Defender a ideia de Europa no contexto deste processo pós-referendário implica reconhecer, na senda de Daniel Bell, que o Estado a que chegámos é, ao mesmo tempo, pequeno demais para os grandes problemas da vida e grande demais para os pequenos problemas da vida. Ele é pequeno demais para resolver os grandes problemas do nosso tempo (a economia, a segurança, o ambiente, a tecnologia, a saúde) e, para o efeito, sob o alento da aldeia global, vamos tentando projectar e construir, por todo o lado, grandes espaços. Mas também é grande demais, pelo menos quanto à participação política e à humanização do poder, e muitos vão exigindo desconcentração, desregulamentação, descentralização e regionalização. Implica também assinalar que acabou certa era das ideologias da guerra fria quando se transformaram questões concretas em questões ideológicas, colorindo-as com uma tensão ética e uma linguagem emocional. Porque, aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, marcados tanto pelas tradições do humanismo laico como do humanismo cristão, estamos cansados das artificiais divisões entre a direita e a esquerda e dos consequentes combates entre reaccionários e progressistas ou entre liberais e socialistas, e talvez tenhamos de aceitar que só podemos superar as encruzilhadas da história se admitirmos o essencial da perspectiva da pluralidade de pertenças e da consequente “disjuntion of realms”, da existência de princípios axiais diferentes nos campos da economia, da política e dos valores culturais. Já Emmanuel Mounier, nos anos trinta e quarenta do século XX, se dizia, ao mesmo tempo, radical nos objectivos económico-sociais, reformista nas metodologias políticas e conservador no tocante aos valores. Como recentemente o citado Daniel Bell admitiu uma aproximação ao socialismo nos domínios da economia, mas com uma profissão de fé liberal em política e uma atitude conservadora quanto ao valores culturais. Talvez seja esta pluralidade de pertenças, contrária aos reaccionários preconceitos de esquerda e de direita que nos leve de volta a certa memória liberdadeira e radical, em nome dos princípios, necessariamente reformista no tocante às atitudes políticas e defensora dos grandes princípios do regresso à política. Esse horizonte, onde necessariamente se insere a ideia de Europa que sufragamos. O regresso à política, a retomada da “res publica”, a reinvenção da cidadania, são a única forma de superarmos as actuais doenças dos sistemas políticos, sitiados pela corrupção e pelo clientelismo. As causas que têm gerado as actuais vagas populistas, xenófobas e racistas que ameaçam a Europa. Sintomas que só podem ser removidos se à terapêutica acrescer a profiláctica de uma educação cívica, capaz de retomar uma perspectiva liberdadeira de pessoa, uma perspectiva comunitária de sociedade e uma visão do Estado como um Estado-Razão e um Estado de Justiça. Apenas receio que se trate de manobra de propaganda dos eurocépticos visando o futuro referendo sobre a futura constituição dita europeia. Ou de contra-informação norte-americana, atacando mais um dos excelentes relatórios do mesmo deputado europeu do PPE. Ontem gostei mais de ver a reportagem televisiva sobre o turismo intra-europeu da chamada extrema-direita, que é coisa que gosta de fazer caçadas e normalmente sai caçada. Verifiquei que as nossas forças da ordem gostam de ver televisão e que, como também são caçadores, caçaram imediatamente quem disse que ia para a rua pôr a ordem nova. O político que tal proclamou, conforme dizem os jornais, é profissionalmente aquilo a que chamam “segurança”. Julgo que, de acordo com a legalidade, se ainda houvesse PIDE ou DGS, bem como regras do tempo da Constituição de 1933, as forças da ordem velha teriam que fazer o mesmo do que fizeram estas, com a mesma exemplar diligência com que, além de caçarem estas caricaturas, irão amanhã caçar os defensores da violência pintada de esquerda, centro ou direita. Basta recordar que, entre os primeiros detidos da PIDE, fundada em 1945, com alguma inspiração britânica, estavam vários nazis refugiados em Lisboa, como se Salazar se tivesse esquecido que Herr Hitler mandara assassinar na Áustria o seu companheiro de ideias corporativas e beatas, Herr Dolfuss. Quem tiver dúvidas, basta ler os folhetos de defesa dos nazis feitos no imediato pós-guerra por Alfredo Pimenta e ir aos arquivos da polícia política do Estado Novo, à secção permanente que mantinham, na luta contra os adeptos da suástica e similares. Julgo que a RTP começa a sair da casca com este tipo de reportagem sobre o nosso quotidiano, depois da que fez, uma semana antes, com a violência nas escolas. Sugiro que a próxima visita das câmaras passe por umas reuniões de acampamentos trotskistas, para , depois, filmarem conspirações de pedófilos, assaltantes de rua, mafiosos, “hooligans”, aderentes ao terrorismo fundamentalista, etc., a fim de ficarmos a saber como temos necessidade de polícias, tribunais e prisões, desses “aparelhos” movidos a repressão que garantem ao Estado o monopólio legítimo da violência legítima. Do que vi na televisão, a reportagem foi exemplar, não havendo sequer necessidade de um carimbo ideológico nas lentes usadas, pelo tradicional recurso aos teóricos da esquerda revolucionária que ganham a vida como congreganistas do “caça-fascistas”, tal como outros procuram os fantasmas dos que querem enforcar o último padre nas tripas do último papa, e vice-versa.