram só os generais em mangas de camisa e discursar no Sabugo, nem as “madamas de pá p’ra cima” das campanhas de alfabetização. Para lá da comédia, havia a tragédia da repressão “tout court”. É que, parafraseando Albert Camus, “para adorar por tempos e tempos um teorema, a fé não chegava; era preciso mobilizar a polícia”. É que, “enquanto houvesse inimigos, reinaria o terror e haveria sempre inimigos enquanto a revolução existisse e para que a revolução existisse”. Com o Verão Quente de 1975 e o pronunciamento de Tancos, iniciou-se o processo da segunda libertação que, no entanto, só viria a consolidar-se em vinte e cinco de Novembro. Foi a queda dos garnizés, pequenos e médios oficiais, incluindo generais graduados, que haviam subido ao poleiro do poder graças a toda a sorte de bicadas traiçoeiras, quase nos tendo lançado para o lodo mais nojento que o charco do antigo regime havia produzido. A segunda libertação, não sendo tão embriagadoramente eufórica quanto a primeira, foi, contudo, muito mais eficaz. É que os portugueses, tendo sofrido na carne e no espírito a tragicomédia da pseudo-revolução, já não eram o povo despolitizado do salazarismo nem o povo sloganizado e massificado do gonçalvismo. Fartos de batalhas contra fantasmas do outro mundo, estavam agora lançadas as condições para descobrirmos que o inimigo verdadeiro eram as nossas próprias divisões internas. O que nos dividia, no entanto, já não era o Velho do Restelo. Os que partiram de Belém com Vasco da Gama já não podiam descobrir mais nada. Nem sequer o caminho marítimo para a Índia do socialismo original, pela via do terceiro mundo. As nossas caravelas ou se afundaram tragicamente na aventura africana, ou regressaram meio arrombadas às praias ocidentais donde haviam partido. Aliás, desde que o Almirante Tenreiro as transformou em duvidosos bacalhoeiros, as mesmas já haviam perdido toda aquela sedução que exaltava os nossos épicos. Regressados definitivamente às nossas fronteiras europeias, também já não podemos sonhar com o regresso de D. Sebastião. Agora é que D. Sebastião talvez tenha morrido de vez. Mas se o Desejado-ele-próprio já não pode voltar, porque as areias movediças da traição o fizeram perder, talvez o sebastianismo continue. E, o que é pior, talvez continue na sua faceta mais retrógada e obscurantista, aquela que aceita toda a injustiça, todo o crime e toda a mentira, pela promessa de um milagre.
A loucura dos “talibans” europeístas e a sabedoria de alguns dos nossos professores de democracia
Faria bem a qualquer desses “talibans” do pretenso europeísmo, aos que confundem a coisa com o seguidismo face à dita Constituição Europeia, para defenderem o emprego eurocrático ou para se situarem na fila rebanhal do partidarismo supranacional, que fosse meditada a voz sensata de António Barbosa de Melo de de António Almeida Santos, dois antigos presidentes do nosso parlamento, na TSF de hoje, comemorando Abril. O primeiro foi veemente ao considerar que o dito texto estava “abaixo da racionalidade europeia” e que se o mesmo documento não passar “arranja-se outra coisa melhor”, denunciando a virulência chiraquiana da ameaça do tudo ou do seu nada. Já o segundo também se manifestou contra a hipótese de referendarmos um texto com centenas de artigos. O meu querido amigo e mestre Barbosa de Melo, a quem devo muito de quem sou, porque soube apoiar-me quando a virulência da mentira e da infâmia pintavam de negro quem era branco, sempre foi tão modesto e austero na sua sabedoria que, respeitando as exigências do “cursus honorum” da vida universitária, renunciou a cumprir aquilo que merecia. Mas não é por isso que deixa de ser o professor dos professores. E se eu mandasse proporia uma lei não geral e não abstracta que lhe desse essa categoria de máximo, no activismo universitário. Já Almeida Santos é mestre insigne nessa raiz da democracia a que se chama palavra em conversa, de acordo com a velha definição de Aristóteles, segundo o qual o “zoon politikon” sempre foi um animal de “logos”, isto é, animal de discurso, numa etimologia que muitos confundem com o animal racional, do estreito racionalismo geométrico. É pela palavra que aprendemos a viver-com e a prender-com, a conviver e a compreender, e sem discurso, sem palramento não há parlamento. Ele é, sem dúvida, o mestre dos conversadores pedagógicos da nossa democracia. Com que gosto, eu ouvi estes meus queridos professores de democracia, feitos de convicção e qualidade, de honra e inteligência. Já outros, que usam e abusam da categoria do “ausente-presente”, seria bom que não usurpassem, pelo abuso mediático, a função do senador, contribuindo para o desprestígio da sabedoria, dado que, como gerontes intervencionistas, viciados em protagonismo sem recato, continuam a misturar a ideia decadente de “brigada do reumático” com o activismo histérico do MRPP.
