Faço parte daquele grupo de portugueses que, interrompido o “stress” da vida de todos os dias, costuma utilizar os dias, e as noites, de Verão para voltar ao prazer de redescobrir o tempo. Por isso, neste cantinho saloio, a Oeste do Ocidente, entre as brumas atlânticas e o agreste da terra estremenha, costumo peregrinar pela minha pequena biblioteca de reserva e reabrir livros que, outrora, recolhi em alfarrabistas, especialmente aqueles que pesquiso quando me desloco para fora do Bairro Alto e de Portugal. Com efeito, só em determinados momentos de calma cósmica e de infinito horizonte é que temos tempo para perdermos tempo e ganharmos tempo, viajando pelos meandros de escritos aparentemente inúteis, especialmente daqueles clássicos que alcançaram a eternidade quando decidiram o escrever para si mesmos, na procura do honesto da racionalidade ética, fazendo-nos ainda hoje compreender que estamos intimamente ligados às correntes profundas destes 25 séculos de civilização ocidental. Dei assim comigo a visitar os ensaios de um tal Michel Eyquem, nascido em 1533, oriundo, pelo lado materno, de uns judeus ibéricos, de nome Lopes, que ficou conhecido pelo nome do senhorio de Montaigne, que o pai, comerciante de vinhos de Bordéus, adquiriu a um qualquer fidalgote falido. Este jurista, bem-educado pelo nosso André de Gouveia e que, de vez em quando, até cita um tal D. Jerónimo Osório, reconhecia-se como pertencendo a uma nova espécie, a dos filósofos que se tornam filósofos por acaso e sem premeditação. Só que, em férias, decidi seguir o conselho do mesmo homem do Renascimento antimaquivélico, e peguei em vários livros ao mesmo tempo, evitando que qualquer deles me entediasse, para buscar, nesses vários, algo capaz de me ajudar a compreender melhor o aqui e agora, acreditando que só é novo aquilo que só esqueceu. Daí que também fosse debicando Gilberto Freyre e, por causa do hispanismo deste, logo tratei de retomar textos de Ortega y Gasset e páginas íntimas de Fernando Pessoa, todos assumidamente liberais, mas que nunca subiram ao Olimpo dos instalados no poder, porque sempre se aborreceram com a chateza de endireitas e canhotos, de déspotas e “intelectuários”. Continuando meu despropósito sobre como salvar a esquerda que nos resta, direi que, à excepção das meditações mágicas de Manuel Alegre, a olhar a ilha do Pico, sem mau tempo no canal, as nossas esquerdas dinossáuricas não tardarão a aliar-se àquelas direitas de velas de cera e feijões verdes que agora querem não sei que velha Europa Nova, feita de regressos à soberania, conforme as aprendizagens de Ratzel, que as teorias neomaquiavélicas, disfarçadas com água benta navarrense e “Heritages Foundations”, andam para aí a propalar. Ambas, como dizia o antigo, mas não antiquado, liberal Ortega y Gasset, continuam a ser uma estupidificação típica dos que sofrem de hemiplegia mental e que nos querem binarizar, de forma maniqueísta, conforme a aprendizagem juvenil dos amanhãs que cunha lizam ou Salazar izam. Porque a direita a que chegámos resulta da esquerda que temos, principalmente quando a direita a quem concedem o direito à palavra é a direita que convém à esquerda, onde os que emergem são sempre os que representam as caricaturas do autoritarismo, do capitalismo de faca na liga, com chapéus de coco e almas de corsário, do anti-ecologismo e do colonialismo mais serôdio. Eu que sou liberal, pouco dado aos neoliberais donos da globalização e das fundações e pós-graduações subsidiadas pelo “National Endowment for Democracy”, prefiro dizer que a esquerda e a direita têm, as duas, as mãos sujas com sangue, incluindo, na coisa diabólica, os 21 milhões de assassinados por Hitler, a quem concedo o epíteto de direita, não obstante ele também se assumir como socialista, ou os 11 milhões da China Nacionalista, apesar desta ser apoiada pelo Komintern. Como