As candidaturas autárquicas que estão em curso, envolvendo dezenas de milhares de portugueses, não podem confundir-se com as redes de canalização dos aparelhos e dos hierarquismos partidários e, muito menos, com os casos mais mediáticos de rebeldia. Não podemos confundir certas árvores com a floresta, nem transformar algumas ressequidas folhas do todo no bode expiatório daquilo que começa a tocar as raias da anarquia mansa e da própria ditadura da incompetência. Ora, neste ambiente decadentista e diletante, poucos têm a coragem de dizer em voz alta o que todos vão comunicando em surdina uns aos outros: que a partidocracia é uma erva daninha que está enredando as boas energias cívicas da militância partidária, dos combates doutrinários e ideológicos e da própria essência da democracia, enquanto real participação dos cidadãos nas efectivas decisões comunitárias. Os presentes líderes partidários, desde o que foi nomeado presidente de uma universidade privada, autarquicamente dependente do favor que lhe fez o autarca que ele agora saneou, a todos os outros, que foram elevados a líderes pela barganha dos caciques autárquicos que agora criticam, não podem aparecer como os bons de uma fita que sempre assentou na inveja igualitária e no jogo dos influentes e patos bravos. Daí que o episódio Fátima Felgueiras deva ser inserido num contexto onde ela não é a tal andorinha que não nos anuncia a primavera, dado que está apenas em causa a ineficiência de um sistema, onde não conseguimos conciliar o Estado de Direito com o Estado-Espectáculo, da mesma maneira como a partidocracia não tem que se identificar com a democracia representativa de base partidária, nem o neo-corporativismo que confundir-se com a autonomia da sociedade civil. Estamos a assistir a uma fragmentação, não da unidade e da autoridade do Estado, mas à simples aplicação de uma lei mal feita, atirando para cima das polícias e dos magistrados uma imagem de mera boca que pronuncia as palavras da mesma, esquecendo-nos que, num verdadeiro Estado de Direito, a lei tem que estar abaixo do direito e o direito tem que estar abaixo da própria justiça. Infelizmente, continuamos a ter que administrar a justiça de acordo com o princípio da velha legalidade dos autoritarismos e dos absolutismos, onde até a tortura podia ser legalmente permitida, não admitindo a existência de leis injustas. Como se a unidade do Estado fosse o mesmo do que unidimensionalidade e autoridade equivalesse à proibição do pluralismo. Nestas ocasiões, julgo ser prudente voltar a estabelecer-se o diálogo directo com o eleitorado, não reduzindo as presentes manifestações do nosso justo direito à indignação a certo conceito burguês e capitaleiro de populismo. Não alinho, portanto, com algumas pretensas indignações de certos “opinion makers” sistémicos que não conseguem captar a circunstância de as manifestações felgueirenses de apoio a Fátima traduzirem a mesma revolta, talvez mal canalizada, que leva à resistência contestatária de magistrados e até de militares de carreira. O facto de ser tecnicamente impossível um golpe de Estado nas presentes condições de tempo e de espaço, não nos deve desleixar. Assumíamos aliás uma postura semelhante a certos interesses que se arrogam em privilégios injustos só porque sabem que já não há condições para um partido como era o comunista poder desenvolver um processo de subversão do Estado. O problema da democracia está na circunstância de começar a não haver povo em sentido político. Aquilo que alguns ministros do Antigo Regime, feitos filósofos televisivos do actual estado mental a que chegámos, qualificam como uma vaga de “república sindical” anunciador da chegada definitiva do “Estado Exíguo”, talvez seja mero aviso a uma navegação política desleixada que, lavando as mãos como Pilatos, não compreende que quando se qualifica Fátima como a nossa “Lady Di” se está apenas a emitir um certificado de crise global da sociedade e do Estado. E não me parece conveniente que se atirem as responsabilidades para cima de um administração da justiça que apenas pode aplicar leis que foram feitas para outras circunstâncias, quando se reduziam as denúncias da corrupção a mera música celestial e se mantinham as inspecções às autarquias como simples papelada que um qualquer secretário de Estado podia arquivar, guardando na gaveta o que devia ser obrigatoriamente remetido ao Ministério Público. O problema talvez não esteja na eleição ou não eleição de Fátima ou nas eventuais deficiências da instrução do processo em que é arguida. Valia mais fazermos meia dúzia de investigações politológicas sérias que inventariassem os reais processos de financiamento partidário, o elenco dos grupos de pressão e de interesse que interferem no modelo autárquico, nomeadamente das empresas de consultadoria e prestação de serviços que globalmente se distribuem pelo terreno, conforme as simpatias partidárias das três centenas de autarquias.