Fev 09

Conversando com o mestre..

Mestre Agostinho, ao analisar o nosso fim do ciclo do Império já dizia que, pode ser Portugal a morrer como metrópole e a renascer como comunidade livre, já que dominar os outros é a pior forma de prisão que ter se pode. Porque, Portugal, ao contrário do que tantos dizem, não diminuiu, antes se multiplicou, dado que libertando os que mantinha sob o seu domínio, reconhecendo-lhes independência para a vida, renasce em Pátrias. Porque o que Portugal foi tem servido para que Portugal não seja, pois a ilusão portuguesa de império terrestre acabou por ser subvertida pela sorte do capitalismo industrial. Porque Portugal, impelido ainda pelo seu afã de mar e sentindo no mar a verdadeira garantia de independência chega, porém, a África, parasitado pela economia europeia e, já, euro-americana. Acrescentava até que agora Portugal é todo o território de lingua portuguesa. Os brasileiros lhe poderão chamar Brasil e os moçambicanos lhe poderão chamar Moçambique. É uma Pátria estendida a todos os homens, aquilo que Fernando Pessoa julgou ser a sua Pátria: a língua portuguesa. Agora é essa a Pátria de todos nós. Para ele, a ciência e o racional só servem para chegar às fronteiras do irracional, para mais nada. Porque depois de um sujeito estudar toda a física e toda a Matemática que é possível, chega àquilo que considera o fim e vai chocar no mistério. Até porque falta uma realidade mais alta, aquela que nos permite efectivamente fazer do mar, o mar sem fim, aquela que se comporia do que melhor tiveram Ocidente e Oriente, uniria Cristo e Lao-Tseu e nos daria, num eterno sendo e vir a ser, aquele Espírito Santo que á a fusão perfeita do Todo e do seu Nada. Assim educar a nação não é para mim metê-la em molde algum, mas deixar que plenamente viva cada um dos indivíduos que nela existem.  Entre testas de ferro e cabeças de apito Todas as grandes fortunas da nossa pós-revolução devorista se fizeram graças àquela mistura de socialismo de consumo e liberalismo a retalho de uma certa economia mística que tanto socializa os prejuízos como privatiza os lucros, segundo certa lógica merceeira do salve-se quem puder e do faz-de-conta que transformou os centros comerciais em novas catedrais e os balcões da banca hipotecária em pouco discretos confessionários. Daí que, nesta sociedade de casino, se tenha aberto o leilão do país em saldos. Assim reparo que uma das estrelas deste capitalismo lusitano anuncie querer Papar uma das antigas joías da coroa do nosso capitalismo de Estado, enquanto muitas testas de ferro se vão movimentando. Assim se confirma a verdade globalizadora e pouco armilar segundo a qual o capital não tem cor nem pátria, entre a vontade de comer de uma nacional francesa multinacional e a vontade de não ser comida de outra nacional multinacional cá da península, enquanto voltam os velhos vendedores de sucata nuclear, ao mesmo tempo que os defensores acirrados da globalização de há algumas semanas fazem agora o discurso nacionalista de defesa dos centros de decisão capitalista cá das berças. Enquanto isto, as nossas glórias do pedibola, do velho glorioso ao eterno lagarto quase levam nas trombas dos pequeninos, ao mesmo tempo que fogem aos segredos do processo as acusações judiciais, onde um conhecido político é acusado de “capo” de conspiração, por uso da respectiva influência política e um outro fazedor de parangonas aparece como sacristão da movimentação, com palavras de corrupção no subentendido, como se esta apenas pudesse ser provada para relvados e não para partidos, obras públicas e autarquias, apesar de alguns dos protagonistas coincidirem no palco. E, entre testas de ferro e cabeças de apito, resta-nos ir votando, pagando impostos e jogando no euromilhões e no betandwin.