A questão liberal e a superveniência do confessionalismo
A superveniência de tópicos confessionais que tem vindo a enredar a partidarite lusitana levou a que renascesse o tradicional conflito entre a política e a religião, que parecia sepultado na pós-revolução. Regressou-se assim aos confusos tempo do demoliberalismo e do salazarismo, com o retomar dos fantasmas do congreganismo e do anticongreganismo. Parece que já esquecemos os próprios tempos de institucionalização da democracia, quando o grande partido anticomunista fez com que católicos e laicos convergissem tanto nas manifestações promovidas pelos bispos-condestáveis como nas várias alamedas desencadeadas pelo PS e pelo PPD. No seio do PS e do PSD ainda se misturam maçons e militantes catolaicos, mas quando os ventos de Roma apontam para aquilo que é qualificado como luta contra a ditadura do relativismo, o ambiente interno português, onde ainda não se resolveram questões como a IVG e as uniões de facto, pode ser propício para o regresso aos fantasmas. A questão político-religiosa, disfarçada pelas cláusulas gerais da defesa da vida e da família tradicional, pode levar a que as pulsões reaccionárias traduzam em calão maniqueísta tão complexos valores, com os consequentes equívocos. E tudo se agrava neste ambiente de pequena política, típica do regime dos tarimbeiros, marcado pelo ritmo dos “soundbytes” e de certo fundamentalismo discursivo. Pior do que isso: quando as presentes e futuras lideranças de direita, cedendo à chantagem de certa esquerda, que fabrica as chamadas “causas de direita”, da tal direita que convém à esquerda, as posturas liberais da esquerda da direita e da direita da esquerda, num país pouco habituado à tradicional postura dos radicais do centro, que, por muitos, ainda é confundida com o centrismo equidistante do cobarde rigorosamente ao centro, ambas as atitudes políticas, mais culturais do que políticas, aliás, acabam por dispersar-se entre muitas capelinhas, mais ou menos ortodoxas, mais ou menos estrangeiradas. Aqueles que pretendem manter a antiga, mas não antiquada postura liberal, azul e branca ou republicana, começam assim a perder a possibilidade de intervenção cívica. Basta também recordar como foi instrumentalizada a ideia liberal por certos clubes dos finais da década de oitenta, onde os mais mediáticos de direita se benzeram como democratas-cristão e os mais badalados de esquerda se volveram em sociais-democratas ou socialistas, ao mesmo que, pela via da importação, começaram a pulular muitos grupos neoliberais que costumam rivalizar entre si, conforme os encontros imediatos de pretenso primeiro grau que cada um deles tem com certas universidades ou certos clubes de fans de alguns autores. A própria inelasticidade do sistema político-partidário, bem como os erros cometidos por alguns projectos, para não falar na falta de apoio popular, levam a que a institucionalização de tal família política tenha que continuar adiada por mais alguns ciclos políticos.
