Dez 02

PORQUE HOJE É SÁBADO. HÁ A PERSPECTIVA DO DOMINGO…

Porque hoje é sábado. Ruiu um prédio na minha terra. Na Rua dos Gatos. Encostadinha ao Largo da Portagem. E vieram cães de Albergaria. Cheiraram os escombros. Não detectaram mortos. Hoje é sábado, amanhã é domingoA vida vem em ondas, como o mar. O Papa visitou a Turquia. Correu tudo como deve ser. Até deu para que D. José Policarpo fosse entrevistado peloExpresso em mangas de camisa.

Porque hoje é sábado. Há a perspectiva do domingo. Amanhã é dia do Senhor. Ontem foi dia da Restauração. E anteontem houve jantar dos conjurados em Carcavelos, onde Ricardo Abranches, presidente da Real Associação de Lisboa e membro da Comissão Executiva da Causa Real reconheceu que “há monárquicos a favor do ‘sim’ e monárquicos a favor do ‘não‘”, na questão da IVG.Porque hoje é sábado. Porque, nesse mesmo jantar, o Duque de Bragança fez ironia quando questionou “porque não contratamos um japonês para ministro da Tecnologia e um escocês para ministro das Finanças?“, acrescentando que, se ao povo não é reconhecida competência para se pronunciar em referendos, então o melhor será “mandar vir um senhor para mandar em nós, como sucedeu em mais de metade do tempo da nossa República” – numa alusão aos 48 anos de Estado Novo.

Porque hoje é sábado. Há a perspectiva do domingo. Não fui ao jantar em causa, apesar de convidado. Foram alguns republicanos que gostam de ouvir críticas ao artigo 288º da Constituição, alínea b), e que levou o Duque da Bragança a exagerar, quando proclamou que isto “já não é uma democracia, é uma fraude”. Porque não é por isso que o actual regime é uma fraude. E o uso de “já” constitui um erro, porque a cláusula pétrea sempre existiu desde 1976. Para tanto, continuo, muito manuelinamente a repetir o que proclamei num colóquio organizado por monárquicos em 25 de Novembro de 1989:

Interpretando tal parcela de texto que vincula os portugueses à forma republicana de governo, talvez seja capaz de dizer, com todo o cuidado literal e doutrinário, que foi alguém de formação monárquica que inspirou esse agregado de palavras. Com efeito, julgo não poder haver nenhum doutrinador monárquico, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo os próprios integralistas, que não defenda a monarquia como forma republicana de governo.

Em abono desta afirmação, poderia, aliás, começar por invocar Francisco Suarez e depois passar aos clássicos do tradicionalismo contra-revolucionário e anti-absolutista, dado que todos eles assentaram as suas crenças consensualistas no pacto de associação e na consequente origem popular do poder.

Diria até que, para ser profundamente constitucionalista, teria de começar por reverenciar a matriz de todos os constitucionalismos modernos, que é o muito res publicano constitucionalismo da monarquia britânica, um constitucionalismo que nunca precisou do conceito de Estado nem do conceito de Constituição para ser a matriz de todos os Estados de Direito Democráticos …

Porque hoje é sábado. Há a perspectiva do domingo. Logo, não subscrevo monarquices antidemocráticas nem jacobinices que esquecem o papel de alguns monárquicos na restauração da democracia, como as expressas pelo meu amigo Zé Mateus que, com D. Duarte, foi meu colega no Curso de Defesa Nacional, ou por Vital Moreira. Por mim, morrerei monárquico, sempre favorável à forma republicana de governo, defendendo o modelo do regime misto, com um trono cercado de instituições republicanas, para citar Passos Manuel.