Fev 08

A Europa dos Estados

Recordo hoje, conferência que proferi no Porto, em 1991, na Cooperativa Árvore, integrado no ciclo À Descoberta de Nós, promovido e presencialmente comandado por mestre Agostinho da Silva, a que dei o título de “A Europa dos Estados”. Neste começo da década de noventa, para uns, dito de fim da história e, para outros de regresso da política, talvez estejamos a assistir ao início de um efectivo após guerra, já não bipolarizado pelo equilíbrio mecânico das superpotências, estabelecido entre a pax americana e a pax sovietica, segundo os modelos de Yalta e a prática da guerra fria. Esta casa comum europeia, esta Europa das pátrias que vai do Atlântico aos Urales e que já foi res publica christiana, marcada por uma unidade em forma de elipse, que tinha num centro o Papa e, no outro, o Imperador, continua à procura da unidade perdida. Desde a Paz de Vestefália, de 1648, que vários Estados Impérios tentaram assumir a missão federadora desse processo, em nome dos mais variados signos ideológicos. Alguns actuaram isoladamente, como a tricolor França de Napoleão; outros tentaram a concertação de Santas Alianças, desde a de Alexandre Romanov à Santa Aliança Democrática da Paz de Versalhes. Quase todos falharam.A mais consolidada e esperançosa das experiências chama-se, agora, Comunidade Europeia. Começou por ser um simples acordo de paz franco-alemão, com os Tratados de Paris e de Roma, que instituíram a CECA e a CEE, respectivamente. Ousou ir mais além, com os alargamentos para as Ilhas Britânicas, o Mar Egeu e a Hispania, depois de encerrados os ciclos imperiais do white man’s burden.Mas quando essa mesma Europa estava, muito tecnocraticamente, à espera de 1992, eis que aconteceu aquele repto protagonizado por João Paulo II, a semear o Solidariedade, e com Gorbatchov a responder com a perestroika. E a pequena Europa das margens do Reno, assim alargada para além da Mancha e dos Pirinéus, com um poiso em Atenas, de olhos postos no Oriente, e em Copenhaga, às portas do Báltico, foi obrigada a repensar-se. A repensar-se em profundidade e em tempo de paz, sem ruínas nem ódios. A Europa, “la nation des nations”, como a qualificava Montesquieu, talvez seja mais do que a restrita Europa do internacionalismo liberal dos anos vinte, conforme o modelo de unidade política proposto por Aristide Briand, perante a Sociedade das Nações, em 5 de Novembro de 1929. A Europa em corpo inteiro é, de certeza, mais do que o mercado comum sonhado por Jean Monnet em plena era dos managers. A nossa Europa neste Ocidente dos Estados é um sonho partilhado por quase todas as correntes da civilização greco-latina e germânica.Reclamou-a a Maçonaria de Mazzini em 1834, aquela corrente que queria impor à Europa uma unidade absoluta, fundar uma teocracia republicana, um Papado republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal. Defendeu-a o internacionalismo comunista de Trotski, quando propunha, também no final dos anos vinte, uns Estados Unidos Soviéticos da Europa. Desejou-a o romantismo fascista de Drieu la Rochelle que, em 1940, advogava ser preciso entrar no federalismo e pôr fim ao nacionalismo integral e ao autonomismo patriótico. Concretizou-a a democracia-cristã e a social-democracia do pós-guerra, de Konrad Adenauer a François Mitterrand, de Alcide de Gasperi a Harold Wilson, ao instalarem esta semente de mercado único e de Europa dos cidadãos em que estamos vivendo. Trata-se, com efeito, de uma Europa que, como dizia Raymond Aron, não tem religião secular, não tem Papa e não tem Imperador, sendo, contudo, dotada de uma ordem que não é imperial nem totalitária, mas que se funda numa mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. É uma Europa dos Estados desiguais, um mitigado neofeudalismo, onde os vários Estados, apesar de conservarem simbolicamente a respectiva independência, reconhecem que há alguns Estados que são mais iguais do que outros e que, por isso, têm direito a um voto de qualidade, directamente proporcional ao número de cidadãos-eleitores e de regiões que cada um possui. Até porque esta Europa dos Estados engloba os mais diversos modelos de organização estadual. Desde os seculares Estados Nações, culturalmente homogéneos, aos Estados Multinacionais; desde os pequenos Grão-Ducados aos grande herdeiros de Império; desde os que ainda conservam fronteiras medievais aos que aspiram, ou lutam, pela unificação. É uma Europa onde vigora o princípio do “quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet”, com o consequente realismo anti-igualitário da prevalência da “major et sanior pars”.Esta Europa a que chegámos, na Comunidade Europeia, constitui uma entidade dinâmica que vive o desafio de uma integração económica, social, cultural e política. De uma integração política que, segundo Ernest B. Haas, consiste num processo pelo qual “os actores políticos de várias organizações nacionais diferentes são personalidades a deslocarem as suas lealdades, expectativas e actividades políticas para um novo centro, cujas instituições possuem ou reclamam jurisdição sobre os Estados nacionais preexistentes”.O resultado final deste processo vai constituir uma nova comunidade política onde as comunidades anteriores são meras parcelas. Uma nova comunidade política que apenas se concretizará quando surgirem efectivos poderes no novo centro e se começarem a transferir interesses e lealdades para a nova organização.Tal consequência escapa, contudo, aos futurólogos, sejam profetas ou pretensos cientistas da prospectiva. Porque o normal nestes processos é haver anormais. Que o digam os projectistas de 1992 que não previram a eleição de João Paulo II nem a perestroika, apesar dos inúmeros especialistas em Igreja do Silêncio e em sovietologia. Resta interrogar-nos, como Agostinho da Silva: “teremos uma República Federativa da Europa, certamente – mas Federativa de quê? Federativa das nações renascentistas e pós-renascentistas? Não vou nada por essa solução. Continuarão os Escoceses sujeitos a Londres, os Flamengos a Bruxelas, os de Valência a Madrid? Vamos perpetuar Luís XI ou Carlos V? Tem de se dar uma volta completa e definir Pátria como a definiram Joana d’Arc em França, pela língua em que se brincou sendo criança, e Nun’Álvares aqui, pela terra que se beija antes de um combate que pode ser o último”.

