Pede-me o meu colega Professor Doutor Carlos Diogo Moreira que deixe um breve testemunho neste ensaio sobre Pátria, Identidade Nação. Saliento que, se a expressão nação começou por significar aqueles que nascem da mesma raiz, já a expressão pátria vem do latim patrius, isto é, terra dos antepassados. Se a primeira tem uma conotação sanguínea e biológica, a segunda tem uma origem claramente telúrica. Isto é, se a expressão nação apela ao nascimento, à raiz de onde se vem, já a expressão pátria invoca mais o passado e, fundamentalmente, os mortos passados.
Neste sentido, Luís de Almeida Braga define-a como terra patrum, a terra dos Avolengos, a nação tal como a criaram e engrandeceram nossos pais antigos. Refira‑se, a este respeito, que os juristas na Idade Média tanto falavam numa patria sua ou patria propria, no sentido de localidade – equivalente àquilo que em castelhano, ainda hoje se diz com a expressão pátria chica -, como numa communis patria, simbolizada na principal cidade de cada monarquia ou na coroa. É neste segundo sentido que, como refere Martim de Albuquerque, que a expressão pátria vai ser divulgada pelos nossos escritores de Quinhentos.
Já também D. Afonso Henriques, num documento de 1132, intitulava‑se portugalensium patrie princeps e em 1158 portugalensium patrie rex. Spranger dizia que a pátria era um sentimento espiritual das origens. Se com a pátria, eis que um povo passa a localizar-se fisicamente, espiritualizando um determinado território, não tarda que se localize historicamente, num espaço já cunhado pelos seus antepassados, num espaço que já foi vivido e experimentado por eles e que está carregado de memórias, e deste modo trata de procurar a nação, entendida como comunidade de gerações.
Já nação vem do latim natio, de nasci, nascer e muitas são as desavenças sobre o respectivo significado, principalmente na sua relação com o Estado. Se, para Lord Acton é mero resultado da acção do Estado, outros enveredam pela mesma perspectiva. Joseph Delos diz que ela se personaliza quando se estatiza. Leonel Franca observa que o Estado é o termo da respectiva evolução histórica. Carl Joachim Friedrich que Estado e nação são irmãos siameses. Maurice Hauriou observa que será ser perfeito se tiver Estado Centralizado.Bertrand de Jouvenel refere que ela foi criação do rei. Jorge Miranda que não passa de uma certa espécie de Estado.
Outros perseguem análises da mais diversa índole. Para Maurice Barrès, é a aceitação do determinismo, da terra e dos mortos. Fichte fala em unidade de língua e de raça. Já Max Weber refere uma comunidade de sentimento, dado que tem a ver com valores de prestígio. O nosso Damião Peres acentua que se trata de um Estado vivificado pelo patriotismo. Jacques Maritain fala que a nação instila uma segunda natureza nas pessoas, porque é uma comunidade de modos típicos de sentimento, um abraço do fervilhar espontâneo das sociedades, misturando o chão físico com o chão moral da história e gerando uma psique comum inconsciente. Na mesma senda, Maurice Duverger que é produto da história objectiva e da imaginada. Karl Deutsch, que se trata de uma comunidade de significações partilhadas, gerada por hábitos complementares de comunicação, geradores de um povo politizado. André Malraux acrescenta a comunidade de sonhos.
Têm todos razão. Mesmo Fernando Pessoa quando assinala que se trata de um conceito místico que visa a coordenação de forças sociais, para se gerar a homogeneidade do carácter nacional, algo com raízes no passado e raízes no futuro, para que se obtenha a sociabilização de forças individuais, nesse mais tronco do que raiz. E não falha Renan quando a qualifica como um plebiscito de todos os dias, uma afirmação perpétua da vida, um produto da história e não da zoologia, da raça.