sou liberal, de cepa burkiana e hayekiana, com pitadas pessoanas, não posso é negar que foi o direitista e conservadoríssimo Churchill o principal bastião da luta da liberdade contra o totalitarismo, quando os comunistas, incluindo os ex-, apoiavam o pacto germano-soviético, e outros mesmos se esqueciam do massacre de Katyn. E nem posso ocultar que valeu a pena a fundação da NATO, contra a opinião de alguns patriarcas de hoje que, nessa altura, andavam perdidos na ilusão estalinista, só porque não ainda não tinham ido a Paris, onde leram os primeiros relatos de “L’Observateur” sobre o GULAG. Eu que sou liberal e que, quase por conclusão, por causa da mentalidade suicida de certa esquerda deste “reino cadaveroso”, tenho que ser, excentricamente, de direita, prefiro dizer, como Montaigne, que quem tem a ilusão de nos comandar intelectualmente, entre a Fundação Mário Soares e a Fundação Oriente, com passagem pelas quintarolas de Bernstein Balsemão, pode obrigar muitos à disciplina e à obediência, mas não à estima e ao afecto, que só reconhecemos a quem o merece. Pode ser que alguns marechais da velha direita prefiram a falsa síntese salazarista-soarista e continuem silenciados sobre este debate entre a esquerda e a direita, só porque pela esquerda e pela direita governamentais foram, e são, teúdos, prebendados, manteúdos e medalhados. Eu que não gosto da “servitude volontaire” dos aduladores de príncipes, nem do falso consenso onde navegam muitos dos nossos “cadáveres adiados que procriam” epitáfios, memórias, discursos que fazem chorar as pedras da calçada e outra literatura de justificação, sempre direi que prefiro os perturbadores do mundo que se angustiam com o futuro e recolhem, à esquerda e à direita, o que, amanhã, perante novas circunstâncias, será das novas esquerdas e das novas direitas. Como Montaigne, sempre direi que “a confusão das ideias humanas fez que os múltiplos costumes e crenças opostos aos meus, mais me instruíssem e contrariassem”. Percebam, pois, os refundadores da esquerda que o dogmatismo não deixa de o ser só porque se pinta de antidogmático e que a Inquisição não deixa de continuar, mesmo quando passa a juntas Pombalistas de reforma de estudos ou à “formiga branca”, essa forma de policiamento político-cultural, herdeira dos el-rei Junots que nos continuam a invadir. Percebam que, em liberdade, as esquerdas serão feitas com o que muitas direitas semearam e vice-versa. Não se fiem nesses que, mal chegaram às delícias do poder, logo “puseram na gaveta” as ideologias que os levaram ao tal lugar de distribuição autoritária de valores. Foi a direita liberal que historicamente eliminou a possibilidade dos genocídios das Vendeias, como foi a esquerda republicana que gerou os mitos racistas do colonialismo. Os campeões do sufrágio universal entre nós não foram os democratistas de Afonso Costa, mas as direitas monárquicas regeneradoras e o sidonismo, tal como o Welfare State foi obra do salazarismo que também institui o sufrágio feminino. Da mesma forma os precursores do ecologismo não foram os verdes comunistas, mas os fundadores do Partido Popular Monárquico. Quem solidificou a democracia da sociedade civil em Portugal foi a Carta Constitucional de 1826, não foi a Carbonária. Quem aboliu a pena de morte e enraizou as liberdades foi o regime dos descendentes do Senhor D. Pedro IV e não os “racha-sindicalistas”. Os que, no fim, voltam ao princípio, querendo apagar o que, pelo meio, praticaram, apenas continuarão a semear a incoerência dos que concluem que, na prática, a teoria é outra. “Esse erro de não saber reconhecer em tempo oportuno o enfraquecimento e a profunda alteração que a idade acarreta às nossas faculdades físicas e morais, e talvez mais ao espírito do que ao corpo, deu por terra com a reputação de quase todos os grandes homens deste mundo” (Montaigne dixit). “O