Jun 29

Galiza. Nacionalismo

A recente mudança política na Galiza tem recebido, da maior parte dos nossos comentadores jornaleiros e blogueiros, uma espécie de análise partidocrática, pró-esquerda ou pró-direita, ou, quando muito, de antipatia ou simpatia para com o velho Fraga, o ministro franquista que foi protagonista da transição para a democracia e para o Estado espanhol das autonomias. Julgo que o problema, visto de Portugal, é bem mais complexo, dado que se confirma a emergência de uma Espanha feita de um rendilhado de nações sem Estado que ameaçam conviver quase federalmente, a médio prazo, navegando em conjunto no mar da integração europeia e da globalização. Transformar os nacionalistas galegos em governantes de Santiago de Compostela, tal como já sucedia aos nacionalistas bascos e catalães, é um exemplo de maturidade democrática e de sabedoria dos nossos vizinhos e irmãos, bem como um excelente investimento da própria integração europeia. Esperemos para ver. E, como portugueses, não queremos ver qualquer tipo de destruição do Estado espanhol, de liquidação de uma experiência de cinco séculos, mas antes a vitória da democracia sobre separatismos traumáticos, mas respeitando-se as autodeterminações nacionais proibidas pelo centralismo madrileno. Se este processo continuar sustentada e pacificamente, julgo que será inevitável dar corpo político a uma nova relação multidimensional e de geometria variável no espaço peninsular, a que Portugal não pode ficar alheio, assumindo sem complexos a inevitável pluralidade de pertenças e até de um modelo de federalismo que, a coberto da estrutura europeia, pode eliminar o fantasma madrileno e castelhano e refazer a irmandade medieval donde brotámos. Bem gostaríamos que a Galiza pudesse vir a participar como observadora da CPLP, tal como não nos repugnaria que a região Norte portuguesa se inserisse com mais intimidade no espaço Norte-Atlântico da península. Se forem respeitadas as vontades das várias entidades políticas peninsulares, temos o dever de desejar a todos os nossos irmãos peninsulares que o caminho das autodeterminações nacionais possa desenrolar-se. A autonomia não tem limites, a não ser a vontade dos povos. Portugal deve oferecer a estabilidade da mais antiga Nação-Estado da Europa e das respectivas autonomias, não para instabilizar a vida interna dos vizinhos, mas para dizer que está satisfeito com a conquista da história que nos permitiu o querermos ser independentes. Somos nação politicamente autodeterminada antes de haver nacionalismo e comunidade política independente antes mesmo de ter surgido o conceito e a prática de Estado moderno. Podemos ser calmos e difundir a calma. E não confundir alhos com bugalhos.

Jun 28

Quando o lume da profecia se esvai em números, trapalhadas e embustes…

Importa questionar se, dentro de uma década, ainda seremos uma comunidade política assente na confiança pública e através de um aparelho de Estado autodeterminado. Porque a questão tem pouco a ver com o crescimento da função pública e com o o aumento das despesas da Caixa Geral de Aposentações. Aliás, quem liquidou, em poucos meses, um Império Colonial e, depois, nacionalizou, num só dia, quase todo o comando económico já respondeu a desafios bem maiores e conseguiu resistir. Apenas noto que, nesses momentos de metamorfose comunitária e de reidentificação nacional, os especialistas em numerologia não eram profetas. Transformavam por decreto milhares e milhares de empregados de organismos corporativos e de matadouros em funcionários públicos e incluíam neste grande asilo dos erros políticos os milhares de retornados, para agora criticarem o crescimento do Estado. A crise do aparelho engordado foi o preço que tivemos de pagar para a liquidação do império colonial, para a transição para a democracia e para outras loisas, nomeadamente para não termos guerras civis. Quem se ri, no fim do processo, e ainda é capaz de discursar sobre a nostalgia prequiana é gente que engordou mais do que proporcialmente face ao empobrecimento colectivo das futuras gerações, isto é, os sindicalistas da banca e dos seguros que aproveitaram os meandros da pós-revolução, ou os capitães feitos coronéis pançudos, que Fernando Nogueira tirou dos quartéis. Numerologia por numerologia, prefiro, mais uma vez, reconhecer que Cristo também não percebia nada de finanças, ao contrário de António de Oliveira Salazar que, depois de endireitar as contas públicas com o gesso da austeridade, nos obrigou andar de perna entalada já depois da mesma estar curada, numa quarentena forçada que também durou quarenta anos. Os orçamentos rectificativos são sempre uma trapalhada a que outros chamam embuste.

