O presidente Hugo Chávez deve receber hoje poderes especiais para governar a Venezuela por decreto, durante um ano e meio, consagrando a ditadura da maioria e transformando a democracia no absolutismo dos césares de multidões, como dizia Herculano. Não deve ter lido, no seu tempo de formação superior, um tal Karl Popper, para quem o problema fundamental da teoria do Estado é o problema da moderação do poder político da arbitrariedade e do abuso do poder através de instituições pelas quais o poder é distribuído e controlado. Por outras palavras: uma democracia não responde apenas à questão do saber-se quem manda, mas, sobretudo, ao como se controla o poder daqueles que mandam. Também reparo que ninguém dá notícia de outras eleições caseiras numa instituição nacional infra-estatal, dado que, numa federação universitária, onde mais de metade dos votos do colégio eleitoral pertence a uma superpotência, surgiu outra maioria absoluta, mas que, certamente, deve seguir Popper e garantir o direito à indignação dos indivíduos, bem como o respeito das minorias face a decretos habilitantes. Por mim, prefiro o beneditino esforço do quotidiano trabalho de investigação que também diariamente publicito aqui neste espaço de liberdade.
Monthly Archives: Janeiro 2007
Conservadores, reaccionários, contra-revolucionários e o 31 de Janeiro de 1891, por um republicano monárquico, sem rei nem república…
Há uma diferença fundamental entre os situacionistas, os que querem conservar o que está, e os que querem conservar o que deve-ser. Há fronteira que separa um conservador de um reaccionário, ou daqueles contra-revolucionários que querem fazer uma revolução em sentido contrário, incluindo a revolução nacional. Assumindo-me como um liberal à antiga, bem camponês, pouco capitaleiro, e invocando o conservadorismo de Burke, que não era tory, ou de Churchill, que rebentou com o totalitarismo de Hitler, lá invoquei que o homem ocidental é essencialmente do contra (Nós, ocidentais, o que primeiramente somos é anti. Depois é que resolvemos o que havemos de ser, Unamuno) e que o mal do nosso perene situacionismo está num sistema educativo que anda sempre a reboque dos sucessivos politicamente correctos e das consequentes modas que passam de moda, não cultivando o modelo proposto por Dewey para a pesquisa da criatividade pessoal. Não tive tempo para dizer que subscrevo o grande pedagogo, para quem os valores são tão instáveis como as formas das nuvens…As coisas que os possuem estão expostas a todos os acasos da existência. Não apenas os chamados valores de facto, os bens imediatamente desejados, como os próprios valores normativos, dado que também estes não podem ter pretensão meta-histórica, pois todo o sistema ético é relativo ao meio em que se formou e tornou funcional. Porque todo o meio é um fim e todo o fim é um meio, dado que o fim alcançado é sempre um meio para outros fins. Porque a utopia normalmente gera o cepticismo e o fanatismo e importa reagir contra a sociedade planeada (planned society) que requer desígnios finais impostos de cima e que, portanto, se baseiam na força, física e psicológica para que nos conformemos a eles. Assim, defende a continuous planning society, que significa libertar a inteligência, mediante a forma mais vasta do intercâmbio comunicativo. Lamentei que, entre os grandes portugueses, a ditadura dos perguntadores nos leve a ter que escolher entre Salazar , um déspota que foi, e Cunhal, um déspota que não deixámos que fosse, dando a imagem da nossa Avenida da Liberdade que, começando, e bem, nos Restauradores, é encimada pela protecção de um déspota (Pombal). Disse que o pior dos maus conservadores em Portugal era o Estado-aparelho de poder, onde passámos do conceito de rei absoluto para o conceito de povo-absoluto, não desenvolvendo aquelas sementes de consensualismo que, na pós-revolução, foram assumidas pelo cartismo que a si mesmo se qualificou como “conservador”. Não disse que deveríamos ter desenvolvido as sementes de 1640 ou das revoluções inglesa e norte-americana, que foram revoluções evitadas, porque nos esquecemos sempre que as revoluções são sempre frustradas na pós-revolução, onde o que se pretendeu abolir com a violência jacobina e deitar fora pela janela acaba por entrar pelo sótão