Elementos para uma teoria dos tumores de micro-autoritarismo
Ainda há instituições que continuam a ser espaços infradomésticos de falso paternalismo, porque ingloriamente dependentes de certos capatazes e dos respectivos fiéis. E nesse universo de cinzentismo pós-totalitário, quem se assume da oposição quase parece que comete um pecado, porque os donos e senhores da coisa logo dizem que monopolizam o conceito de bem institucional, considerando os divergentes como dissidentes a abater. E assim podem sobreviver, para além do prazo de validade, sistemas imperiais de gestão, marcados pela arendtiana categoria do governo dos espertos, onde se manipula a legalidade, conforme o uso que dela podem fazer os espiões da Razão de Estado. Os quais nem sequer alguma vez compreederam o mínimo denominador comum da civilização do Estado de Direito. Seguindo o manual de organização política e administrativa da nação, com que se formatavam os chefes de repartição do “ancien régime”, tais ilustres autocratas conseguiram continuar a medrar neste sistema de formal democracia pluralista e competitiva, só porque instrumentalizaram o processo do anticomunismo e de luta contra os excessos do PREC, gerando tumores de micro-autoritarismo. Estes, florescentes em épocas de transição, vão continuando a germinar pela podridão das sucessivas inércias e até pelas descaradas coberturas de alguma partidarite, que os ditos cujos usam e deitam fora, conforme as conveniências. Não falta sequer o recurso às próprias pompadours, bem como uma espécie de actualização da pretensa conspiração de avós e netos, com esbirros desempregados a tentarem a junção da brigada do reumático dos gerontes com a rapazida dos novos eme-erres. Há também alguns inimputáveis, sempre temendo a chegada dos justos cobradores de fraque, bem como uma certa legião de cordeiros amansados pelo temor e falta de espinha, aquela moluscular base de recrutamento para a inevitável vindicta dos “days after”, quando as peles da fingida doçura hipócrita, com que fingem obediência, não conseguirem recobrir as inevitáveis unhas aguçadas da revolta dos PREC. O vale-tudo da opressão sempre gerou o incontrolável das libertações das molas oprimidas, quando estas se partem e emerge um poder à solta, inversamente proporcional, em revolta contra a frieza cinzenta da opressão concentracionária. A cultura da dependência, gerada pela estreiteza de vistas do paroquialismo balofo e pelo charlatanismo dos piratas com chapéu de coco, que confundem a palavra com a demagogia, apenas afina o delírio de um carreirismo cobarde. Acresce que tudo se pode agravar quando as ondas do reviralho se reduzem a péssimas alternativas oposicionistas, permitindo que a comparação com o mau do situacionismo leve a que se opte pelo regime dito “do mal, o menos”. Com efeito, o facciosismo e aventureirismo podem acabar por enclausurar o sistema, agravando a loucura despótica e concentracionária, hábil na manipulação da teoria conspiratória do “Anticristo” e do “Gegenreich”. Mas não há mal que sempre dure nem falso bem que não acabe por ser desmascarado, principalmente quando o niilismo crepuscular faz com que os sistemismos situacionistas acabem por cair de pôdres. Especialmente quando o hossana desafina já sem altura os conspurcadores nem sequer conseguem vestir-se com a mentira dos anjinhos papudos…
Neste Abril de águas mil, em que renasce meu sentir
Inesperadamente, uma chuva miudinha, mas intensa, vai molhando a cidade velha, lavando muitas mágoas. E, anotando meu “carnet d’antropologue”, em estilo de reportagem íntima, o meu olhar se vai perspectivando sobre o mundo e as gentes que me circulam. É, sobretudo, o acaso procurado que me acontece, numa qualquer curva do caminho, o inesperado de há muito antecipado, a emoção que racionalmente fui construindo, neste permanente encontro do eu com as suas circunstâncias, entre o sonho que me leve além e a força normativa dos factos, onde só por dentro das coisas é que as coisas realmente são. Porque a vida vivida, sem a aventura de quem passeia na cidade, correndo praças, ruelas e travessas, neste prazer do movimento que é vivermos como pensamos, permite que enfrentemos, olhos nos olhos, o calculismo frio dos que, por tanto planearem, se dispersam em pensamentos sem sítio, acabando por transformar-se em frustrações semoventes. Prefiro o pragmatismo da aventura, o tal transcendente situado de quem dá corpo ao sonho, olhos, mãos, sons, sabores e cheiros, neste procurar o todo da compreensão, onde, em comunhão, podemos fazer cidade, tempo vivido, intenso e denso, entre passado e futuro, na dor-alegria do presente. Aqui e agora, pode sorrir-nos o mais além, mesmo em dia de chuva como hoje, onde, olhando por mim dentro, além de mim, é nos outros que me confundo e me difundo. Na seiva peregrina de ser vizinho e de apetecer viver comum.