Fev 08

Europa dos Estados (1991)

Recordo hoje, conferência que proferi no Porto, em 1991, na Cooperativa Árvore, integrado no ciclo À Descoberta de Nós, promovido e presencialmente comandado por mestre Agostinho da Silva, a que dei o título de “A Europa dos Estados”. Neste começo da década de noventa, para uns, dito de fim da história e, para outros de regresso da política, talvez estejamos a assistir ao início de um efectivo após guerra, já não bipolarizado pelo equilíbrio mecânico das superpotências, estabelecido entre a pax americana e a pax sovietica, segundo os modelos de Yalta e a prática da guerra fria. Esta casa comum europeia, esta Europa das pátrias que vai do Atlântico aos Urales e que já foi res publica christiana, marcada por uma unidade em forma de elipse, que tinha num centro o Papa e, no outro, o Imperador, continua à procura da unidade perdida. Desde a Paz de Vestefália, de 1648, que vários Estados Impérios tentaram assumir a missão federadora desse processo, em nome dos mais variados signos ideológicos. Alguns actuaram isoladamente, como a tricolor França de Napoleão; outros tentaram a concertação de Santas Alianças, desde a de Alexandre Romanov à Santa Aliança Democrática da Paz de Versalhes. Quase todos falharam.A mais consolidada e esperançosa das experiências chama-se, agora, Comunidade Europeia. Começou por ser um simples acordo de paz franco-alemão, com os Tratados de Paris e de Roma, que instituíram a CECA e a CEE, respectivamente. Ousou ir mais além, com os alargamentos para as Ilhas Britânicas, o Mar Egeu e a Hispania, depois de encerrados os ciclos imperiais do white man’s burden.Mas quando essa mesma Europa estava, muito tecnocraticamente, à espera de 1992, eis que aconteceu aquele repto protagonizado por João Paulo II, a semear o Solidariedade, e com Gorbatchov a responder com a perestroika. E a pequena Europa das margens do Reno, assim alargada para além da Mancha e dos Pirinéus, com um poiso em Atenas, de olhos postos no Oriente, e em Copenhaga, às portas do Báltico, foi obrigada a repensar-se. A repensar-se em profundidade e em tempo de paz, sem ruínas nem ódios. A Europa, “la nation des nations”, como a qualificava Montesquieu, talvez seja mais do que a restrita Europa do internacionalismo liberal dos anos vinte, conforme o modelo de unidade política proposto por Aristide Briand, perante a Sociedade das Nações, em 5 de Novembro de 1929. A Europa em corpo inteiro é, de certeza, mais do que o mercado comum sonhado por Jean Monnet em plena era dos managers. A nossa Europa neste Ocidente dos Estados é um sonho partilhado por quase todas as correntes da civilização greco-latina e germânica.Reclamou-a a Maçonaria de Mazzini em 1834, aquela corrente que queria impor à Europa uma unidade absoluta, fundar uma teocracia republicana, um papado republicano, como antes Carlos V e Filipe II sonhavam uma monarquia universal. Defendeu-a o internacionalismo comunista de Trotski, quando propunha, também no final dos anos vinte, uns Estados Unidos Soviéticos da Europa. Desejou-a o romantismo fascista de Drieu la Rochelle que, em 1940, advogava ser preciso entrar no federalismo e pôr fim ao nacionalismo integral