dos fantasmas de direita e dos preconceitos de esquerda. Conservadores do que está não são os portugueses à solta que, quando libertos das teias capitaleiras e castíferas, souberam dar novos mundos ao mundo e geraram esta nossa pátria que é a língua portuguesa de mais de duzentos milhões de homens em abraço armilar. Bem me apetecia ter citado Popper, na necessidade de combate ao totalitarismo e ao historicismo, defendendo, contra a utopia, o gradualismo reformista, o racionalismo crítico, o individualismo metodológico e aquilo que alguns qualificam como utilitarismo negativo, isto é, que os governos não devem ter como objectivo o aumento da felicidade global, mas antes a redução do sofrimento conhecido. Porque a mente não é uma tabula rasa, dado sermos memória biológico-cultural, marcados por problemas, isto é, por expectativas desiludidas, esses pedaços de memória que se chocam com outras expectativas e com alguns pedaços de realidade. E o que nós pesquisamos é a solução dos problemas, coisa que só poderemos enfrentar pela imaginação criadora de hipóteses e conjecturas, sendo urgente a criação de ideias novas e boas, onde as hipóteses, como tentativas de solução, devem ser provadas. Mas, por mais confirmações que uma teoria possa obter, ela nunca será certa e quanto mais depressa encontrarmos um erro, mais cedo o poderemos eliminar. Porque eu posso ser conservador nos valores essenciais, reformista nas metodologias e revolucionário nos objectivos, bem pouco neolib e nada neocon, para quefora de nós não fique um único deus. Os portugueses que, comandados por um “Conselho Conservador“, que era maçónico e tudo, enfrentaram os invasores napoleónicos, sempre se souberam reinventar pelas mudanças e, ainda recentemente, passámos, em menos de uma geração, do último império colonial europeu para a plena integração europeia. Tal como fomos precursores na revolução liberal, nas abolições da escravatura e da pena de morte ou na “third wave” da democracia, fugindo à vacina com que Kissinger nos antevia como a repetição de Kerensky. Por mim, conservador à maneira de Alexandre Herculano, Fernando Pessoa ou Agostinho da Silva, com eles me irmano a Edmund Burke, a José Ortega y Gasset e a Winston Churchill, em termos de concepção do mundo e da vida. Continuo liberal liberdadeiro, porque, como dizia Raul Proença, o verdadeiro liberal não diz isto é verdade, mas sim que sou levado a pensar que nas circunstâncias actuais este ponto de vista é provavelmente o melhor. Continuo a temer, como o conservador Herculano, todos os prólogos ao cesarismoque querem o homem em molécula e repugna-me ver ohomem apoucado, quase anulado diante da sociedade.
O mesmo aparelho de poder tem capacidade para servir ideologias diferentes sem alterar a sua pirâmide
A opinião dominante, nem por dominar, deixa de ser conjuntural. E a ordem verdadeira não pode estar dependente da flutuação em torno do ideal conjuntural da sociedade. Porque tem de haver um padrão superior à opinião dominante, mesmo que esta seja uma justificável aliança dos mais débeis contra a injusta dominação dos mais fracos. Há uma lei universal do justo e do injusto, um padrão que não serve apenas para aferir da validade do direito estabelecido, posto, positivo, mas algo de mais global, que também seria mais elevado que o ideal mutável da nossa sociedade, dado que há no homem qualquer coisa que não está sujeita à sua sociedade e por conseguinte que somos capazes, e portanto obrigados, a procurar um padrão que nos permita julgar o ideal da nossa sociedade ou de qualquer outra. O padrão que talvez corresponda ao conceito socrático de natureza, a coisa na sua inteireza ou perfeição. Um padrão que até se não identifica com a ideia de ser bom aquilo que é antigo, dado que este tipo de natureza até é sempre mais antigo do que aquilo que foi estabelecido pelos fundadores de uma determinada comunidade, prendendo-se com a própria ordem eterna. Neste sentido, o direito da razão será sempre equivalente à procura do melhor regime, contrariando certa tendência da modernidade, de extracção maquiavélica, que considerando a realização desse melhor regime como altamente improvável, tratou de baixar os níveis e de considerar que o melhor regime poderia ser realizado em qualquer parte.
