Recordo hoje, conferência que proferi no Porto, em 1991, na Cooperativa Árvore, integrado no ciclo À Descoberta de Nós, promovido e presencialmente comandado por mestre Agostinho da Silva, a que dei o título de “A Europa dos Estados”. Neste começo da década de noventa, para uns, dito de fim da história e, para outros de regresso da política, talvez estejamos a assistir ao início de um efectivo após guerra, já não bipolarizado pelo equilíbrio mecânico das superpotências, estabelecido entre a pax americana e a pax sovietica, segundo os modelos de Yalta e a prática da guerra fria. Esta casa comum europeia, esta Europa das pátrias que vai do Atlântico aos Urales e que já foi res publica christiana, marcada por uma unidade em forma de elipse, que tinha num centro o Papa e, no outro, o Imperador, continua à procura da unidade perdida. Desde a Paz de Vestefália, de 1648, que vários Estados Impérios tentaram assumir a missão federadora desse processo, em nome dos mais variados signos ideológicos. Alguns actuaram isoladamente, como a tricolor França de Napoleão; outros tentaram a concertação de Santas Alianças, desde a de Alexandre Romanov à Santa Aliança Democrática da Paz de Versalhes. Quase todos falharam.A mais consolidada e esperançosa das experiências chama-se, agora, Comunidade Europeia. Começou por ser um simples acordo de paz franco-alemão, com os Tratados de Paris e de Roma, que instituíram a CECA e a CEE, respectivamente. Ousou ir mais além, com os alargamentos para as Ilhas Britânicas, o Mar Egeu e a Hispania, depois de encerrados os ciclos imperiais do white man’s burden.Mas quando essa mesma Europa estava, muito tecnocraticamente, à espera de 1992, eis que aconteceu aquele repto protagonizado por João Paulo II, a semear o Solidariedade, e com Gorbatchov a responder com a perestroika. E a pequena Europa das margens do Reno, assim alargada para além da Mancha e dos Pirinéus, com um poiso em Atenas, de olhos postos no Oriente, e em Copenhaga, às portas do Báltico, foi obrigada a repensar-se. A repensar-se em profundidade e em tempo de paz, sem ruínas nem ódios. A Europa, “la nation des nations”, como a qualificava Montesquieu, talvez seja mais do que a restrita Europa do internacionalismo liberal dos anos vinte, conforme o modelo de unidade política proposto por Aristide Briand, perante a Sociedade das Nações, em 5 de Novembro de 1929. A Europa em corpo inteiro é, de certeza, mais do que o mercado comum sonhado por Jean Monnet em plena era dos managers. A nossa Europa neste Ocidente dos Estados é um sonho partilhado por quase todas as correntes da civilização greco-latina e germânica.Reclamou-a a Maçonaria de Mazzini em 1834, aquela corrente que queria impor à Europa uma unidade absoluta, fundar uma teocracia republicana, um papado republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal. Defendeu-a o internacionalismo comunista de Trotski, quando propunha, também no final dos anos vinte, uns Estados Unidos Soviéticos da Europa. Desejou-a o romantismo fascista de Drieu la Rochelle que, em 1940, advogava ser preciso entrar no federalismo e pôr fim ao nacionalismo integral e ao autonomismo patriótico. Concretizou-a a democracia-cristã e a social-democracia do pós-guerra, de Konrad Adenauer a François Mitterrand, de Alcide de Gasperi a Harold Wilson, ao instalarem esta semente de mercado único e de Europa dos cidadãos em que estamos vivendo. Trata-se, com efeito, de uma Europa que, como dizia Raymond Aron, não tem religião secular, não tem Papa e não tem Imperador, sendo, contudo, dotada de uma ordem que não é imperial nem totalitária, mas que se funda numa mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. É uma Europa dos Estados desiguais, um mitigado neofeudalismo, onde os vários Estados, apesar de conservarem simbolicamente a respectiva independência, reconhecem que há alguns Estados que são mais iguais do que outros e que, por isso, têm direito a um voto de qualidade, directamente proporcional ao número de cidadãos-eleitores e de regiões que cada um possui. Até porque esta Europa dos Estados engloba os mais diversos modelos de organização estadual. Desde os seculares Estados Nações, culturalmente homogéneos, aos Estados Multinacionais; desde os pequenos Grão-Ducados aos grande herdeiros de Império; desde os que ainda conservam fronteiras medievais aos que aspiram, ou lutam, pela unificação. É uma Europa onde vigora o princípio do “quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet”, com o consequente realismo anti-igualitário da prevalência da “major et sanior pars”.Esta Europa a que chegámos, na Comunidade Europeia, constitui uma entidade dinâmica que vive o desafio de uma integração económica, social, cultural e política. De uma integração política que, segundo Ernest B. Haas, consiste num processo pelo qual “os actores políticos de várias organizações nacionais diferentes são personalidades a deslocarem as suas lealdades, expectativas e actividades políticas para um novo centro, cujas instituições possuem ou reclamam jurisdição sobre os Estados nacionais preexistentes”.O resultado final deste processo vai constituir uma nova comunidade política onde as comunidades anteriores são meras parcelas. Uma nova comunidade política que apenas se concretizará quando surgirem efectivos poderes no novo centro e se começarem a transferir interesses e lealdades para a nova organização.Tal consequência escapa, contudo, aos futurólogos, sejam profetas ou pretensos cientistas da prospectiva. Porque o normal nestes processos é haver anormais. Que o digam os projectistas de 1992 que não previram a eleição de João Paulo II nem a perestroika, apesar dos inúmeros especialistas em Igreja do Silêncio e em sovietologia. Resta interrogar-nos, como Agostinho da Silva: “teremos uma República Federativa da Europa, certamente – mas Federativa de quê? Federativa das nações renascentistas e pós-renascentistas? Não vou nada por essa solução. Continuarão os Escoceses sujeitos a Londres, os Flamengos a Bruxelas, os de Valência a Madrid? Vamos perpetuar Luís XI ou Carlos V? Tem de se dar uma volta completa e definir Pátria como a definiram Joana d’Arc em França, pela língua em que se brincou sendo criança, e Nun’Álvares aqui, pela terra que se beija antes de um combate que pode ser o último”.