mundo não é senão variedade e dissemelhança”. E “somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais”. Até porque “lamento encontrar em meus compatriotas essa inconsequência que faz com que se deixem tão cegamente influenciar e iludir pela moda do momento, que são capazes de mudar de opinião tantas vezes que ela própria muda…” “As pessoas dotadas de finura observam melhor e com mais cuidado as coisas, mas comentam o que vêem e, a fim de valorizar a sua interpretação e persuadir, não podem deixar de alterar um pouco a verdade… Gostaria que cada qual escrevesse o que sabe e sem ultrapassar os limites de seus conhecimentos” Porque nunca um homem se pode banhar duas vezes nas águas do mesmo rio. A não ser os que não sabem reconhecer que “há tantas maneiras de interpretar, que é difícil, qualquer que seja o assunto, um espírito engenhoso não descobrir o que lhe convenha” (Montaigne, sempre). Dinossauros excelentíssimos… Quando o sistema político lusitano ameaça ficar dependente da restauração de duas democráticas personalizações do poder, onde interessam menos os projectos e mais as memórias e mitos de um passado que já não há, sinto-me confortado por não me assumir como soarista nem como cavaquista e por fazer parte daqueles radicais que não gostam de engolir sapos vivos, detestam meter valores na gaveta e rejeitam as escolhas do mal menor. A democracia pós-revolucionária quando pensa que a regeneração é a procura de um ilusório regresso à falsa pureza primitiva, mesmo que ela se vista de gerontocracia, mais ou menos patriarcal, prefiro a coragem de continuar em minoria e até agradeço a circunstância de assim me poder despedir da direita e da esquerda a que chegámos, se reduzirem a primeira ao cavaquismo e a segunda ao soarismo. Aliás, tenho a certeza que os “eus” de Cavaco e de Soares, postos perante as novas “circunstâncias”, produzirão inevitáveis frustrações e levarão a presente crise decadentista à inevitável degenerescência. Julgo que uma eleição presidencial não devia transformar-se numa disputa historiográfica, entre quem deve ou não receber um maior agradecimento comunitário pelos serviços prestados à pátria. Porque se um já é “pai da república” e o outro um desses tios mais velhos que pretende suceder ao pai, pode ser que este tenha o bom senso de não querer alinhar neste jogo que, caso não seja uma tragédia, sempre pode transformar-se numa espécie de comédia. De Soares, não me aflige a idade, aflige-me a tentativa de rejuvenescimento artificial no plano das ideias que o poderão desviar de uma identidade e de uma coerência exemplares. Louvo-lhe a coragem, a ambição e o sentido cívico e, mesmo como adversário, queria continuar a reverenciá-lo, como o fiz, quando participei no megajantar dos respectivos oitenta anos. Mas apetece recordar que, tal como aconteceu a José Luciano de Castro Corte Real, a Sebastião Magalhães Lima, a Bernardino Machado e a António de Oliveira Salazar , pode haver o problema de não repararem como alguns fazem oitenta anos muitas vezes depois dos oitenta anos e de poucos terem a coragem de lhes dizer a verdade da perda do voluntarismo, encantados que todos ficamos com a experiência senatorial e o encantamento intelectual. Não deixemos que as coisas antigas se tornem antiquadas. Até Cavaco corre o risco de não ter a plenitude do respectivo prazo de validade, não por razões intelectuais ou de sentido cívico, mas antes pela circunstância de ter tido o seu tempo. Ambos tiveram os “mon ami Mitterrand” e o companheirismo dos Kohl, mas este é o tempo dos Bush, dos Putine, dos Blair e de tantos outros de outros sítios que conhecem e meditam nos forçados regressos dos Churchill, nas continuidades dos Adenauer e nas teimosias dos Fraga. Por mim, apenas preferia que o meu tempo desse uma resposta do meu tempo, face às presentes circunstâncias e com outros protagonistas.