Perdemo-nos sempre quando apenas ficamos na crosta dos acontecimentos
Batem leve, levemente, como quem chama por mim… Não era a marcha de dez mil pessoas que movimentos cívicos ligados à Igreja, associações de defesa dos idosos e das crianças e grupos de escoteiros de todo o país promoveram ontem em Lisboa, com a fotogenia de Ribeiro e Castro, Bagão Félix e Kátia Guerreiro.
Mas porque continuo de “humor merancórico”, persisto na azáfama daquela verdade sobre o fundo de um erro, onde a dúvida está na frente do método e não atrás, neste reler Bachelard, onde descubro que os grandes homens são úteis para a ciência na primeira metade da sua vida e nocivos na segunda metade.
Gente não é certamente e a chuva não bate assim… Também não eram os lagartos empatados, à espera das declarações que Dias da Cunha vai fazer a Maria José Morgado. Fui ver, a neve caía do azul cinzento do céu… Mas duas mulheres deficientes morriam num incêndio no bairro da Abóbada, no concelho de Cascais e dois adolescentes ficavam carbonizadas num acidente automóvel.
Perdemo-nos sempre quando apenas ficamos na crosta dos acontecimentos dados como adquiridos e não mais problematizados, quando as ideias se valorizam indevidamente e se transformam em factor de inércia para o espírito, mesmo quando surge uma ideia polarizadora e luminosa que nos agita.
Fui ver. A neve caía. O tempo passava. O tempo doía. Marcelo Rebelo de Sousa concluía pela inevitável demissão do executivo camarário dos PSDs de Lisboa. O Gato Fedorento entrava na espiral hermaníaca que outrora já havia sido funcionalmente exercida por Miguel Esteves Cardoso. E o retrato íntimo da pátria era dado pelos que, no silêncio do lar, se iam sentindo cada vez menos representados pelos seus representantes políticos e pelos seus representantes mediáticos.
Não há verdade sem erro rectificado. Reparo que Fernando Pessoa já está preso nas teias das selectas literárias e das casas-museus. Noto que Agostinho da Silva é visto como uma anedota ou um programa humorístico. Confirmo que as teses de António Damásio se transformaram em filosofia de alcova e bar do Cais Sodré. E fico com todos os cabelos em pé quando confirmo que em Portugal há filósofos que entram na moda e correm o risco de ser citados pela senhora deputada Matilde Sousa Franco.
A neve deixou de cair. Duas mulheres morriam pelo calor que não tinham. Marques Mendes fazia discursos. Representantes do PNR eram obrigados a ficar na cauda da manifestação da dita marcha pela vida. Fui ver. A neve caía e o céu não era azul nem cinzento. Continuava triste e amarrotado. Apenas me apeteceu saudar José Miguel Júdice, com quem, três décadas e meia volvida me reencontro, na defesa da mesma causa cívica.
Temo, bachelardianamente, que as boas ideias se percam à vista da costa, porque há muitas matildes e bagões em ambos os lados da barricada, em marchas por não sei quê, em dias de ver cair neve.