Ratzinger e o fim da coligação negativa
Depois de ler algumas manifestações de desencanto de certos liberais católicos que, outrora, desperdiçaram a respectiva intolerância congreganista açulando a caça aos miguelistas, atacando quem, sendo tradicionalista, desembarcaria no Mindelo e faria a Maria da Fonte, tenho de concluir que Bento XVI antes de o ser já o era. Porque nenhuma nova era se desencadeia a partir de um simples acontecimento, seja um acto eleitoral que santifique um padre, seja a descida do espírito santo sobre a cabeça de 115 mortais que, sendo falíveis, só pela transfiguração podem escolher quem ascende à infalibilidade. Os insondáveis meandros do Vaticano, cujos segredos nem Dan Brown conseguiu desatar, têm mais a ver com a experiência secular dos salamaleques da Razão de Estado do que com um dos nossos debates parlamentares sobre o programa do governo ou a reforma do sistema político, animados por Francisco Louçã e Telmo Correia. Ratzinger é o cardinalício elevado ao clímax, o consagrado teólogo do Vaticano II que soube conservar o catolicismo e sustentou doutrinariamente o papa polaco. Daí que nenhum católico, que perfilhe os dogmas e as regras processuais do papismo, possa criticar “extramuros” o processo, a não ser que caia no ridículo de Salazar que, em conversas com os seus ministros, denunciava os erros teológicos do seu contemporâneo João XXIII. Também nenhum não-católico pode desancar na coisa a partir de uma perspectiva teológica. Mas temos o direito de entrar em dialéctica com a Razão de Estado vaticana no plano meramente secular, a partir de uma perspectiva política ou de uma perspectiva filosófica, denunciando as diferenças, até para que se identifiquem os lugares comuns, através dos quais se sustenta o diálogo entre adversários. Neste sentido, se é difícil, por agora, a postura em que se encontram os liberais católicos, julgo que têm as mãos mais livres os liberais não-católicos, especialmente os que também não sofrem de anticatolicismo. Eu, pelo menos, congratulo-me com a clarificação do nevoeiro, tendo, sobretudo, em atenção o mercado das ideias, principalmente, no tocante aos subsolos filosóficos, desde que ninguém pratique a missionação, do género da propaganda da fé, ou a irmã-inimiga da “agitprop”. Compreende-se também a decepção dos progressistas cristãos que, em nome do socialismo cristão, sonhavam com a conciliação entre o marxismo e o eclesiástico, instrumentalizando as leituras dos textos do Vaticano II, em favor dos peixinhos vermelhos em água benta. A era desta confusão de narizes e boas intenções parece ter chegado ao fim. Da mesma forma, podemos dizer que chegou agora ao Vaticano o fim da guerra fria. Aquilo que era a grande coligação negativa que, em termos intelectuais, sustentava o combate contra o sovietismo, a que alguns davam o nome de de comunismo, começou agora a concluir a respectiva saída da encruzilhada. Não para que surjam novas guerras santas entre os catolaicos e os estatolaicos, mas para que se distingam os campos e se desencadeie o necessário diálogo, a que alguns chamam modernismo e a que eu chamo tradição, pluralista, consensualista e complexa. O que passa por não abrirmos certos armários onde se guardam os esqueletos da intolerância passada, nomeadamente o combate entre congreganistas e anticongreganistas. Identicamente, terá que serenar o nevoeiro reactivo e emocional subsequente à entronização de Ratzinger que, epidermicamente, quase pareceu unificar pagãos e liberais, com Louçã e Soares a reeditarem uma espécie de frente neojacobina, onde apenas parecem faltar os formigas da Associação do Registo Civil. Cá por mim, prefiro procurar ser fiel a outras tradições liberais, desde as que foram representadas por Herculano, Ferrer e D. António Alves Martins, às que, defendendo a liberdade religiosa, foram assumidas em plena I República, contra a intolerância afonsista, por políticos como Leonardo Coimbra, Raúl Proença ou António Sérgio, culminando na imposição do barrete cardinalício ao núncio pelo grande emotivo da portugalidade que se chamou António José de Almeida.