e ao autonomismo patriótico. Concretizou-a a democracia-cristã e a social-democracia do pós-guerra, de Konrad Adenauer a François Mitterrand, de Alcide de Gasperi a Harold Wilson, ao instalarem esta semente de mercado único e de Europa dos cidadãos em que estamos vivendo. Trata-se, com efeito, de uma Europa que, como dizia Raymond Aron, não tem religião secular, não tem Papa e não tem Imperador, sendo, contudo, dotada de uma ordem que não é imperial nem totalitária, mas que se funda numa mistura da hegemonia do mais forte e de um consentimento real dos menos fortes. É uma Europa dos Estados desiguais, um mitigado neofeudalismo, onde os vários Estados, apesar de conservarem simbolicamente a respectiva independência, reconhecem que há alguns Estados que são mais iguais do que outros e que, por isso, têm direito a um voto de qualidade, directamente proporcional ao número de cidadãos-eleitores e de regiões que cada um possui. Até porque esta Europa dos Estados engloba os mais diversos modelos de organização estadual. Desde os seculares Estados Nações, culturalmente homogéneos, aos Estados Multinacionais; desde os pequenos Grão-Ducados aos grande herdeiros de Império; desde os que ainda conservam fronteiras medievais aos que aspiram, ou lutam, pela unificação. É uma Europa onde vigora o princípio do “quod omnes tangit, ab omnibus approbari debet”, com o consequente realismo anti-igualitário da prevalência da “major et sanior pars”.Esta Europa a que chegámos, na Comunidade Europeia, constitui uma entidade dinâmica que vive o desafio de uma integração económica, social, cultural e política. De uma integração política que, segundo Ernest B. Haas, consiste num processo pelo qual “os actores políticos de várias organizações nacionais diferentes são personalidades a deslocarem as suas lealdades, expectativas e actividades políticas para um novo centro, cujas instituições possuem ou reclamam jurisdição sobre os Estados nacionais preexistentes”.O resultado final deste processo vai constituir uma nova comunidade política onde as comunidades anteriores são meras parcelas. Uma nova comunidade política que apenas se concretizará quando surgirem efectivos poderes no novo centro e se começarem a transferir interesses e lealdades para a nova organização.Tal consequência escapa, contudo, aos futurólogos, sejam profetas ou pretensos cientistas da prospectiva. Porque o normal nestes processos é haver anormais. Que o digam os projectistas de 1992 que não previram a eleição de João Paulo II nem a perestroika, apesar dos inúmeros especialistas em Igreja do Silêncio e em sovietologia. Resta interrogar-nos, como Agostinho da Silva: “teremos uma República Federativa da Europa, certamente – mas Federativa de quê? Federativa das nações renascentistas e pós-renascentistas? Não vou nada por essa solução. Continuarão os Escoceses sujeitos a Londres, os Flamengos a Bruxelas, os de Valência a Madrid? Vamos perpetuar Luís XI ou Carlos V? Tem de se dar uma volta completa e definir Pátria como a definiram Joana d’Arc em França, pela língua em que se brincou sendo criança, e Nun’Álvares aqui, pela terra que se beija antes de um combate que pode ser o último”.