Jun 27

onde a pulhítica se manteve em preto e branco

Toda esta passagem do habitual guião da banda desenhada para a tela cinematográfica, onde a pulhítica se manteve em preto e branco, apenas pintando o sangue de branco e amarelo, veio tão só realçar a circunstância de ainda haver quem pense, sobretudo porque há quem continue a descobrir que os malefícios do presente pessimismo nacional radicam em Jean-Jacques Roçou. Qualquer incauto que assista ao espectáculo sabe que “Sin City” não existe, ao contrário desta pátria do pecado onde, sem pagarmos bilhete, nos vão ao bolso todos os dias, dizendo que o embuste mora sempre ao lado, com o novo Primeiro-Ministro a dizer que recebeu um embuste, para que os líderes da oposição que há pouco eram ministros, re-embustarem e se manterem os mesmos banqueiros, especialmente o do Banco de Portugal. Infelizmente a fita que temos de assistir todos os dias já não é apresentada com cenas de assalto à embaixada de Espanha, de inaugurações de habitação social presididas pelo ex-embaixador norte-americano e ex-director da CIA, ou de um concurso televisivo que virou “casting” de primeiros-ministros, antes de os ditos virarem comentadores políticos televisivos ou comentadores desportivos televisivos. Depois desta breve interrupção de Verão, o programa segue em embuste.

 

 

 

 

Importa questionar se, dentro de uma década, ainda seremos uma comunidade política assente na confiança pública e através de um aparelho de Estado autodeterminado. Porque a questão tem pouco a ver com o crescimento da função pública e com o o aumento das despesas da Caixa Geral de Aposentações. Aliás, quem liquidou, em poucos meses, um Império Colonial e, depois, nacionalizou, num só dia, quase todo o comando económico já respondeu a desafios bem maiores e conseguiu resistir. Apenas noto que, nesses momentos de metamorfose comunitária e de reidentificação nacional, os especialistas em numerologia não eram profetas. Transformavam por decreto milhares e milhares de empregados de organismos corporativos e de matadouros em funcionários públicos e incluíam neste grande asilo dos erros políticos os milhares de retornados, para agora criticarem o crescimento do Estado. A crise do aparelho engordado foi o preço que tivemos de pagar para a liquidação do império colonial, para a transição para a democracia e para outras loisas, nomeadamente para não termos guerras civis. Quem se ri, no fim do processo, e ainda é capaz de discursar sobre a nostalgia prequiana é gente que engordou mais do que proporcialmente face ao empobrecimento colectivo das futuras gerações, isto é, os sindicalistas da banca e dos seguros que aproveitaram os meandros da pós-revolução, ou os capitães feitos coronéis pançudos, que Fernando Nogueira tirou dos quartéis. Numerologia por numerologia, prefiro, mais uma vez, reconhecer que Cristo também não percebia nada de finanças, ao contrário de António de Oliveira Salazar que, depois de endireitar as contas públicas com o gesso da austeridade, nos obrigou andar de perna entalada já depois da mesma estar curada, numa quarentena forçada que também durou quarenta anos. Os orçamentos rectificativos são sempre uma trapalhada a que outros chamam embuste.

