Ainda sem voltar ao combate diário do blogue, o que implica estar disponível para ver, ouvir e ler em mobilização quotidiana, decidi continuar a publicar pequenas notas que guardava na gaveta. Envio agora partes de um texto inédito de 22 de Novembro de 1993, emitido em conferência quase clandestina num grupo de estudo de gente do PS, o CENOS. Aí reflectia o seguinte: Um conjunto de pessoas da área do socialismo democrático convidaram-se para comunicar algumas reflexões políticas. Bateram à porta de alguém que é tido como uma pessoa da direita, de alguém que faz parte da mitificada tribo da direita. A minha genealogia é simples. Licenciei-me em direito entre 1969 e 1974, entre a crise de Coimbra de 1969, a nossa tradução em calão do Maio 68, e o 25 de Abril de 1974 (nesse dia estava aliás a fazer o exame de Medicina Legal). Durante todo o meu tempo juvenil nunca pertenci à barricada da esquerda antifascista. Andava pelas zonas de fronteira da direita coimbrã e, dentro desta, numa sensibilidade quem não era nem a dos jovens apoiantes do marcelismo, nem as dos que diziam ser da direita nacional-revolucionária. Sentia-me descendente do complexo monárquico e nas eleições de 1969 assumi-me como um dos apoiantes da chamada Comissão Eleitoral Monárquica que tinha na personalidade de Henrique Barrilaro Ruas, um dos principais ideólogos. No crepúsculo do regime tinha um pé nos monárquicos oposicionistas e outro na militância lusotropical. Tinha a ilusão romântica de apoiar o spinolismo e vibrei intensamente com o programa contido em “Portugal e o Futuro”. Vivi, com entusiasmo, os primeiros minutos do 25 de Abril, mas nem sequer saí para a rua no 1º de Maio. Talvez seja um desses marginais de direita, tão marginal que até cheguei a votar na esquerda moderada do PS de Guterres, apesar de tudo, isto é, apesar das pessoas da chamada Plataforma de Esquerda. Confesso que, depois do cavaquismo, fiquei sem saber onde estou. Herdeiro da tradição monárquica, não posso contudo invocar essa fidelidade pelo nominalismo anti-republicano de alguns figurões do “jet-set”, que esquecem a circunstância da monarquia anti-absolutista da profunda tradição portuguesa sempre se ter assumido como a melhor formas republicanas de governo. Marcado intelectualmente pela perspectiva democrata-cristã dos séculos XIX e XX, não posso deixar de seguir as linhas de pensamento de um Jacques Maritain ou de um Emmanuel Mounier e, sobretudo, a grande perspectiva do federalismo europeísta a que me associo. Não me assumo, contudo, como membro da Igreja Católica, dado defender aquela perspectiva laica de fundo estóico, esse profundo humanismo ocidental… Profundamente anti-moderno, não deixo contudo de me seduzir por algumas linhas do conservadorismo neoliberal. Por todas estas razões eis que me aproximo do libertacionismo existencial de alguns autores do misticismo político do nosso tempo, de Agostinho da Silva a Soljenitsine. Estou à direita por tomar o partido da Vendeia contra o terrorismo de Estado dos revolucionários e não tenho de estar à esquerda quando opto pelo federalismo descentralizador, pelo comunalismo, pelo solidarismo, pelo grupalismo, facetas pelas quais as correntes anti-estatistas do proudhonismo fizeram reencontrar o socialismo revolucionário com o tradicionalismo. Estamos dominados por um erro de teoria e o problema é que só certos esotéricos que privaram com determinados mestres é que conseguem articular a genealogia dessa ocupação mental. Com efeito, as sociedades ocidentais continuam marcadas por um gnosticismo positivista ou progressista, onde é obsidiante uma concepção ferroviária da história. Domina o analfabeto funcional e não consegue desenvolver-se uma adequada cultura geral. Qualquer recuperação conservadora tem de ir ao fundo da questão e passa pela crítica das raízes iluministas do progressista, desse modelo de marquês de Pombal. Neste sentido, entusiasma-se ensinar Althusius. A sua perspectiva do Estado como consociação mista ou pública, reunindo consociações privadas e públicas. O Estado como mera consociação pública maior, mera procura de uma república maior, esse encanto que ainda permanece nalgumas facetas da Confederação Helvética e na ideia de soberania divisível partilhada pelos federalistas norte-americanos. Ou seja, a defesa de uma perspectiva pré-absolutista que não foi marcada pela ideologia do soberanismo. Ou de como Althusius tem actualidade, especialmente no tocante à construção política dos grandes espaços, como a União Europeia, susceptível