Nestes dois dias em que estou e estarei mobilizado por uma prova de agregação, reparo na agenda das efemérides e noto como ainda ontem, 4 de Abril, me passaram tantas e fundamentais recordações. Porque ontem importaria recordar o nascimento da nossa D. Maria da Glória (1819) que, se tivesse um adequado sistema de apoio materno-infantil poderia ter chegado como rainha de Portugal ao século XX, tal como a Constituição de meio-termo de 1838, do mesmo dia, poderia ter evitado a revolta da Madeira de 1931 ou a fundação da ASDI, em 1979. Aliás, ainda ontem se comemorava tanto a fundação da NATO, que nunca conseguiu ser OTAN, em 1949, como o assassinato de Martin Luther King, que nos obriga a continuar a plantar macieiras.
Já hoje, 5 de Abril, há que marcar o começo da invasão nazi da Jugoslávia, aproveitando para homenagear a gloriosa resistência “chetnik”, que os ocidentais, por razões de Estado, decapitaram, para apoiarem Tito e os comunistas. Por isso, não discursarei sobre o juiz do Supremo feito director da PJ e agora demitido em “status” de demissionário, depois de termos todos visto o jogo de sucessivas fugas de informação para gáudio dos assessores de imprensa do Terreiro do Paço, da Gomes Freire e do Palácio de São Bento, num espectáculo degradante, mas onde tenho que dar razão ao mal amado do Senhor Ministro.
As tais razões de Estado da modernidade, semeadas por um grande pensador político, nascido também na data de hoje, mas em 1588, um tal Thomas Hobbes. Veio à luz cinzenta das brumas britânicas, em Malmesbury, no ano da derrota da Invencível Armada. Era filho de um clérigo que tinha abandonado o lar, depois de ter agredido um colega à porta da igreja, e nasceu antes do tempo, no dia 5 de Abril, quando a mãe andava sobressaltada com as notícias da aproximação da armada de Filipe II às costas britânicas. Uma circunstância que o vai levar, mais tarde, a considerar: o medo e eu somos irmãos gémeos.
Depois de educado por um tio, termina os seus estudos em Oxford. A partir de 1602 tornou-se preceptor da família Cavendish/ Devonshire e é, no exercício destas funções, que conhece Francis Bacon, de quem chega a ser secretário. Graças às suas funções de preceptor, efectuará longas viagens e prolongadas estadias no continente europeu. Está em Paris no ano de 1610, quando é assassinado Henrique IV, e é também aí que, em 1634, frequenta o círculo do Abade Gassendi, por onde também circulava Descartes; em 1636, passa por Florença, onde conhece Galileu.
Entretanto, na Grã-Bretanha, ocorria a primeira revolução que levará ao poder a chamada república dos santos, de Oliver Cromwell, talvez a primeira grande ditadura dos tempos modernos. Thomas Hobbes, que era adepto dos Stuarts e que vivia no exílio parisiense, desde 1640, regressa à pátria, onze anos depois, no ano da promulgação do Navigation Act, quando Cromwell está no seu auge.
É no exílio que Hobbes matura as suas obras sobre política, The Elements of Law, Natural and Political, escritos e difundidos em 1640, mas apenas publicados em 1650; De Cive, publicado em 1642. Ponto de partida para Leviathan, or the Matter, Forme & Power of a Common-Wealth, Ecclesiasticall and Civil, já editado em Londres, no ano de 1651. Finalmente, em 1679, publica Behemot or the Long Parliament .
A ideia básica que transmite é a alegoria do Leviathan, quando a multidão que vivia no estado de natureza em regime de insegurança, onde os homens eram lobos para os homens, criam um deus mortal ou um homem artificial, uma persona ficta que passa a representá-los a todos. No estado de natureza, cada indivíduo posuía direitos ilimitados, cada um tinha tanto direito quanto o respectivo poder, pelo que, ao criarem o Estado delegaram-lhe essa força. Logo, o soberano tem também um direito ilimitado, tem a maior força e é a mais alta autoridade humana. Os indivíduos são átomos e só o soberano, essa ordem artificial que está fora do indivíduo, é capaz de constituir o todo, tendo toda a espécie de poder que lhe pode ser conferido.
No estado de natureza há potentia, a força individual, o poder de facto, no Estado, potestas, uma delegação da força dos indivíduos, de carácter supra-individual. O individualismo possessivo gera assim um totalitarismo racional. O Leviathan tem um corpo, a sociedade civil, e uma alma, o soberano, o que lhe dá movimento, detendo tanto a espada, o símbolo do poder temporal, como o báculo, o símbolo do poder espiritual.
No estado de natureza, onde homo hominis lupum, há bellum omnium contra omnes. Porque todos os homens se odeiam naturalmente uns aos outros. Na república, pelo contrário, instaura-se a segurança, funciona o salus populi essa suprema lex, vencendo-se essa anterior guerra perpétua de cada homem contra outro homem, onde tudo pertence àquele que conservar a força. Um Estado construído pela arte do homem imitando a arte de Deus.
Vence-se assim o estado de natureza, onde a razão é filha da necessidade, onde a medida do direito é a utilidade, onde a própria liberdade é entendida como mera ausência de obstáculos externos, porque domina o medo da morte, o desejo de conservação e a luta pela vida.
O velho Hobbes foi de facto o filósofo da burguesia. Foi ele que inventou a teoria justificadora do pensamento dominante, porque nos veio trazer a tal necessidade de coonciliarmos o estadualismo com o o individualismo, fazendo com que nascessem tanto o Estado Moderno como o capitalismo que são irmãos gémeos, ao contrário do que decretam algumas ideologias vesgas pelo dogmatismo e que ainda andam para aí a proclamar que há esquerdas e direitas ideologicamente puras. Continuo a preferir Aristóteles, São Tomás de Aquino, Rousseau e Kant. Prefiro o optimismo antropológico. Dá mais esperança aos desesperados. E um dia a história deixará de ser escrita pelos vencedores.