Jun 24

O que é comum não é de nenhum…

Depois de longas polémicas filosóficas quanto à distinção entre a social-democracia e o socialismo democrático, verificámos, hoje, em pleno parlamento, que aconteceu nova fábula do ovo de Colombo.  Quando sociais-democratas e socialistas querem vestir-se de liberais, todos deitam pela porta fora o que vão deixando entrar pela janela, porque o método dito da modernização sempre foi o de não perceberem que há uma linha recta ascensional de concentração do poder que, arrancando com o salazarismo, passou pelo gonçalvismo, pelo soarismo e pelo cavaquismo. Com efeito, se variaram os conteúdos do Estado Novo, da Revolução e da Pós-revolução, manteve-se o mesmo continente e a forma acabou por condicionar a matéria, dado que o método continua a controlar os fins. Nenhum deles ainda percebeu que o Estado a que chegámos já não é apenas “um” mas “vários” Estados. O velho Estado, herdado do Estado Novo, já não há, porque a maioria dos factores de poder já não são controláveis pela governação de forma hierárquica e nem sequer são nacionais. O Estado que importa instaurar deve ser uma espécie de não-Estado, isto é, ser uma forte estrutura de controlo do cérebro social que actue como núcleo de uma estrutura de rede multidimensional, que tanto penetre na chamada sociedade civil como navegue flexivelmente por entre as ondas e marés da União Europeia e da globalização. Porque, mesmo sem haver constituição europeia, já há um Estado europeu informal, tal como há um ainda mais nebuloso Estado mundial, ao mesmo tempo que, no plano clássico, intra-nacional, emergiram corporativismos, regionalismos e localismos, num jogo de poderes e contrapoderes. Por mais leis que façam para a redução do tamanho do monstro, por mais ministros da reforma e da modernização do Estado a que dêem posse, por mais constitucionalistas que mobilizem, a maior parte dos adeptos do Estado velho e das respectivas ideologias caducas ainda não compreenderam que importa alterar o corpo do mesmo, queimando as gorduras, calcificando os ossos, agilizando os membros, mas aumentando a intensidade da cabeça, a velocidade dos nervos e a intuição dos afectos. É por isso que, como liberal, quero mais e melhor Estado em certas zonas de defesa da independência nacional, de garantia das liberdades e de realização da justiça, mas sem que isso aumente os aparelhos do monstro. Ninguém reforma o Estado invocando a loucura neoliberal de liquidação do Estado Social ou clamando por mais prestações sociais, mas mantendo políticas públicas que nos têm conduzido ao défice, nomeadamente as da educação e da saúde. E quem continuar a brincar ao nominalismo das privatizações e estadualizações, nunca compreenderá que a reforma necessária passa por fazermos curtos-circuitos comunitaristas, de não fazer passar a justiça social e a justiça distributiva pelo vértice do erário público, gerido pelos ministros das finanças, mas através de contribuições e prestações geradas no infra-estadual e no supra-estadual. A melhor forma de hoje liberalizarmos é comunitarizarmos, isto é, regressarmos ao lema das nossas aldeias destruídas, segundo o qual “o que é comum não é de nenhum”, mas porque é de todos.

Jun 23

Porque o mal não está apenas na floresta, mas em cada uma das árvores que a integram

