Hoje vão dois apelos à memória, um mais lusitano e imaginativo, dado que em 1930 começou, neste dia, o julgamento do burlão Alves dos Reis, personalidade que terá iniciado em Portugal o movimento das manipulações monetaristas, mas sem o apoio da lei, do ministério das finanças e do Banco de Portugal, ou a ciência de Cavaco Silva e Miguel Cadilhe, antes do euro, enredando, na teia que fabricou, personalidades de reconhecido mérito, incluindo alguns ilustres catedráticos, que avençou, e que raramente aparecem nos filmes e séries de aventuras que o retrataram. A grande burla, que contribuiu para a implosão do regime da nossa Primeira República, ainda foi detectada e contida antes do 28 de Maio, mas o julgamento acabou por fazer-se já em Ditadura Nacional, com Salazar no Ministério das Finanças, mas mantendo-se o republicano Inocêncio Camacho como governador do Banco de Portugal.
Aliás, certa historiografia dita antifascista militante, costuma ocultar a circunstância de, com o salazarentismo, se terem mantido algumas ilustres personalidades do anterior regime em lugares de aparência tecnocrática, onde também se destaca Alberto Xavier, como próximo colaborador de Salazar, para não falarmos de antigos ministros do regime derrubado, transformados em deputados e embaixadores viracasacas. Um deles, ilustre maçon, até chegou a assessorar o novo regime, dando informações técnicas preciosas para a extinção da maçonaria, numa altura em que os Presidentes da República e da Assembleia Nacional do dito Estado Novo eram também ilustres maçons não extintos. Daí que os salazaristas do presente colaboracionismo adesivo, ou de neo-viracasaquismo, mantenham uma esmerada tradição do nosso oportunismo de viradeiras que, em muitos casos, coincide com a traição, habitual neste “vira o disco e toca o mesmo”.
Só a ditadura do tempo normal da vida humana é que impediu ilustres apoiantes da monarquia liberal, feitos republicanos adesivos e salazarentos viracasacas, de se tornarem abrileiros militantes, mas os filhos e sobrinhos dos ditos aí estão, entre certa corte do sampaísmo e a nova pretensa corte do cavaquismo, assentes numa literatura de memorialismo revisionista de justificação do poder que faz a grande aliança situacionista. A procissão que amanhã entrará em São Bento sempre foi precedida pelas cerimónias de ontem, ocorridas no mesmo palácio.
Por isso, recordo que também hoje, mas no ano de 1917, começou, na Rússia, a chamada Revolução de Fevereiro (Febralskaya Revolyutsiya), no dia 23 Fevereiro do calendário juliano, quando a Rússia estava em guerra contra os Impérios Centrais. Era a mais anarquista das Revoluções e vai desencadear um processo revolucionário que acabará por conduzir ao Estado mais autoritário do mundo, a partir de 24 de Outubro/6 de Novembro. Se os Romanov, um pouco à imagem dos respectivos modelos bizantinos em 1453, discutiam rasputinices, quando os comunistas cercavam a cidade, há que não perder de vista, como salienta Soljenitsine, que se a Rússia se desmantelou, foi devido à fidelidade aos aliados ocidentais, por Nicolau ter teimado em continuar uma guerra absurda, em vez de tomar a decisão de aceitar a paz separadamente, o que permitiria proteger o país.
Já segundo Kohn, a revolução que derrubou o czar foi motivada pela ineficiência e corrupção extremas do regime romanoviano, pelo que a velha ordem na Rússia não sucumbiu aos ataques revolucionários, desmoronou-se e desintegrou-se por sua própria fraqueza, um pouco à imagem e semelhança do que virá a ser a implosão sovietista, em 1989. Porque, nos dois casos, não houve força moral ou espiritual para apoiar os apodrecidos regimes.
Também Carr considera que a mesma foi uma explosão espontânea de uma multidão exasperada pelas privações da guerra e pela manifesta desigualdade na distribuição dos sacrifícios, onde a própria criação de um Soviete de Deputados Operários de Petrogrado foi um acto espontâneo de grupos de trabalhadores sem direcção central.
De forma mais englobante, Kolakowski assinala que a Revolução de Fevereiro se deveu à coincidência de muitos factores: a guerra, as reivindicações camponesas, as recordações de 1905, a conspiração dos liberais, o apoio da Entente e radicalização das massas trabalhadoras.
Aliás, o presidente norte-americano Woodrow Wilson, em discurso de 6 de Abril de 1917, saudava, deste modo, a revolução russa: os que conheciam melhor a Rússia sabiam que ela era, de facto, pelo coração, democrática em todos os seus hábitos de pensamento, nos seus costumes, na sua natural “way of life”. A autocracia que coroava o cume da sua estrutura política longa e terrível não era, de facto, russa de origem, de carácter e de intenção; e agora foi afastada, e um grande e generoso povo russo juntou-se em toda a sua autêntica majestade e força aos que lutam pela liberdade, a justiça e a paz no mundo.