Apenas preferia que o azul e branco mantivesse a armilar, e que a coroa fosse aberta como a da casa de Aviz. Continuo fiel aos exemplos de luta contra o autoritarismo que me foram legados por Paiva Couceiro, Luís de Almeida Braga, Francisco Vieira de Almeida, Francisco Rolão Preto, Gonçalo Ribeiro Teles ou Henrique Barrilaro Ruas. Porque hoje é sábado. Há a perspectiva do domingo. Até vou votar sim no referendo da IVG. Como o fiz da outra vez. Não seguirei os apelos de D. José Policarpo, de D. Duarte de Bragança e de Marques Mendes…

Dez 02

Das virtudes da sociologia ao regresso dos fantasmas teocráticos

A sociologia tem a grande virtude de confirmar cientificamente aquele bom senso do empirismo que deve possuir qualquer homem comum disposto à aventura de viver. Reparo na jornalada de hoje, noto que a maioria dos jornais italianos mostrou-se impressionada pela demonstração de força da direita italiana e do seu líder Silvio Berlusconi, que sábado fez sair à rua perto de um milhão de pessoas contra o governo Prodi. Tudo por causa do orçamento europeu de luta contra o défice. Reparo também que a esamagadora maioria da população portuguesa considera que a Igreja de Roma devia permitir o casamento dos padres, secundando a tese de Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento e que os jovens portugueses saem mais tarde de casa dos pais, adiam o casamento e os filhos e sujeitam-se a empregos precários, revela um estudo sobre o perfil da juventude portuguesa que o Governo apresenta hoje em Braga.  Confirmo que a frase de Mouzinho de Albuquerque sobre a circunstância de este país ser obra de soldados começa a perder sentido. Ela surgiu quando a monarquia liberal enveredava pela nossa última aventura de construção imperial e continuou a ter sentido durante a Grande Guerra, quando a República procurou cumprir o grito dos “heróis do mar” contra a humilhação do Utimatum. Ainda tem sentido quando fazemos discursos de exaltação dos capitães de Abril, por terem derrubado o regime que os generais e tenentes do 28 de Maio de 1926 tinham edificado. Manteve também sentido quando o salazarismo da guerra colonial condecorava no 10 de Junho os que morriam contra os ventos da história, em memória de Chaimite ou de Naulila, mas hoje dizer soldados é dizer voluntários ao serviço da alianças internacionais e de deliberações da ONU, na Bósnia, no Afeganistão, em Timor ou no Líbano, onde os soldados até podem ser da GNR ou polícias como os GOE. Os soldados já não existem para cumprir “Os Lusíadas” em defesa do quadro resistente da pátria ou dos seus domínios e conquistas. Agora, temos de aprender a conjugar as novas realidades do poder global e a conjugar o velho verbo com a verba dos nossos impostos e o esotérico quase tecnocrático dos manuais do novo conceito estratégico de defesa nacional. A sociologia pode transformar a democracia do discurso e Péricles em mera sondajocracia referendária, com os seus meandros organizacionais, onde grupos minoritários podem gerar um resultado assente na mistura de indiferentismo com militância. Porque uma minoria fortemente organizada pode levar a que, numa consulta técnica do abstracto povo, o Estado seja obrigado a manter polícias, tribunais e prisões para a defesa de valores que não são comunitariamente assumidos, porque sempre foram uma questão da ciência dos actos dos homens como indivíduos, a moral, e não uma questão dos actos do homem enquanto membro do Estado, enquanto cidadão. Quando digo que, como cidadão, direi sim à questão da IVG, nada digo da minha posição como homem, na minha solidão diante do cosmos. Não quero é que o Código Penal, o polícia, o juiz e o guarda prisional interfiram na minha zona do sagrado individual, onde quero viver como penso sem pensar como vou vivendo. Detesto também que a religião interfira na política, porque sou fiel àquela laicidade que manda pensar apolis como se Deus não existisse, para os que acreditam em Deus se defendam do fundamentalismo teocrático ou dos laicismos fundamentalistas que mandavam enforcar o Papa nas tripas do último padre ou levavam um defunto ministro da justiça e dos cultos a fazer passar pela cadeia do Limoeiro a padralhada, para a sujeitar a medições antropométricas, a fim de cientificamente detectar as eventuais propensões inatas para o crime, segundo as teses de Lombroso.