Almossardinhei numa dessas tascas de peixe fresco da Lisboa ribeirinha, com dois companheiros de geração, dando as tradicionais bicadas de quem, não sendo vencido da vida, começa a ter a maturidade dos que só sabem que nada sabem e vão arranhando na procura do tempo perdido. Reparámos como, na universidade, tudo continua entre jubilados e pré-jubilados, nesses bailados em torno do que já não há, e todos subscrevemos o nosso desejo de exílio, interno, externo ou do que vier, para não termos que pactuar com o desvario do oportunismo. Embora nenhum de nós seja, tenha sido ou tenha vontade de ser PS, quase todos reconhecemos que esta governação, com todos os seus erros, é a última oportunidade que tem este regime, para se libertar de um sistema decadente que só não anda à procura de Gomes da Costa e de Oliveira Salazar porque, hoje, tanto é tecnicamente impossível um golpe de Estado, como já não hipóteses de manipulação da engenharia financeira e da macro-economia. Contaram-se dessas muitas história proibidas das desventuras dos magistrados e dos júris universitários, assim se revelando como, mesmo na zona do que deveriam ser as corporações sustentadoras das pátrias e dos Estados, penetraram os vírus do vazio axiológico e da também falta de boa educação, entre o cristianíssimo e confuciano “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti” e o Kantiano “actua de tal maneira que a máxima da tua conduta se transforme em lei universal”, coisas que o meu falecido pai traduzia de forma rural quando me mandava ser homem de cabeça levantada e espinha não torcida. Porque o mal não está apenas na floresta, mas em cada uma das árvores que a integram, pelo que as reformas apenas podem ser consolidadas se forem sustentadas por pessoas livres e responsáveis. Por estas e por outras é que pesquisei o significado do “humor merancórico” e espreitei uma análise da obra de L. Lemnio, Della complessione del corpo humano Libri III, da quali a ciascuno sará agevole di conoscere perfettamente la qualitá del corpo suo, e i movimenti dell’animo e il modo di conservarli del tutto sani, , Venezia, Domenico Niccolino, 1561, 2ed., 1564, onde, citando Galeno, para uso dos jesuítas, se afirma que enquanto os indivíduos de temperamento sanguíneo são inconstantes e volúveis e por conseguintes pouco aptos para a vida religiosa, a perseverança e a diligência do animo procedem do humor bilioso sendo que este humor determina a velocidade, o ímpeto e a inquietação, bem como a fluência do discurso. A constância e a firmeza são consequências do humor melancólico combinado com um moderado calor. O indivíduo fleumático não é apto para obras de entendimento e memória e para os estudos, pois o calor que estimula o engenho neste temperamento é inibido ou diminuído pela presença da qualidade húmida. A partir deste referencial, pode-se explicar o porque os temperamentos definidos como colérico-melancólico, ou colérico-sanguíneo, ou simplesmente colérico sejam maiormente aptos para a atividade missionária, pois dotados daquele ímpeto, capacidade de comunicação, e inteligência necessários para empreender acções num campo social e natural difícil e novo. Da mesma forma, os indivíduos fleumáticos são destinados, na organização da Companhia, aos ofícios domésticos; os melancólicos, em pequena quantidade, trabalham nos colégios como professores e desenvolvem actividades intelectuais. Quem quiser que enfie a carapuça do Quixote! Eu sou do partido de Sancho Pança…. Face a algumas discrepâncias interpretativas sobre a metáfora de Quixote e Pança, hei por bem fazer um “acertamento”, informando que, apesar de tentar seguir ao lado do primeiro, na suas farpas contra e além dos moinhos, em noite sem vento, prefiro a fiabilidade da embraiagem do meu jumento, mesmo sem ar condicionado. Mais informo que não farei abdominais, não sonho com Dulcineias e, apesar da promessa de “jobs” numa ilha com lugar, perdi o cartão de “boy” e tenho o dever de revoltar-me como funcionário público. A felicidade é uma utopia, mas ter momentos de felicidade pode ser todos os dias.

 