(Bachelard na imagem)
Eu, assumido terrorista e violador da constituição, me confesso…
A campanha do referendo, foi ontem declarada inútil, quando um ilustre constitucionalista da universidade concordatária e da universidade pública, mas pouco laico, considerou que a pergunta, como está elaborada, favorece a “liberalização” do aborto, algo que considera ser inconstitucional, até porque se a intenção fosse apenas despenalizar, nem seria necessário ir a referendo, já que nenhuma mulher está presa pela prática do aborto. Outro ilustre, do mesmo grau e qualidade, até acrescentou que “falar em liberalização é quase tão estranho como falar em terrorismo”. Por outras palavras, todos os defensores do “sim” ficaram a saber que, além de violarem a constituição, podem ser indiciados como militantes de organizações terroristas. Aliás, julgo que, na Europa, só Portugal, a Irlanda e a Polónia é que não têm terrorismos destes. Acresce que, ao considerar-se que a “validade” de uma tipificação penal se mede pela “eficácia” de uma certa “vigência”, isto é, pelo número de presos condenados, estamos a considerar que também é boa a lei existente sobre a corrupção, dado que raros são os líderes políticos cimeiros, regionais e autárquicos que estão presos e condenados. O Estado de Direito que se lixe com esta luminosa filosofia positivista do direito. Sugiro que, para superarmos a crise, em vez de um referendo, se siga a técnica oficial de luta contra a evasão fiscal, convocando uma grande manifestação coral de professores de direito, magistrados e directores de prisão, através de uma mega- concertação social ao som de uma qualquer música celestial, tipo “Oh Elvas! Oh Elvas! Badajoz à vista!”. Por mim, de cilício torturante e prestes a ser declarado constitucionalmente terrorista, irei para outra, bem mais nebulosa, lá para os lados de Santa Catarina, olhando a barra do Tejo em bruma, à espera que regressem as manhãs de nevoeiro, para que não continue a subscrever Pessoa, sobre este “nem rei, nem lei, nem paz nem guerra…”. Até porque, continuando o mestre, se houver um referendo entre a chefia republicana de Estado e a chefia monárquica, eu como realista que continuo a ser, terei de optar pela via republicana, mesmo que seja contrária às leis fundamentais do reino a que continuo a ser fiel, embora saiba que são apócrifas as Actas das Cortes de Lamego.
Toda a solidariedade para Pedro Guedes e Ana Gomes!
Portugal precisa, cada vez mais, de gente que goste de viver como pensa, que tenha a coragem de estar em minoria e que assuma causas, mesmo que sejam causas contra as quais eu possa estar. Reparo hoje que uma senhora deputada do Bloco de Esquerda, ao melhor estilo dos moscas do intendente e dos caça-comunas e caça-fascistas, veio atirar para o pelourinho o meu querido Pedro Guedes e o seu blogue belenense, só porque ele se assumiu como seu, e meu, opositor na causa da IVG. Em nome da memória do teu avô, assistente de Abel Salazar, e do sonho sempre presente da tua mãe Fernanda, quero dizer-te, Pedro, que estou contigo, para que possas continuar a defender os teus princípios, mesmo quando eles contrários aos meus.
Outra pessoa que está pelourinho, é a senhora embaixadora Ana Gomes, empenhada que está numa causa onde eu confio mais nela do que no deputado José Luís Arnaut, embora, neste campo, tenha de apoiar o ministro Luís Amado. Julgo que Portugal bem precisa de inconformistas como ela, temendo que, por esta razão, ela seja punida na próxima escolha de candidatos a deputados pelo respectivo directório partidário. Por mim, confesso que devia haver mais pessoas com esta energia, especialmente nas chamadas comissões parlamentares de inquérito.
Curiosamente, estes dois pelourinhados são activistas da blogosfera e quem por aqui navega não precisa de denúncias para saber o que esses dois navegadores pensam e defendem. Por mim, que tenho a honra de ser referenciado e de referenciar os blogues dos dois, apenas desejo que, na grande política, se estabeleça esta vivacidade não censurada do mundo da “internet”. Tanto não admito que o poder estabelecido e as conveniências governamentais e parlamentares atirem para o campo da dissidência a senhora embaixadora, como gostaria que em Portugal pudesse haver uma liberdade de organização de forças políticas equivalente à própria liberdade de expressão.
Se, por exemplo, existirem inequívocos neofascistas, como ele se expressam na blogosfera, eles devem poder constituir-se em organizações políticas expressamente neofascistas, tal como acontece com a coincidência que há entre a liberdade de expressão de pensamento da esquerda revolucionária e a respectiva liberdade de organização. De outra maneira, poderemos correr o risco de ter militantes da extrema-esquerda a organizar processos contra militantes de extrema-direita e a consequente hipocrisia vigente, onde aparecem neofascitas a reclamar-se como a direita autêntica, esquecendo ambos que nenhum adepto de ditaduras, autoritarismos e totalitarismos alguma vez admitiu que houvesse partes ou partidos e, consequentemente, direitas ou esquerdas.
Basta assinalar que nunca um Salazar, um Hitler ou um Estaline se qualificaram como da direita ou da esquerda, admitindo, contra eles, com os mesmos meios, opositores de esquerda ou de direita. Eles sempre disseram que eram o “todo” e nunca admitiram que eram “partidos” ou “parcelas”.
É por isso que me revolto contra estes sinais de intolerância de que estão sendo vítimas Pedro Guedes e Ana Gomes. A actual democracia pluralista tem a vantagem de ter sido gerada no pós guerra por governações dominadas pelos dois principais inimigos do demoliberalismo no século XIX. De um lado, os democratas-cristão, herdeiros de uma militância eclesiástica que, até à “Rerum Novarum” de 1891, era inimiga da democracia. Do outro, os sociais-democratas que, até ao revisionismo de Bernstein, eram incompatíveis com o jogo parlamentar.
Curiosamente, nos finais do século XX, a democracia pluralista transformou antigos marxistas-leninistas sovietistas em pós-comunistas à italiana e à Europa Central e do Leste, bem como antigos neofascistas italianos em ministros da democracia e do europeísmo, tal como, entre nós, antigos cunhalistas, salazaristas, udps e mrpps andam por aí, e muito bem, como ministros, deputados e líderes partidários, convictos e coerentes sacerdotes do Estado de Direito e do pluralismo. E ainda bem…
Breves notas de contrição ao correr da tecla…
Reparei hoje que, na “net”, sou objecto de barrocas qualificações gostosamente críticas, onde alguns me apontam o defeito de “ficar em águas de bacalhau” e de outros, às vezes, os mesmos, me elogiarem como “um liberal à antiga”, embora parcos me qualifiquem de forma mais demonizante, onde não escapo ao tradicional “fascista”, bem como às liberdades literárias dos magnicidas que continuam a pelourinhar este “mindeleiro” como perigoso “miguelista”, para não falar dos que me acusam de ser mais antivida do que os comunistas. Agradeço o não-indiferentismo. Contudo, porque fiquei sem saber o significado da primeira expressão sobre o elemento hídrico dito do que já foi o fiel amigo, carreguei no ciberdúvidas “on line” e acabei por concluir que nem os sábios da língua se entendem, porque uns falam na água com que se demolha o bacalhau, a que não serve para nada, e outros nas águas da Terra Nova, onde os bacalhaus se pescavam e os bacalhoeiros se perdiam. Agradeço a metáfora que ela própria dá em aquíferas bacalhoas. Notei também que certos clericais militantes da velha e da nova direita declaram categoricamente que perderam todas as afinidades que julgavam ter comigo, por causa da posição que sempre assumi, agora e antes, sobre a IVG, enquanto outros, pouco dados a alegorias, me desdenham carinhosamente, como o sujeito das bocas sobre o “quinto império”. Isto é, eu, assumido pescador destas navegações que dão sempre em nada, lá descobri que era permanecente a minha vocação para o nevoeiro e os naufrágios. Mas, olhando para os breves adjectivos de paradoxal coerência, com que procuro definir-me, aqui na coluna da esquerda, e lá em cima, bem no centro excêntrico, no começo deste blogue, julgo não andar longe do caminho que vou caminhando, com o tradicional “humor merancórico” e a compensadora verrina das ferroadas e bicadas com que me indigno. Logo, tenho de prometer que continuarei a navegar, mui salgadamente, à procura do sítio donde vêm as manhãs de bruma, onde a santa liberdade continua a querer subverter as santas alianças, sempre para vir a descobrir se, nesse mais além, consigo mesmo olhar o sol de frente…
Partitocracia, Cancrena dello Stato
Portugal continua a ser marcado pelo conjunto d’os compadres e as comadres que constituem o país legal, como dizia Alexandre Herculano. Com efeito, do país da realidade, vem a constante da indiferença que, vez em quando, explode em revolta populista ou em apoio a césares de multidões, isto é, a experiências de poder pessoal, onde o carismático e o messiânico se aliam. Já no século XVI, por exemplo, quando nos podíamos ter transformado na primeira potência capitalista da Europa, preferimos ceder à mentalidade castelhana, expulsámos os judeus e, ao cheiro da canela, acirrámos um capitalismo de Estado que beneficiou fundamentalmente o negocismo de certos cortesãos. Entretanto perdeu-se o sentido do anterior comunitarismo e a própria lógica de Estado que comandou o processo da expansão. Mais tarde, a revolução liberal, vitoriosa em 1834, preferiu substituir o frade do antigo regime pelo barão devorista. É a época da venda em hasta pública dos bens nacionais e da energência de uma nova classe política que gera uma nova aristocracia social, marcada pelo barão usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário, segundo as palavras do desiludido