Não há, de facto, conceito mais equívoco e ideologia mais eficaz nestes dois últimos século, quando se exacerbou a não identificação entre o Estado e a nação e se acelerou o consequente conflito entre essas duas entidades, dado que o conceito de Estado moderno, enquanto Estado racional normativo, não coincide com o projecto de nação, tal como a razão nem sempre se identifica com a emoção, o geral com a diferença, e a civilização entra, por vezes, em contradição com a cultura.
Com efeito, a partir do século XIX, surgiu um jogo múltiplo e contraditório, dado que, em nome do nacionalismo, alguns povos, até então dispersos por vários Estados, buscaram respectiva unificação (casos da Itália e da Alemanha), enquanto outros tentaram independentizar-se de grandes Estados (casos da Grécia e da Bélgica).
A partir de então, surgiram, variados modelos de nacionalismo: — os que, centripetamente, se volveram em supranacionalismos, tentando construir Estados quase imperiais (caso do pangermanismo e do paneslavismo); — os que, de forma expansionista, se transformaram em colonialismos; — os que promoveram a fragmentação centrifugadora de certos Estados, gerando separatismos, regionalismos, anticolonialismos e autodeterminações.
Mas observando a actual realidade internacional, verificaremos, sem grande esforço, que continua a existir essa não coincidência entre o Estado e a nação. Isto é, entre o Estado e a nação persiste uma espécie de paradoxo que tanto passa por separatismos centrífugos como por unificações centrípetas: — porque há povos repartidos por vários Estados (veja-se o caso dos curdos); — porque há povos que procuram constituir-se em Estados (v.g. o caso da nação palestiniana); — porque há povos que pretendem reivindicar o estatuto de minoria nacional institucionalizada dentro de um determinado Estado (v.g os catalães); — porque há Estados que incluem vários povos e nações ( v.g. o Estado espanhol); — porque há Estados que procuram construir nações (v. g. o caso de grande parte dos Estados afro-asiáticos, com fronteiras traçadas na era colonial).
O conflito permanece hoje em dia com inúmeros nacionalismos que em nome de nações pretendem alterar a configuração dos Estados existentes pela desintegração, unificação, expansionismo ou integração. Com efeito, conforme alguma doutrina, sempre diremos que há uma diferença entre a nacionalidade e a nação, onde aquela não passa do grupo que aspira a formar uma nação autónoma, enquanto a nação exigiria nacionalidade mais Estado.
Porque a autodeterminação dos povos nem sempre coincide com a integridade territorial dos Estados (v.g. os romenos que, em nome do Estado defendem a dependência da Transilvânia húngara, já, em nome da etnicidade, reclamam a integração da Moldova). E a este respeito, cumpre assinalar que William Connor, analisando 132 entidades que, em 1971, se qualificavam como Estados, chegou à conclusão que só 12 eram nation-states, sendo todos os outros plurinacionais: 25 tinham 10% de minorias nacionais; outros 25, entre 11% e 25%; 31, entre 26% e 50%; 39, com mais de 50% .
Existem, com efeito, os sinais mais contraditórios nesta relação. Num primeiro grupo, elencaremos nacionalismos que, invocando a existência de nações, integradas em Estados plurinacionais, querem, pela via separatista, desintegrar aqueles e construir novos.
Num segundo grupo, referiremos nacionalismos que, invocando nações dispersas por vários Estados, procuram construir novos Estados. E aqui seremos obrigados a distinguir os nacionalismos que pretendem unificar vários Estados num só Estado, dos que apenas pretendem juntar várias parcelas de Estados num novo Estado, mantendo os anteriores.
Num terceiro grupo, incluiremos os nacionalismos que procuram transformar-se em supranacionalismos (o pan-eslavismo e o panarabismo). Não deixa até de existir o grupo dos nacionalismos sem nação que querem construir nações.
É este o nosso tempo, dito, por certa ideologia, como de fim da história. É este o nosso tempo de encruzilhada, onde predomina a teokrasia ou a mistura de deuses, de deuses e diabos, de anjos e de fantasmas que libertaram, das prisões racionais-normativas, os subversivos génios invisíveis da cidade.