Jun 23

o poder só muda quando o mesmo começar a temer o poder dos sem poder

Somos obrigados a reconhecer que o poder só muda quando o mesmo começar a temer o poder dos sem poder e efectivamente se democratizar. Não para substituir o rei absoluto pelo povo absoluto. Não para dizer que manda o povo em democracia. Que mandam poucos em aristocracia. Ou que manda um só em monarquia. Mas antes para dizermos que, nesta democracia, o dever-ser não é responder ao quem manda, mas ao como se controla o poder de quem manda. E aqui é que o 25 de Abril ainda não se libertou do 28 de Maio. Tal como este nunca saiu do 5 de Outubro. Tal como todos eles não escaparam dos tentáculos leviatânicos, onde o Estado, enquanto alma artificial, sempre disse que era lei o que o príncipe dizia e que o príncipe não estava sujeito à própria lei que fazia. Só há Estado de Direito, isto é anti-Estado, enquanto “l’État c’est moi”, quando: -as polícias deixarem de receber cunhas  para safarem os políticos e os amigos dos políticos das multazinhas; -as polícias investigarem mesmo tudo quanto merece ser investigado; -as polícias não brincarem a manifestações anedóticas, ideológicas ou insultuosas para as crenças dos outros. Há dias de azul e dias de negro. Podem seguir-se dias de viver como pensamos, sem pensarmos muito como os vivemos. Quando pudermos cumprir o que prometemos. Quando voltar a moral, enquanto ciência dos actos do homem como indivíduo livre. Quando voltar a casa bem arrumada, vivendo com aquilo que temos e estando conscientes da circunstância de problemas económicos, como o défice ou a evasão fiscal, só poderem ser resolvidos com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque só depois da casa, “oikos” em grego, com a sua “oikos-nomos”, ou ciência dos actos do homem enquanto membro da casa, a que damos o nome de economia, só depois da casa é que saímos para a praça pública e fazemos política, que é coisa dos cidadãos, da ciência dos actos do homem enquanto membro da “polis”, da “civitas”, da “respublica” ou do “Estado”. Quando a política regressa ao nível da casa, os negócios da política voltam ao doméstico e o chefe político tanto passa a “paterfamilias”, como a “dominus” (de “domus”, isto é, casa em latim), isto é a “dono”, ou “oikos despote”, em grego. Quando a política não se distingue da moral, pode até chegar a Inquisição, santa, católica, apostólica, romana ou salazarenta , quando não comunista, sovietista, trotskista, maoísta ou doutro rebanho colectivista, onde o indivíduo se perde como “indiviso”, como ser que nunca se repete e que passa a ser mera consequência do rolo compressor das ideologias, pieguices ou catecismos. Por outras palavras, não há política, sem que antes haja economia, sem que antes haja moral, mas desde que se respeitem absolutamente essas esferas de complexidade crescente. Pôr a economia a fazer moral é tão pouco liberal como misturar política com religião, alhos com bugalhos, ou ter a ilusão totalitária de pensar que pode haver cidadãos sem indivíduos ou sem trabalhadores. Quem não trabalha não come. Quem não paga impostos não deve poder exercer a cidadania. E todos devemos ser contribuintes morais.

Jun 18

Bacalhau à Mouraria, é sempre prato do dia!

Uma centena de manifestantes vai hoje passear-se em Lisboa a partir do Martim Moniz. Dizem querer um Portugal branco e limpo, talvez para propagandearem detergentes. O governo civil autorizou a movimentação. E muito bem. Nada melhor do que os balões esvaziados. A raça pura lusitana, onde se incluem os dez por cento de escravos negros que faziam parte da população de Lisboa no século XVIII, os muitos judeus que viraram cristãos novos, os imensos mouros que não voltaram a Marrocos, bem como outros tantos saloios e restantes viajantes, apenas não repara que os verdadeiros portugueses são mestiços. Nada melhor do que tudo acontecer na velha Mouraria. É o que anota este nacionalista, de origens moçárabes e mestiçagens cristãs-novas que, desde o século XVIII, se arraçou com emigrantes da ilha de Malta, que invadiram Portugal a partir da Golegã. Continuo a ser intolerantemente contra a intolerância. Especialmente quando me assumo como nacionalista.