Viagem a São Bento da Porta Aberta
Uma nova era está a nascer, conforme dizem os sinais do tempo. Porque, só é novo aquilo que se esqueceu. Porque só é moda o que passa de moda. Porque, muito vieiramente, importa recordar que o antigo já foi moderno de que o moderno há-de ser antigo. A eleição de Bento XVI demonstra que não há um fim da história, mas antes um permanecente regresso da história. Não a Leão XIII, da “Rerum Novarum”, não a Pio XI, da “Quadragesimo Anno”, mas a Bento XV, com mais teologia do que doutrina social, com mais universalidade do que debates sobre as “policies” do “Welfare State”. Com algo do sacro-império romano-germânico de Carlos V e com a eventualidade de um Filipe II. Uma espécie de regresso ao dogma, em nome da fé, e com a eventual abertura de um antiquíssimo debate, nomeadamente entre o ser liberal e o ser confessional, “vexata quaestio” de umas brasas inapagadas que as cinzas tinham recoberto, mas que os ventos do tempo novo fizeram reavivar, com o fim da Guerra Fria e os alvores da globalização. Coisas bem mais sérias do que o confronto soarista ou lefebvriano entre integristas e os progressistas, onde os primeiros seriam o diabo e os segundos, a ala vingadora do bem, do progresso e dos amanhãs que cantam. Não digamos, como o grão-mestre Sebastião de Magalhães Lima em 1912, quando, à frente de uma manifestação anticlerical foi recebido pelo presidente do ministério, Augusto de Vasconcelos, sublinhando que “o Papa de Roma é apenas o chefe do sindicato católico universal e não pode ser considerado como um soberano”. Recordemos apenas que este papa Bento XV foi aquele que, em plena I República, em 18 de Dezembro de 1919, emitiu uma encíclica aos prelados portugueses, apoiando expressamente a instituição do Centro Católico Português, o partido-antipartido de que era militante o super-centrista António de Oliveira Salazar e que foi criado de forma centralista pelo conclave dos bispos lusitanos, da mesma maneira como a Ditadura Nacional, já Salazar izada, vai criar, por resolução do conselho de ministros, o partido único antipartido do regime derrubado em 1974. O tal Bento XV, o papa da missionação, quando a própria Sociedade das Nações ainda traduzia para direito internacional o “white man’s burden”, à maneira de Kipling, em plena euforia civilizacional dos impérios coloniais, quando havia uma santa aliança de cristãos e maçons, então donos intelectuais do Ocidente. Prefiro retirar-me em espírito para as bandas do Gerês, instalando o meu olhar sobre São Bento da Porta Aberta. Por lá passa o caminho de Santiago, à descoberta de um mundo interior e ninguém também chama, ao nosso edifício parlamentar, Palácio de São Benedito, tal como não é tolerável o uso dos “sanbentinhos”. Importa o São Bento tanto da porta aberta como o escancarar das janelas, para deixar entrar o ar fresco desta manhã de primavera, mesmo que venha a apanhar alguma constipação. Que nem os pretensos progresistas ditos de esquerda considerem que ser conservador é um pecado, nem os pretensos hierarcas do dogma reclamem o monopólio do bem, da verdade e da boa relação com o transcendente. Por mim, só sei que nada sei. E sei muito menos do que Filipe II quando mandou para a Inquisição um qualquer frade que reclamava a necessidade de tal monarca passar a ser absoluto. Os herdeiros desta sagrada congregação até podem ser intolerantes e dogmáticos ao serviço da tolerância e do universalismo. Não analisem apenas os meios, cuidem dos fins.