Diremos, a respeito das relações históricas entre o Estado e a nação, que se há nações que foram criadas por Estados, também há nações que criaram Estados. Até poderemos acrescentar, noutra perspectiva, que não faltam Estados que são, ou foram prisões de nações, ao lado de outros Estados que se assumiram como formas de libertação nacional.
Se alguns autores, como Carl J. Friedrich, consideram que a nação e o Estado constituem dois irmãos siameses e outros falam numa identidade entre o Estado e a nação, há também quem estabeleça entre as duas entidades, uma relação de progenitura, dizendo que é o Estado que cria a nação ou o inverso. Se o contra-revolucionário Joseph de Maistre salientava que a nação deve mais ao soberano que o soberano à nação , também Bertrand de Jouvenel dizia que foi o rei e o trono que construiram as nações: tornámo-nos compatriotas como fiéis de uma mesma pessoa, de um rei que acumulou títulos porque, sendo senhor de povos distintos, precisava de assumir relativamente a cada um aspecto que lhe fosse familiar. Assim, ele foi o destruidor da República dos conquistadores e o construtor da nação, transformando elementos dispersos, que apenas constituíam um agregado de uma societas e que, depois, integraram um todo.
De facto, entre os séculos XVI e XVIII, com o Estado Moderno, o soberano exerceu o poder, unidimensionalizando todos os habitantes de um território demarcado por fronteiras, contrariamente ao que acontecia na poliarquia medieval, onde o poder do centro político assentava, sobretudo, numa variedade de pactos. Mas este Estado da monarquia absoluta, com um príncipe territorial, a lutar contra o universalismo, do Império e do Papado, e contra os particularismos, ou as poliarquias, do feudalismo e do comunalismo, se, nalguns casos, se transformou em Estado-nação, noutros não passou de simples Estado-administração, ou de um Estado sem nação, marcado pela mera lealdade a uma dinastia e sem qualquer nação susceptível de suportar a unidade do Estado. Neste último caso, o Estado aparecia como protector das minorias nacionais, como o rei medieval o fora, principalmente para os judeus, colocados sob a sua directa protecção. Da mesma forma como o Império Romano fizera relativamente aos vários estatutos particulares de alguns povos, que, apesar de dependentes, mantinham a autonomia dos respectivos direitos e das respectivas justiças.
Os autores de cepa hegeliana, por seu turno, consideram que há uma identidade entre a nação e o Estado, nomeadamente quando declaram que o Estado é a nação politicamente organizada. Felice Battaglia, por exemplo, considera que se a nação cria o Estado, o Estado cria a nação. A nação, longe de ser algo distinto do Estado, é ela mesma vontade de Estado, preparando o Estado ou concedendo-lhe o sentido mais exacto do seu ser com a individualização concreta do complexo humano que o constitui. E nisto estes autores neohegelianos têm algum fundo de verdade dado que raro é o movimento nacionalista conformado com o que está, com o status. Mais do que conservar, quer tradicionalizar, isto é, reformar o presente, recuperando o passado, de forma repristinatória, utilizando pretéritos elementos míticos para justificar o presente e movimentar o futuro.
Uma conclusão que podemos retirar do emaranhado de ideologias que enumerámos é que o conceito de nação varia conforme o tempo, o espaço e a unidade política que o pretende invocar. Na realidade, cada nacionalismo é sempre marcado pelos mais variados paradigmas, conforme as circunstâncias. Conforme as palavras de Israel Zangwell, o nacionalismo é um estado de espírito, a que corresponde um facto político.
Todos tendem para o futuro e todos tentam acreditar numa idade de ouro passada, procurando restaurar uns quaisquer anos de glória que teriam, outrora, acontecido. E lá vão falando no passado ou no presente de acordo com as conveniências dos fins, ora dizendo, de forma conformista, que a história é que faz a nação, ora replicando que é a nação que faz a história.