Garrett. Depois do interregno setembrista, o cabralismo fez acrescentar a este baronato financeiro e fundiário, a nova classe dos burocratas, todo um clientelismo estatizante que vai degenerar naquilo que Oliveira Martins qualificou como o comunismo burocrático: burocracia, riqueza, exército: eis os três pontos de apoio da doutrina; centralização, oligarquia; eis o seu processo. A Regeneração também não passou de mais um capitalismo de Estado que, em vez de instaurar a liberdade económica, cedeu ao proteccionismo e a privilégio. Com efeito, o nosso liberalismo regenerador veio apenas agravar o peso morto da estatização, proibindo a livre associação da sociedade civil, muito especialmente das estruturas sócio-profissionais. O mal baronal é típico de todas as oligarquias patidárias geradas à boleia do poder, mantendo zonas de encomendação ou grupos de amigos, relativamente aos grupos dominantes do situacionismo anterior. Em todas estas situações sempre a mesma tendência neofeudal de alguém económica, social ou politicamente enfraquecido se colocar sob a protecção de uma certa personalidade ou de um determinado grupo, bem colocados que, a troco de fidelidade, lhe vão dar emprego estável, a avença compensatória, a facilidade burocrática ou o acesso a círculos íntimos do poder económico, social ou político. É toda uma teia de aristocracias semiclandestinas em que os nossos regimes se têm enredado que, sem atingir as dimensões dos mafiosos padrinhos ou dos mafiomaçónicos polvos, eleva a tradicional cunha aos requintes da tecno-estrutura. Enquanto isto, a maioria do país da realidade tanto adopta a esperança do sapateiro de Braga (ou há moralidade, ou comem todos) como se torna indiferente, caindo, o primeiro, no engodo sensacionalista e distanciando-se, o segundo, dos reais problemas da coisa pública, dado que apenas é chamado a participar nos banhos de multidão do folclore eleitoral. Não há estados de graça que sempre durem nem pecados que nunca acabem… Apesar das muitas revoluções que nos aconteceram, Portugal político continua a ser Lisboa, onde o resto é paisagem, onde se fazem campanhas eleitorais e para onde se emitem telejornais, apenas com uma pequena cedência à tradicional autonomia do burgo portuense, quando este tenta imitar Lisboa e se assume como a capital do Norte, como se expressa na caricatura da futebolítica, onde algumas lideranças dos dragões, como se chama ao Futebol Clube do Porto, chamam mouros aos da capital e cantam o querer ver Lisboa a arder, num frenesim bairrista que, muitos, confundem com regionalização, quando invocam os paralelismos vocabulares de alguns líderes históricos das ilhas atânticas que, aos continentais, chamam cubanos. Aliás, o bairrismo vem do árabe barri, o mesmo que terra, e, depois, passou a qualificar uma das partes em que se divide uma cidade. Significa parcialidade, tendência para se sobrevalorizarem as características de uma das divisões de um todo político ou administrativo. A política portuguesa persiste em viver no círculo vicioso de um pequeno grupo populacional. Mesmo nestes primeiros anos do milénio, se poderá haver cerca de cem mil formais filiados em partidos políticos, eis que este universo gera apenas pouco mais de cinco mil militantes activos que costumam participar em congressos partidários. Contudo, mesmo estes são devidamente enquadrados por um escasso milhar de dirigentes ou potenciais dirigentes políticos, os quais constituem o núcleo duro da chamada classe política. A política portuguesa persiste assim em ser marcada por este desvio oligárquico da partidocracia, onde predomina a lei do baronato, zona onde se recrutam os deputados, os ministros e todos os que, graças à vitória eleitoral do respectivo partido, podem invocar o esforço militante para passarem a viver à mesa do orçamento, sem necessidade de mais curriculum. Citando Lorenzo Caboara, em Partitocracia Cancrena dello Stato, Roma, Volpe, 1975, podemos dizer que, neste modelo, a soberania já não reside no povo, dado ter passado para as mãos dos partidos políticos que a exercem através dos seus órgãos e das suas administrações próprias. Se o mal não é tipicamente português nem exclusivo do nosso tempo, o facto de alguns nos terem continuado a qualificar como uma jovem democracia, onde existiu, durante cerca de uma década, a maioria absoluta de um só partido, e ainda por cima do partido que há mais tempo estava no governo, tudo isso contribui para agravar o distanciamento do país político face ao país real. O Portugal político, traumatizado pelas memórias contraditórias do autoritarismo e do revolucionarismo, constitui, na verdade, um terreno fértil para o dessangramento da democracia pluralista.
Anomia: ou os governantes que parecem governados, os juízes que se sentem julgados, os professores que temem os discípulos e o diabo feito deus
Dizia ontem, a uma jornalista do “JN”, ao ser interrogado sobre o presente debate sobre a IVG, que a coisa não estava serena, pois “criou-se uma confusão enorme entre a moral e o Direito” com “a interferência da religião na política”, assim se reflectindo “o estado de anomia”. O relato da breve conversa saiu hoje, embora os pouco habituados à terminologia durkheimiana possam ir ao dicionário confirmar que a anomia é essa situação social onde não existem mais leis ou regras ou, se existem, são confusas, contraditórias ou então ineficazes. Logo, se o grupo permanece não há mais qualquer solidariedade entre os indivíduos que perdem os sistemas de apoio e os pontos de referência.
Há uma razão humana que governa todos os povos da terra
Continuo a ouvir, ver e ler perlengas bispais sobre a IVG como pena capital, as quais constituem uma espécie de caricatural fuga ao que deviam ser os tempos de antena da campanha do “sim”. Dou assim razão a Bergson, para quem o homem é um animal que sabe rir, porque não há nada de cómico fora do que é propriamente humano. É que o cómico nasce quando os homens reunidos em grupo voltam a sua atenção para um deles, calando a sua sensibilidade e exercendo só a sua inteligência.
Portanto, sobre a matéria, quase me apetece citar José Ortega y Gasset, o tal espanhol que, desde 1942 até à data da sua morte, sempre se disse “residente em Lisboa” (no nº 10 da Avenida 5 de Outubro, diga-se), para quem quando a paixão invade as multidões, é crime de lesa-pensamento o pensador falar. Porque para falar tem que mentir. E o homem que aparece antes de mais entregue ao exercício intelectual não tem o direito de mentir. Acontece apenas que, de vez em quando, há que seguir outro dito do mesmo mestre: reivindico inteiramente o direito de me manifestar tal como sou. Ingresso na política, mas sem abandonar um átomo da minha substância… Reclamo o pleno direito de se fazer uma política poética, filosófica, cordial e alegre. Outra coisa seria coarctar-me injustamente.
Daí que me apeteça sublinhar que nunca foram os prelados que levaram à abolição da pena de morte em Portugal. Estavam presos demais aos autos de fé e ao caceteirismo do partido do Ramalhão, e não consta que, entre os dogmas, tivessem o princípio de abolição de coisas como a escravatura ou a pena de morte. E não mentirei se sublinhar que tais conquistas se devem a famílias humanistas daquela parcela do Ocidente que, mergulhando nas profundidades do estoicismo greco-romano e nas irmandades medievais, faziam parte daquela corrente que vai de Beccaria a Ortega y Gasset, misturando Locke, Montesquieu e Kant.