Jun 15

As ideologias passam, as culturas ficam! Testemunho de um anticomunista assumido

A convite do Manuel Acácio fiz mais um desses comentários de convidado no Forum da TSF e que me valeram adjectivações de fiéis comunistas tão certeiras como de “barbárie” e de “desonestidade intelectual”, quando apenas decidi falar, como simples mortal, de Cunhal, hoje feito santo, herói e mártir, mas que não passa de outro mortal, como os restantes homens comuns que apenas são eternos porque sabem que são finitos. Repetindo o que neste blogue tenho observado, identifiquei-o com o D. Sebastião científico previsto por Guerra Junqueiro e insisti na tese de que ele foi, objectivamente, o melhor aliado de Salazar . Disse que não foi Cunhal que derrubou o “fascismo”, para citar aquilo que me disseram que disse um ex-ministro de Salazar a um jornal de ontem, mas que ainda não confirmei. Ele apenas fez uma pega de cernelha a um golpe militar, tentando transformá-lo numa revolução sovietista. Primeiro, tentou controlar as greves ditas selvagens, isto é, as que não eram promovidas pela respectiva correia de transmissão sindical. Segundo, tentou proibir e diabolizar os chamados contra-revolucionários no 28 de Setembro, ilegalizando partidos de direita. Terceiro, tentou liquidar os capitalistas no 11 de Março, para promover as nacionalizações. Quarto, tentou acabar com o PS, a partir do “caso República”, contrariando os resultados das eleições de 25 de Abril de 1975. Quinto, instrumentalizou as independências africanas em favor dos respectivos aliados soviéticos, não prevendo dezenas de anos de guerras civis em Angola e Moçambique, com os consequentes milhares de mortos. Sexto, admitiu o latrocínio da chamada reforma agrária, mas com ocupações apenas depois da queda do governo de Vasco Gonçalves. Cunhalfoi um paradoxo. Um revolucionário assumido que, por isso mesmo, nunca podia ser humanista. Um comunista, totalitário, que também nunca podia ser pela democracia pluralista, porque comunista sovietista não rima com liberdade real, mas apenas com “amplas liberdades” cheias de prisões políticas, delitos de opinião e “gulags”. É natural que as minhas opiniões não tenham gerado indiferenças, mas adesões e ódios, como o lutador Cunhalprovocou. Mas não me apetece ser dessa direita cobarde que adora o inimigo, ou como os ex-comunistas e ex-maoístas, cheios de tendências recalcadas, sempre em dialéctica com Álvaro Cunhal, um português antigo, de raízes fidalgas, que tentou restaurar a ideia de 1385, não de acordo com os factos, mas com a tese que elaborou sobre a matéria, mas que nem por isso o transformaram num misto de Mestre de Aviz, Álvaro Pais e Fernão Lopes. Afinal, perdeu. E como dele disse, ontem, em o “Público”, Francisco Martins Rodrigues, foi “um progressista de vista curtas…toda a sua vida foi passada na busca de um meio-termo, capaz de acalmara indignação dos pobres sem atemorizar as classes médias”. Cunhal, muito paradoxalmente, não passou de um Salazar ao contrário, de um Galvão ao contrário, de um Mário Soares ao contrário. E embora, tenha dificuldade de falar de santos, heróis, mártires e profetas, no dia do respectivo funeral, sempre sou capaz de assinalar as três contradições supremas do artista, do “democrata” e do patriota. Foi o artista contra a ideia de arte pela arte, como polemizou contra José Régio, clamando pelo neo-realismo da arte comprometida. Foi o democrata que não renunciou à ditadura do proletariado nem ao chamado centralismo democrático. E até foi teluricamente patriota, quase miguelista, mas comprometendo-se como agente do sovietismo na guerra fria, em nome de um falso sol da terra. Peço perdão por continuar, coerentemente, mais anticomunista do que anticunha lista. Mas até me redordei de os comunistas, qu dominavam as comissões eleitorais de Norton de Matos, contrariaram o desejo deste ir às urnas, para não legitimarem democraticamente o salazarismo no pós-guerra. Os pormenores da expulsão de Soares do convívio com o velho ministro liberal, republicano e maçon reflectem os dramas do chamado anti-salazarismo lusitano, causados pela emergência activista do estalinista Cunhal. Perdoem-me que até tenha recordado o nome do antigo líder do PCP, Velez Grilo, que esteve na base da revolta de 7 de Setembro de 1975, em Moçambique, ou que lembrasse os maçons “kuribekas” de Luanda que tentaram evitar uma descolonização que continuo a considerar criminosa e sangrenta. De Cunhal, prefiro recordar o artista que permanecerá. Porque, para citar o comunista Joaquim Barradas de Carvalho, as ideologias passam, as culturas ficam. Acrescento até: os comunismos e cunha lismos hão-de esquecer, Portugal vai resistir. E hoje somos mais felizes, porque comunismo já rima com Portugal. E se tiver que agradecer a Cunhal esta evolução, quero aqui elogiar Cunhal.