 

Fev 03

Bartolomeu, ventos da história, golpes do reviralho, Cerejeira e terrorismo pós-abrilista

Serão outros governos conservadores ou de direita de quase todas as metrópoles coloniais europeias que irão promover esses ventos da história da descolonização, quando as superpotências brincavam a guerras por procuração, manipuladoras do anticolonialismo e bem assentes em objectivos pragmáticos neocoloniais.  No entretanto, já depois de Dien Bien Phu, Bandung e Evian é que, em Portugal, outro seria o ciclo, incluindo o mental, dado que Salazar , que não era de direita nem de esquerda, mas do totalismo suprademocrático que não admite partes nem partidos, se deixou enredar numa série de guerras coloniais quando as guerras coloniais dos outros tinham findado, só porque achava inevitável a chegada de uma Terceira Guerra Mundial, onde as nossas bases das lajes africanas poderiam ser bem negociadas com Washington, enquanto revogava à pressa as práticas indigenatas do Acto Colonial que ele instaurara contra a tradição integracionista da monarquia liberal e da república maçónica. Por essa e por outras é que só em Portugal, segundo a historiografia dominante, elevada a doutrina de Estado, guerra colonial rima com direita e descolonização com esquerda, esquecendo-nos até que os impérios coloniais europeus foram criações dos nacionalismos místicos dos finais do século XIX, à semelhança da III República francesa e da nossa república que teve como comissários em África gente como Norton de Matos, Brito Camacho e Álvaro de Castro, com as suas missões civilizadoras laicas, aliadas às missões eclesiásticas.

Fev 02

Purificar a razão e despertar as forças morais…

O Cardeal Ratzinger, supremo mestre da teoria, assumindo a heteronomia de Bento XVI, emitiu a sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, datada de 25 de Janeiro. Li-a, palavra a palavra, como homem de boa vontade, e confirmei como, na linha da doutrina leonina, reafirmada por João Paulo II, nada de novo debaixo deste céu neotomista, defensor do justicialismo e crítico do constantinismo, do providencialismo e da estatolatria. Impressiona, sobretudo, a fluidez de um discurso feito em nome da purificação da razão, da argumentação racional e do despertar das forças morais. As invocações de Aurélio Agostinho, desde a ideia de um corpo político organizado como comunidade de amor, à denúncia da estatolatria são marcantes. Porque a justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política. Um Estado, que não se regesse segundo a justiça, reduzir-se-ia a um grande bando de ladrões, e a justiça é o objectivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada da prevalência do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado. A doutrina social da Igreja discorre a partir da razão e do direito natural, isto é, a partir daquilo que é conforme à natureza de todo o ser humano. E sabe que não é tarefa da Igreja fazer ela própria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formação da consciência na política e ajudar a crescer a percepção das verdadeiras exigências da justiça e, simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situações de interesse pessoal. A Igreja não pode nem deve tomar nas suas próprias mãos a batalha política para realizar a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias também, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justiça trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor – todo o homem – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda.