Foi em 1961 que, nesta data, foi lançado o primeiro homem no espaço: o russo Yuri Gagarine. Foi há tão pouco tempo que os olhos de um humano, pela primeira vez na história, olharam a Terra inteira, vencendo os limites do horizonte. Já lá vão quarenta e cinco anos e ainda não demos a necessária volta ao mundo. Apesar das independências afro-asiáticas, apesar da Queda do Muro ou apesar da globalização. Hoje ainda é ontem. Basta repararmos na crise do Irão, na guerra do Iraque, na avassaladora vitória de Prodi sobre Berlusconi ou na dupla Villepin/Chirac, com Barroso na presidência da Comissão de Bruxelas e Sócrates a engaiolar num avião cerca de um terço do nosso PIB, todos aterrando na terra do Zédu, para que, ao cheiro da canela, o reino se despovoe, torcendo com medo de quebrar.
Hoje ainda é ontem, porque ontem será sempre amanhã. E recordo, emocionadamente, os desafios das saudades de futuro que tentei comunicar, nomeadamente ao fim da tarde, mesmo por cima da muralha fernandina, em dia de memória do nascer do mestre que elegemos rei, de acordo com os princípios da bela Constituição de 1385. E transcrevo parcela do que ontem comuniquei à assembleia-geral da Real Associação de Lisboa, diante do senhor duque de Bragança, conforme detectei nos capítulos gerais e especiais das Cortes de 1385 que o rei, ao despachar em Conselho, contratualizou.
E assim tive a honra de dizer pela minha voz o que aprendi em João Telo de Magalhães Colaço e Paulo Merêa, mestres que me ajudaram a vencer o esquecimento das teses do partido constitucional velho contra os absolutismos do Império, da Teocracia e da personalização do poder e os seguidistas da constituição-pudim, com os seus monopolizadores do conceito de constitucionalista, alvos ainda hoje dos discursos oficiosos do comemorativismo desta sociedade quase funerária que reduz o passado a trinta anos de armistício constitucional que esquece o fundamento plurissecular das nossas leis fundamentais.
Na base de todo o processo, estava a própria eleição do rei, dado que as Cortes assumem o princípio da origem popular do poder, declarando vaga a coroa, ficando os Reinos de Portugal e do Algarve sem embargo nenhum à nossa disposição e sem rei como sempre acostumaram de haver, pelo que se tornava necessário nomear, escolher, tomar e receber alguma pessoa digna e tal qual cumpria para os ditos reinos reger, governar, defender. O Mestre de Avis consentiu a esta eleição tomando nome, dignidade e honra de Rei e encargo dos ditos regimento e defensão ca para ele os tinha Deus guardados.
Institui-se o princípio do governo pelo conselho por prol e honra dos reinos, ca assi se acostuma de fazer pelos reis de Inglaterra e por esto som louvados em todalas partes do Mundo, indicando-se que na composição do chamado Conselho de El Rei deveriam entrar não só prelados, fidalgos, como também letrados e cidadãos das cidades de Lisboa, Porto, Coimbra e Évora.
Reforça-se o princípio do qot quando se estabelece no capítulo 7º o seguinte: porque é direito que nas cousas que a todos pertencem de que todos sentem carrego sejam a ello chamados, e disto foram os povos destes reinos privados por el-rei vosso irmão, a que Deus perdoe, que nunca os do seu Conselho consentiram que os concelhos fossem chamdos aos grandes feitos que lhes pertenciam, assim em seu casamento como em sua guerra.
Deste modo, se pede a D. João I que convoque sempre Cortes para fazer a guerra ou firmar a paz, cunhar moeda e casar-se. O rei responde concordando com o pedido a respeito da guerra e da paz, nada dizendo sobre a moeda, mas opondo-se à ideia de consentimento para o casamento.
Mais do que isso: os povos pediram que se fizessem cortes gerais anualmente, coisa que mereceu o deferimento real.
Sublinhe-se que então, não só se consolidaram as bases de uma consciência nacional, quando se considerou que os Infantes D. João e D. Dinis se desnaturaram do Reino, como se integrou o processo no âmbito das relações internacionais, quando se dirigiu uma suplicatória ao papa para que absolvesse D. João I da trangressão ao direito canónico, tanto pelo defeito de nascimento como pela dispensa de votos, invocando-se para o efeito um estado de necessidade. O que apenas vem a conseguir-se formalmente por bulas de 1391, já com o rei regendo e bem casado com D. Filipa de Lencastre.
Algo de mais acontece, principalmente com a tentativa de teorização dos intelectuais da Corte de Avis, que deu os seus frutos nos tratados que tiveram como autores formais o rei D. Duarte, principalmente em o Leal Conselheiro, e o Infante D. Pedro, principalmente no Livro da Virtuosa Benfeitoria.
Aliás, esses tratados da Inclita Geração talvez devam considerar-se meros epifenómenos de um esforço teórico colectivo que procurarava nacionalizar tendências importadas, de acordo com uma estratégia global que conseguimos recolher através de vários vestígios. São trabalhos daquela Corte que era uma escola, pelo que pouco interessa que, em vez dos príncipes e infantes, os efectivos escrevedores do texto tenham sido os assessores espirituais dos mesmos, como, com razão, se diz de Frei João Verba quanto à Virtuosa Benfeitoria.
Uma estratégia global do poder político que, de acordo com as divisas dos filhos de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, procura ser fiel àquela honra da cavalaria que impunha uma coerência entre o pensamento e a acção, como é expresso pelo Désir do Infante D. Pedro e pelo Talent de bien faire do Infante D. Henrique.
Veja-se, por exemplo, um Gomes Eanes de Azurara que, na Crónica de D. Duarte, muito à maneira de Duns Scotus e do laicismo, vem dizer que aos homens pareceu necessário ordenarem entre si reis e também pelas conveniências ordenaram que tais dignidades viessem por direita sucessão de pai a filho. Assim se sublinhava uma ideia comum ao tomismo, ao occamismo e ao escotismo, segundo o qual a organização política nasce de um elemento voluntário, o consentimento dos membros da cidade, não sendo suficiente o elemento necessário ou natural.