Jun 14

Esta gente que se passeia, desconfiada da política

Um dia, quando abrimos o jornal, e somos todos especialistas nos meandros mais tecnocráticos da Europa; no outro, analistas dos pormenores mais íntimos da história do PREC; em seguida, discutimos os crimes sexuais de Michael Jackson e podemos dar profundas opiniões sobre o sistema judiciário norte-americano; finalmente, temos que fazer a psicanálise do cunha lismo, até porque mais de metade da classe política lusitana têm relações apaixonadas com o ex-líder do PCP. Uns porque foram comunistas ou maoístas, outros porque deixaram de ser comunista ou passaram para a direita, transformando o antigo anjo vingador do salazarismo em diabo social-fascista. Distante, dentro de mim pensando, vou olhando o tempo que vai passando, vou sentindo esta gente de meu povo, desde sempre alheada dos grandes processos de decisão, sobre a pátria, sobre a Europa e sobre a própria comunidade local. Sinto como o processo dominante da mega-democracia representativa e opinativa, privilegiando a eficácia aparelhística, acaba por desviar o homem comum da própria cidadania. Quem tinha dúvidas sobre como o comunismo é um sucedâneo da religião, pode agora concluir como se encerrou um certo ciclo de lembranças sobre o século XX, desencadeado pela morte de João Paulo II. Como se em Portugal ainda fossem possíveis, no plano meramente técnico, os golpes de Estado, ou como se tivéssemos suficiente independência para brincarmos à macro-economia caseira. O país talvez tenha deixado de ser o país-teatro de operações ou o país do escudo e do ministério da finanças. Nestes domínios, a nossa independência passa por gerirmos as nossas dependências ou por prevermos adequadamente as nossas interdependências. E tudo se consegue disfarçar quando não é posta em causa a confiança pública nas grandes lideranças. Só que o desastre do vazio liderante pode suceder se repararmos que quem manda não passa de malta com cara de plástico que apenas tenta moldar-se e moldar-nos, segundo o ritmo desta mediacracia, tele-democrática e quase tele-evangelista, segundo o processo da também plastificada personificação do poder, que ocupou o palco visível do Estado-Espectáculo. Esta gente que se passeia, desconfiada da política, temendo o desastre da economia, começa a dar-se conta que a rua pode tornar-se ameaça, pelo imprevisto de um qualquer arrastão. E que muitos milhões podemos perder com a difusão de uma simples notícias, porque o que não se gastou em segurança e se perdeu na pequena corrupção autárquica dos patos baravos e dos favorzinhos oartidocráticos acaba por explodir em pleno dia. Mesmo que seja o dia de Portugal. Portugal deveria ter uma missão a cumprir, não sendo admissível que os respectivos chefes políticos continuem meras figuras decorativas, mobilizáveis para comícios de politiqueirismo na pátria dos outros. Nisto, Cunhalsempre era mais beirão, teimosamente esteta. E Vasco Gonçalves, talvez mais patriota, em seu silêncio de derrotado.

Jun 13

Cunhal. Comunistas. Neo-realismo

Dois dias depois de Vasco Gonçalves, sobe ao Olimpo dos elogios fúnebres o nome de Álvaro Cunhal, um dos mais coerentes estalinistas do século XX que sempre ousou levar à prática o movimento político-literário do neo-realismo, onde se destacou como pintor e romancista. E será como esteta que o respectivo nome se libertará da lei da morte. Julgo que a grandeza deste político profissional deveria ficar imune aos já indecorosos obituários que, logo à tarde, vão certamente inundar as rádios, as televisões e a imprensa escrita, porque o pretenso pai da república não deveria, um quarto de hora antes de ser elogiado, tentar voltar ao processo de revisionismo histórico estalinista que marcou a respectiva adolescência. Já chega. Seria bem melhor que meditasse sobre a circunstância de, entre as datas das mortes de Gonçalves e Cunhal, se ter comemorado o vigésimo aniversário da adesão de Portugal ao projecto político de construção europeia, no preciso momento em que o mesmo sofre o mais grave desafio que viveu desde 1954. De Cunhal, não posso fazer o sóbrio elogio que dele fez a magnífica pena do respectivo camarada Miguel Urbano Rodrigues, nem guardo, no armazém da memória, as tendências recalcadas dos antigos companheiros, ou adversários da extrema-esquerda, bem como os encantos que suscitou nos inimigos burgueses ou fidalgotes. Prefiro recordá-lo em figura humana, como quando há poucos anos o encontrei nos corredores do hospital Egas Moniz, já bastante doente, com aquele porte altivo de grande estratega de uma guerra ideológica global, onde alinhou com a parte felizmente vencida. Nascido em 10 de Novembro, na minha própria terra, este beirão de fibra aristocrática, conseguiu transformar o comunismo português numa radicada concepção do mundo e da vida, teluricamente neo-realista, marcada pela fidelidade de uma aristocracia camponesa e operária que os próprios adversários têm de reverenciar. Como desse grupo hermético disse Agostinho da Silva, ele acabou por constituir uma verdadeira ordem religioso-militar, obedecendo a um comando unificado que tanto o fez enfileirar no mais estrito sovietismo, considerado “o sol da terra”, quando as nuivens da verdade pós-totalitária já o ensombravam, como, depois, o transformou numa força patriótica, emocionadamente portuguesa. Julgo que esta última fase de vida do PCP, onde o cunha lismo resistente vai do prémio Nobel José Saramago ao aristocrata operário Jerónimo de Sousa, talvez estivesse mais de acordo com a índole do sucessor de Bento Gonçalves, saudoso de uma revolução perdida, à maneira da que sonhou poder ser a de 1385, ou até a de 1640, nada tendo a ver com o internacionalismo estalinista ou brejneviano que teve de servir, nos tempos mecânicos e “KGBistas” da guerra fria. Elevado aos altares laicos pela seita da clandestinidade, Cunhal, no âmbito da nossa hagiografia antifascista, é uma espécie de irmão-inimigo de Mário Soares, onde, para se completar a trindade, importa recordar António de Oliveira Salazar , à imagem e semelhança do qual os dopis outros foram fabricados. Se Cunhalé a faceta aristocrática do anti-salazarismo, Soares reflecte o diletantismo burguês, mas ambos têm o perfil do longo prazo daquele modelo de poder que os produziu. De qualquer maneira, a trindade que marcou Portugal no século XX tentou sempre trabalhar para a história, procurando escrever uma espécie de livro único para educação das gerações futuras. Daí que todas as declarações públicas e escritos dos ditos visem sempre disfarçar a verdade e evitar a espontaneidade dos sentimentos. De qualquer maneira, Salazar , Cunhale Soares representam, todos e cada um deles, um certo perfil de resistência patriótica, demonstrando que a portugalidade se manifestou tanto no catolicismo político do pai-tirano, como no comunismo clandestino e sovietista, ou no paradoxal liberalismo socialista. E nós, filhos que somos deste processo, amando e odiando, mas sem nunca lhes sermos indiferentes, apenas temos de reconhecer que a vida continua em convergência e divergências, para que a emergência da libertação nacional não seja nota de página de uma pátria em vias de extinção. Especialmente nestes finais de primavera, onde acaba também de chegar a notícia da morte do poeta Eugénio de Andrade, pseudónimo literário do funcionário público José Fontinha, inspector administrativo dos Serviços Médico-Sociais desde 1947. Cunhalfaz afinal parte do mistério de Portugal, deste paradoxo de continuarmos povo, depois de tantos séculos de inquisitorialismo, revolucionarismo e guerra civil ideológica, a que não faltaram as aparições de Fátima e os sucedâneos religiosos da Festa do Avante, onde, em vez dos pastorinhos, se fez uso de Catarina Eufémia e dos evangelhos de Lenine. Paz à sua alma!