de enquadramento no conceito de consociação pública maior. Isto é, a república tem de misturar o público e o privado, não pode ser o exclusivo daquilo que é público. Poucos entendem por dentro a perspectiva pluralista da ploiarquia. Essa perspectiva do Estado como mero processo de ajustamento dos grupos. Onde um grupo não passa de mera massa de actividade, não sendo susceptível de ser retirado da sociedade onde vive com uma colherada. Porque cada indivíduo faz, ao mesmo tempo, parte de vários grupos e só em termos abstractos podemos destacar um grupo da dinâmica da sociedade. Althusius justifica como podemos ter orgulho em sermos conservadores do que deve ser, cortando radicalmente com os preconceitos que nos vêm do iluminismo, da segunda revolução francesa e do progressismo que se lhe seguiu. Aliás, não é por acaso que a esquerda que resta, como a sinistra italiana, opta, hoje, pelo “petit nom”, de progressista, esse novo nome da utopia esquerdista, depois do fim do comunismo e das ilusões de revolução com que se empanturraram. Faço parte daquele grupo de pessoas que gostaria de subescrever o Projecto da Paz Perpétua de Immanuel Kant e de participar na elaboração de uma lei universal que colocasse a guerra for a do quotidiano dos homens. Mas se tenho os olhos postos nesse céu dos bons princípios de uma paz pelo direito, também tenho os pés presos no chão da realidade dos homens concretos. Embora acredite que talvez não seja utopia a constituição de uma organização universal que consiga institucionalizar uma comunidade internacional, isto é, um estádio semelhante àquele que, no interior das comunidades política, foi atingido com o Estado, ao superar-se a vingança privada e ao desenhar-se uma instância detentora do monopólio da força pública legítima, julgo que só dentro de uma longo prazo, que pode ser de séculos, poderemos banir a guerra. Vivemos um tempo de teocrasia, de mistura de deuses, um tempo em que perdeu sentido aquela ideia de progresso que dava um sentido linear à história do homem, apontando-lhe uma via de sentido único, essa concepção ferroviária da história, como lhe chamou Bertrand de Jouvenel, apontando o caminho para uma espécie de fim da história que podia ser, por exemplo, a realização do chamado processo histórico da era das revoluções que talvez tenha findado em 1989. A metodologia europeísta de Monnet e Schuman não nasceu ex nihilo, mas a partir da forte temperatura espiritual do pós-guerra, traduzindo-se no sentido prático mobilizador numa espécie de movimento de massas de intelectuais. Sem essa ideia, eis que a geração ulterior inverteu os termos do processo e ios meios (politiciestas, economicistas e juridicistas) passaram a preponderar sobre os fins. A Europa deve continuar a ser uma Europa sem limites. Deve ultrapassar o modelo da pequena-Europa. Falta um verdadeiro movimento europeu, marcado pelos militantes daquilo que Milan Kundera qualificou como a nostalgia da Europa. Onde estão afinal os fundamentos espirituais do chamado sonho europeu? O populista eurocéptico tende a acabar militante profissional, tipo cola-cartazes, segura paus de bandeira, comicioso. Uma espécie de padre que não lê o breviário, mas que bota-discurso apelando aos eternos valore escuteiros. É um excelente escuteiro que nunca ninguém convidaria para ministro e em quem nunca ninguém votará para ministro. A partidocracia usurpou o regime e o regime corre agora o risco de confundir-se com o o governamentalismo de maiorias absolutas. A democracia absolutizou-se neste modelo político, onde não interessam as policies nem as pessoas, mas antes as formas de servir o centro do aparelho de poder. O Portugal cavaquista, depois de ser oportunidade perdida, tende a ser um país dividido entre uma sociologia maioritária de apoio ao governo e uma elite de contrapoder. Os dois meios de comunicação são, aliás, os modelos mais representativos de uma oposição de direitas e de uma oposição de esquerda, estando cada um deles mais adequados ao sentir político dos activistas que o partido popular e o partido socialista. No caso da direita, a assimetria é mais escandalosa, porque o populismo ou é muito juventude, tipo liceal porreiraço, ou muito dona de casa aposentada, que gosta da fortuna maquiaveliana, do viril garanhão lusitano e jovem que, em sonhos, vai violando a burguesa de sacristia. No caso do PS, basta recordar que a moderação acabou por rapar-lhe o bigode da indignação esquerdista, com que disfarçava o menino bem comportado da sacristia.