Declaração de dívida intelectual
Agradeço aos estimados analistas ortodoxos da minha heterodoxia o convite que me fizeram para não ser. E que os deve ter enchido de gáudio, porque sempre avisaram quem de direito sobre o perigo desta espécie de bestas do apocalipse de que faço parte. Queria apenas dizer que o copo transbordou depois daquele pinguinho de água em que se traduziu a primeira provocação recebida sobre a matéria e que transcrevia uns “slogans” identitários que marcam este blogue desde a respectiva renascença. Imediatamente comuniquei a quem de direito que deixei de ser, para poder ser. Quem silencia (“tacet”), não consente (“nihil dicit”). Apenas nada diz, para poder voltar a dizer o que sempre disse, mesmo quando se treslia o que se lia. Os únicos realistas em Portugal são os adeptos do trancendentalismo da matéria, aqueles ideais-realistas que seguem a natureza das coisas. Porque o natural sempre foi o mesmo do que o dever-ser, onde, segundo o conceito grego e jusracionalista, natureza é o mesmo do que razão, do que procura da perfeição e do melhor regime. Aliás, é por dentro das coisas que as coisas realmente são. Ora, como o odiado teórico apenas é, segundo os tais gregos, que, afinal, somos nós todos, o homem maduro, isto é, o que repensa pela própria cabeça o pensamento dos outros, o que compreende, o que prende uma coisa com outra, folha com folha, árvore com árvore, para poder ter a intuição da essência daquilo que é todo, mesmo que seja a alma da floresta, não serei eu que passarei além da minha chinela, dado que apenas reclamo o tal conhecimento modesto sobre as coisas supremas.
Ter, ser, direita, esquerda, razão e emoção, em delírio de “secunda feria”, depois do dia do Senhor
Muitas são as substanciais diferenças entre o ter e o ser, tal como as separam o ser do próprio estar, o pensar do viver, a razão da emoção e o preto do branco. Como cientificamente não há raças, desde que se descobriu, pela experiência, que os amarelos são mais brancos do que os pretensos brancos, os mesmos que chamaram, aos morenos, peles-vermelhas, somos todos mestiços, embora não necessariamente cinzentos. Eis o drama de todos os que fazem interpretações dogmáticas e inquisitoriais sobre o augustinianismo, o do Aurelius Augustinus, a tal distinção entre a cidade de Deus e a cidade do Diabo, as duas que, na terra dos homens, se confundem, por falta de adequados planos directores e subsídios do programa Polis. Porque, aqui e agora, não há um lugar que seja monopolizador do bem e um sítio para onde se atire todo mal dos preconceitos e fantasmas, dado que o bem está cheios de muitos males e, no reino do mal, há imensos pedações de bem. Ora, quando politiqueiramente, com muita pulhítica, se proclama que quem está à direita é um ser de direita, pode ser que a direita e a esquerda sejam posições relativas que, começando na sala rectangular dos estados gerais franceses, acabaram no semi-círculo de São Bento, depois de um reunião prévia de distribuição topográfica, marcada pelo ritmo mental dos nossos líderes parlamentares, todos diferentes, todos iguais. Daí que, nesta terra de mestiços, onde todos somos saloios, mesmo quando nos disfarçamos de loiros, muitos ainda pensem que os moçárabes são mouros do tipo cristão-novo, quando eles são os velhos-crentes paleocristãos, descendentes dos que já cá estavam antes de chegarem os romanos. Os descendentes de tais primitivos habitantes deste jardim ocidental da terra dos coelhos, principalmente os que continuam a resistir na banda mais entrada no mar dessa península a que os fenícios deram o nome de nariz e que, dos promontórios, fizeram pedras sagradas, só são esotéricos para os que não reparam nas evidências exotéricas dos livros escritos pela vida. Da vida entendida como um dever-ser que é, onde devemos vivê-la como a pensamos, sem pensarmos muito como depois disso a vamos viver. E tudo de acordo com aqueles clássicos princípios que descobriram a existência de uma racionalidade axiológica, uns séculos antes do professor António Damásio comunicar ao “Expresso” que Descartes tinha morrido. Porque, um tal Pascal ou um tal Baruch, que, sendo oriundo da Vidigueira, era Bento e Espinosa antes de também ser Spinoza, acabaram por gerar a heterodoxia de um tal Rousseau, seguidor da lei da experimentação de um tal Pêro Vaz de Caminha. E nestas meias palavras, continuo a considerar que digo tudo, dado que, entre o preto e o branco, há interessantes cinzentos que podem ser vistos de azul e branco, desde que encaremos as coisas com a seriedade lúdica dos que vão brincando com coisas sérias. De outro modo, seria tudo uma grande chatice.