Mar 31

Aprender a viver.

Mudar de sítio pode ser mudar de horizonte e encontrar, no acaso das estantes de uma livraria, novas janelas escritas que nos baralhem os dados e nos voltem a dar sonho. Primeiro, foi A Coroa, a Cruz e a Espada, de Eduardo Bueno, sobre lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia 1548-1558, de Setembro d 2006. Segundo, foi a tradução de Apprendre à Vivre. Traité de philosophie à l’usage des jeunes générations, de Luc Ferry, de Dezembro de 2006.

Sem querer fazer recensões a duas obras que devorei, começo por este último, nascido no mesmo ano que eu, reparando que a boa novidade que ele traz não é a vanguarda das modas que passam de moda, mas a eterna corrente dos estóicos e o humanismo liberdadeiro de Rousseau e Kant, reassumido por Husserl, nessa procura liberalmente individual do transcendente situado que sempre rejeitou os materialismos, do positivista ao marxista, bem como activismos nietzschianos, de cunho fascista, ou fidelíssimas interpretações, com nihil obstat.

 

Folgo comungar com o filósofo que ficou farto de ser político, nesse ambiente de pós-Maio 68 que não precisa de revisionismo para se manter na linha do humanismo de sempre. Porque o homem é o único animal que sabe que vai morrer, porque a democracia é mesmo o único regime que favorece o aparecimento de elites de homens livres, porque importa descobrir, mais do que conceitos, importa o exercício da sabedoria, porque há que compreender antes e criticar, superando as algemas da nostalgia passadista e o futurismo sem presente.

Embora a palavra saudade nunca apareça, também eu considero que a razão inteira não pode naufragar na fé e ainda subscrevo que a inteligência é superior à confiança, mas com humildade, sem a soberba do vanguardista e reconhecendo os sinais dos judeus e a sophia dos gregos, rejeitando que a filosofia seja serva da religião e optando por pensar por mim mesmo e não apenas por meio do outro, onde há mais disciplina do que ciência e mais pirâmides conceituais do que criatividade.

Mar 31

Lei, ordem e corrupção no Brasil Colônia

O jornalista-historiador, Eduardo Bueno, vestindo-se de uma linguagem weberianamente dura, descreve, de forma realista, as grandezas e as misérias lusitanas, mas, por isso mesmo, manifesta um intenso amor às origens da sua própria pátria. E lá podemos viajar pelo tempo do senhor D. João III, Tomé de Sousa e Manuel da Nóbrega, entre letrados e guerrilheiros de Jesus, com seculares, burocratas e desterrados que saíam do Tejo à procura de um lugar onde que lhes desse vida, já que, no velho reino, eram mais os pés do que as botas. Já então a história de Portugal era a história do défice, do desperdício e da exagerada carga fiscal. Bueno mostra-nos os extremos, entre o lusitano Caramaru, um desses lançados que se transformou numa espécie de rei dos índios, e o jesuíta Manuel da Nóbrega, o fundador de São Paulo, o gago das mortificações em público, ditas exercícios espirituais. E assim continuamos a viver entre o sórdido da corrupção e o dramático da procura do mais além, enquanto alguns vícios privados, de vez em quando, se inserem no bem comum, mesmo quando misturam feudalismo e estadualismo, economia privada e serviço de el-rei, num acumular de contradições que acabou por constituir esse reprodução de cidades e do próprio reino, a que hoje chamamos Brasil. A descrição de Bueno é atraente, fazendo da história uma espécie de guião cinematograficamente colorido e tornando-se numa espécie de livro de aventuras empolgante, mesmo quando exagera no traço e caricaturiza o lado da degenerescência de uma sociedade de favoritismos, tráfico de influências, exagero de funcionários e corrupção. Porque faz, muito lusiadamente, a denúncia caseira dos nossos próprios vícios. Aliás, a crítica acerba pode ser uma forma humanista de amor, nesta viagem por umas profundas origens medievais e renascentistas, quando ainda não tinham chegado os ventos do soberanismo, do estadualismo e do próprio negocismo capitalista e se viviam as explosões da nossa mistura de heterodoxias, entre cristãos novos, fidalgos falidos, militares andantes, navegadores, arquitectos, físicos e artesãos, todos muito papeleiros e humanamente imperfeitos. Mas foi nesse caos, refugiados nas paliçadas, entre a voragem esclavagista e a antropofagia, que começámos a tal procura do paraíso que levou todos a desmatar uma terra quase virgem, construindo cidades e vilas, dotando-as de vereações pluralistas e erigindo um novo reino, sempre segundo o regimento, sempre violando o regimento, para também se vararem as linhas das Tordesilhas. Todos os povos são também as respectivas origens, essemanifesto destino que a nossa liberdade de sonhar vai construindo e desconstruindo, dia a dia vencendo a necessidade, o tal desafio das circunstâncias que vamos moldando, em nome da perfeição de um mundo melhor, nesse transcendente situado a que chamamos vida, entre a aventura e o pragmatismo.  Só depois de ler tudo, de um jacto, é que reparei fazer parte da bibliografia, como meu O Estado e as Instituições, de 1998, incluído na História de Portugalde A. H. de Oliveira Marques, no volume coordenado por João Alves Dias (século XVI), com um comentário honroso.

Mar 31

A Europa que começa a não estar connosco…

Vimos, ouvimos e lemos, mas os nossos responsáveis, políticos e académicos, continuam a ignorar, têm de ser arrastados pelo mainstream. Preferem cantar a loa daEuropa connosco, apenas conjugando o verbo nopretérito imperfeito. Entretanto, a cadeia do rolo unidimensionalizador vai-se alargando em chouriçadas decretinas, transformando as secções universitárias com menos poder de pressão em pequenos gabinetes de planeamento de “curricula” que vão tirando da “Internet”, com imenso “copy and paste”, enquanto jovens assistentes fazem noitadas, com tabelas de equivalência lançadas em papel quadriculado, longe da vida, longe do sonho e, sobretudo, longe da sabedoria. Pobres os que, depois da destruição, ficam à espera do que há-de vir, porque o que parecia ter que ser pode não vir mesmo. Entretanto, à bela maneira das passagens administrativas do PREC, alguns líderes institucionais, em processo eleitoral, prometem facilidades, onde os velhos quartos anos da licenciatura, com uma simples tese, podem transformar-se em gloriosos mestrados e ser rampa de lançamento para mais futuríveis dissertações de doutoramento. Vale-nos que os romances de cordel contam as recentes aventuras das privadas e acirram este nosso sonhar é fácil do enquanto o pau europeu vai e vem folgarem os costados do chico-esperto, sentado na encruzilhada deste potencial regime de passagens administrativas, à procura do canudo e da melhoria das estatísticas, como se, do regabofe, alguém pudesse lucrar. Julgo que a autonomia das universidades assenta naautonomia dos professores e na consequentemeritocracia, coisa que deveria ser sinónimo de democracia, de escola de cidadania e de semente de homens livres. Não esperemos que a terapêutica de um futuro ministro das universidades seja capaz substituir-se à necessária profiláctica. Por mim, serei consequente e não irei por aí. Não subscreverei esta ameaça de degradação académica, pedagógica e científica que vai germinando. Quando uma democracia passa a ser o reino da quantidade, não tardará que os inimigos e críticos da democracia a assaltem por dentro… os sinais que vislumbro no meu quintal são óbvios demais. O ensino superior continua à procura de bom senso!