De facto, o nacionalismo tanto pode invocar o passado, o regresso às origens com o respectivo culto pela tradição, como provocar um construtivismo progressista e reformador. Tanto pode iluminar conservadores como revolucionários; tanto pode ser liberal como autoritarista; tanto pode pugnar pelo centralismo como pela descentralização.
Os fins da unidade nacional justificam, com efeito, todos os meios e instrumentos ideológicos, pelo que, neste sentido, o romantismo nacionalista, neste sentido, também é, paradoxalmente, maquiavélico.
Mesmo, a nível português, eis que, em nome do nacionalismo, tanto se defendeu o Portugal do Minho a Timor, pluricultural e pluri‑racial, como agora se defende um Portugal uniformemente cultural, sem minorias nacionais.
O nacionalismo foi defendido por idealistas e racionalistas, por românticos e utilitaristas, por individualistas e culturalistas. Os franceses napoleónicos influenciaram o discurso nacionalista de Fichte; mas é também o romantismo alemão que vai, depois, dar alento ao nacionalismo místico francês; os portugueses nacionalistas provocaram os movimentos de libertação angolanos, tal como os romanos acirraram a identidade dos lusitanos e os jesuítas filipinos fomentaram as conspirações dos manuelinhos de Évora e coleccionaram argumentos que vão, depois, ser brandidos pelos juristas da restauração.
O conceito de nação situa‑se, com efeito, na zona de fronteira entre a história e a poesia. Uma história concebida como o género literário mais próximo da ficção, como, noutro contexto, referia Armindo Monteiro, ou uma poesia mais filosófica que a história, conforme as palavras de Aristóteles. O tal quanto mais poético, mais real de Novalis, porque são os poetas que movem os povos, segundo José António Primo de Rivera.
Temos de reconhecer que se o homem é razão e vontade, também não deixa de ser imaginação. Que ao lado das duas potências da alma inventariadas por Platão, a ratio e a voluntas, tem também que colocar‑se uma terceira: o mito. O homem não é apenas animal rationale et politicum, é também animal symbolicum.
Se a poesia, como assinala Alain, é a reunião de todas as potências do homem, assim a nação é a polis que procura copiar o homem, tentando roubar‑lhe a imaginação e provocar a mobilização de todas as potencialidades do animal social e político, ao acrescentar‑lhe as asas do simbólico.
A nação é, pois, uma manifestação dessa terceira dimensão da sociabilidade. Mas porque é um sonho de futuro partilhado (Georges Burdeau), há tantos conceitos de nação quantos os sonhos desses diversos povos nacionais. E mesmo cada povo nacional vai variando de sonho conforme os respectivos instintos de legítima defesa. Ora, é nessa variedade, feita à imagem e semelhança da própria personalidade humana, que se encontra o essencial da respectiva universalidade.
Com efeito, só existe uma nação quando um qualquer povo atinge a dimensão de entidade impossível de repetir‑se. É que, como assinala François Perroux, os espíritos nacionais distinguem‑se uns dos outros conforme a representação que fazem de si mesmos. O mito, como dizia o nosso Fernando Pessoa, é um nada que é tudo.
Como cada nação é sempre um grupo humano mais a sua circunstância, que tanto encara mitologicamente o respectivo nascimento e crescimento, como visiona poeticamente o seu futuro, eis que se torna absolutamente impossível capturar racionalmente um conceito geral e abstracto de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo.
Os ensaios jurídicos, politológicos e filosóficos que tentam aprisionar o conceito de nação são, portanto, normalmente inconsequentes quanto à obtenção de um conceito intemporal e universal de nação, válido para qualquer espaço e para qualquer tempo.
Cada nação é sempre um determinado grupo humano na sua circunstância política, onde confluem as três unidades do tempo em dialéctica, ora se encarando as origens de forma mitológica, ora perspectivando-se o futuro, de forma sonhadora.