Logo à tardinha, encarregaram-me de gastar alguns minutos num discurso sobre os trinta anos de constituição, por ocasião da abertura da exposição organizada pela Assembleia da República, que teve como comissário científico, o Professor Doutor António Reis. Daí percorrer alguns dos meus anteriores escritos para reconhecer que quando uma determinada sociedade se organiza politicamente têm de surgir regras básicas ou estatutos fundamentais, verbalmente formalizados ou não, que regulem o modelo orgânico dessa comunidade política. Isto é, tal como onde está a sociedade está o direito (ubi societas, ibi jus), eis que onde está o político tem de estarum estatuto jurídico do político, tem de existir uma constituição, expressão que, sem esforço, podemos fazer equivaler tanto à politeia de Aristóteles como às antigas leis fundamentais das comunidades políticas pré-modernas. Porque há uma ideia de luta pela Constituição, enquanto luta pela procura de um fundamento para o poder e luta pela fixação de concretos limites para o respectivo exercício, que se perde nas raízes da nossa civilização ocidental e se identifica com a própria liberdade europeia, traduzindo um longo processo deinstitucionalização do poder e de juridificação da política. Por isso, pouco me interessa essa tarefa minúscula e platónica de fabricar Constituições… de que falava Basílio Teles, com a consequente glorificação quase necrológica de constituintes e constitucionalistas, porque é mais importante a criatura do que os eventuais criadores. Porque, nestes trinta anos, a principal homenagem que devemos prestar não é ao texto, mas antes à ideia que o produziu e que comunitariamente o consolidou, neste péssimo regime que, contudo, é o menos péssimo de todos quantos temos experimentado. Interessa, sobretudo, homenagear aquela ideia de Estado de Direito, onde acima da lei está o direito e acima do direito está a justiça. Porque, como recordava Fernando Pessoa, se o Estado está acima do cidadão, o homem está a cima do Estado. Interessa também salientar que, muitas vezes, temos conseguido espremer, uma a uma, as gotas de micro-autoritarismos que ainda nos poluem, esses restos desubsistema de medo que marcam os pós-autoritaritarismos e os pós-totalitarismos, esses atavismos absolutistas que dizem que L’Etat c’est moi e que quod princeps dixit, legis habet vigorem, porqueprinceps a legibus solutus. Infelizmente, mesmo a nível da universidade, continuam muitos segmentos do regime des décrets que, segundo Hannah Arendt, coincide com o governo da burocracia, essa mera administração que aplica decretos, existente nos Estados imperiais, como o czarismo russo e a monarquia austro-húngara, bem como em certos impérios coloniais. Os burocratas destes regimes que administram territórios extensos com populações heterogéneas, pretendem suprimir as autonomias locais e centralizar o poder, mas apenas exercem uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos contemporâneos. É uma espécie de domínio perpétuo do acaso e de governo dos espertos onde o burocrata tem a ilusão da acção permanente e onde, por trás dos decretos, nem sequer há princípios gerais de direito. Não sei se vou ter tempo para clamar o regresso do patriotismo científico, numa centenária escola universitária pública que já serviu quatro regimes e que certo revisionismo histórico e alguma literatura de justificação confundem com uma escola de certo regime, esquecendo-se dos pais-fundadores da monarquia liberal de da primeira república, do inspirador, Luciano Cordeiro, a um dos primeiros graduados, Álvaro de Castro. Porque, no começo deste novo século da escola, não podem continuar apagadas as profundas memórias que nos ligaram aos próprios factores democráticos da formação do Portugal contemporâneo, para parafrasear Jaime Cortesão. Importa recuperarmos fontes históricas adormecidas pelo autoritarismo salazarista, onde está por inventariar o esforço de subversão criadora de um Sarmento Rodrigues, o ministro que, tardiamente, nos tentou fazer regressar ao conceito do universalismo lusíada que havia sido lançado por Paiva Couceiro e Norton de Matos, especialmente na sua ligação a Gilberto Freyre, ou o simbólico papel que aqui teve o nosso docente Agostinho da Silva. Tal como importa assumirmos certos pecados no afastamento de professores como Vitorino Magalhães Godinho ou, mais recentemente, com a recusa de contratação de Luís de Sá. Comemorarmos os trinta anos de constituição tem de ser assumirmos a bela ideia de luta pela Constituição, com verdade e autenticidade, espremendo gota a gota o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n’ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só.