Os senhores bispos são ilustres representantes de um legado político-cultural humanista e libertador, mas dele não têm o monopólio. E não convém que atirem pedradas aos telhados e janelas dos outros, porque basta chegarem a casa e achar as suas quebradas. Quem aboliu a pena de morte em Portugal para crimes políticos foi o Acto Adicional à Carta, de 1852, obra da Regeneração e dos ilustres seguidores e companheiros de valores de Alexandre Herculano, o tal eu que se opôs às circunstâncias do então clero. Quem a aboliu na generalidade para todos os crimes foi o acto legislativo de 1 de Julho de 1867, o da fusão liberal, dos companheiros de valores de Vicente Ferrer de Neto Paiva e António Luís de Seabra.
Diremos, a este respeito, que os indivíduos só começaram a ser vistos como sujeitos activos a partir do século XII, com o desenvolvimento da Escola dos Glosadores e com o proto-individualismo franciscano. Só a partir de então é que a teoria e a prática começaram a distinguir-nos do grupo, principalmente quando se iniciou o processo de conquista da primeira das liberdades: o direito à segurança, o direito de cada um à apropriação do seu próprio corpo. Porque até então havia um poder do todo sobre o corpo de cada um, havia o ius vitae necisque, um poder de vida ou de morte, que o paterfamilias havia transmitido ao princeps.
Foi então que começámos a deixar de ser escravos, quando nos passámos a distinguir das coisas. Quando o homem passou a ser mais que um simples ter e, por isso, não pôde continuar a ser um simples tido. Quando o homem passou a exigir um direito penal humanista, onde a definição dos crimes deixou de ser retroactiva, onde o processo proibiu a tortura, onde as penas cruéis foram abolidas e a própria pena de morte começou a ser posta em causa. Quando os homens começaram a ser humanos, pensados à imagem e semelhança de um Deus em figura humana.
Até porque importa recordar, conforme as palavras de Battaglia, que não existe nenhuma grande conquista da humanidade no sentido da liberdade e do progresso, que se não ligue ao nome de um filósofo do direito.
Da extinção da escravatura à abolição da pena de morte, da igualdade de oportunidades entre pessoas de sexo ou etnias diferentes, à aplicabilidade política de um conceito de cidadania activa – com uma igualdade entendida não apenas como igualdade da lei ou perante a lei, mas antes como igualdade pela lei, isto é, como igualdade de oportunidades, como igualdade perspectivada com o sal da liberdade, da justiça e da solidariedade –, é todo um secular processo de luta pelo direito como dever-ser que, muitas vezes, tem de assumir-se contra o direito que está posto na cidade.
Como salienta Metz, a dinâmica essencial da História é a memória do sofrimento, como consciência negativa de liberdade futura e como estimulante para agir, no horizonte desta liberdade, de modo a superar o sofrimento. Uma memória do sofrimento que força a olhar para o “theatrum mundi” não só a partir do ponto de vista dos bem-sucedidos e arrivistas mas também do ponto de vista dos vencidos e das vítimas.
Determinar qual o além do direito tem sido, aliás, constante tarefa dos que pensam o direito. Desse direito, conforme a definição de lei dada por São Tomás de Aquino, como uma ordem elaborada pela razão tendo em vista o bem comum e promulgada por aquele que tem o encargo da comunidade. Dessa lei que, conforme Montesquieu, tem de ser a razão humana enquanto governa todos os povos da terra. Desse direito que se é verdade além dos Pirinéus não pode ser mentira aquém ou além de qualquer barreira geográfica ou mítica
Somos portugueses, pensamo‑nos portugueses, ensimesmando uma história que também foi precoce na consideração do homem como sujeito, no sentido vincadamente existencial de dono do seu próprio corpo, tanto na abolição da escravatura como na abolição da pena de morte.
Por mim, quero retomar o estoicismo romano de Cícero, para quem, das leis, todos somos escravos, para que possamos ser livres (legibus omnes servi sumus, ut liberi esse possimus). Para bons compreendedores, meias palavras bastam. Releiam os trabalhos de Eduardo Correia e Guilherme Braga da Cruz, no centenário da abolição. Ambos sabiam que a nossa tradição humanista sempre juntou o humanismo laico ao humanismo cristão. E não consta que o segundo, consolidado católico tradicionalista, tenha saneado da história o patriotismo iluminista, o patriotismo liberal e o patriotismo republicano. Nem todos os que não seguem a sacristia têm de ser da cavalariça.