Depois do deserto de Mário Lino, eis que a Ordem dos Economistas se tornou na montra das gafarias governamentais: agora foi a vez de Correia de Campos sugerir que a Associação Nacional das Farmácias deveria entregar os desperdícios de medicamentos aos… pobres. Ao menos, no tempo de el-rei D. Dinis, a rainha, que era aragonesa e depois foi santa, sempre lhes dava rosas e eu pensava que, com tanto socialismo e tanta social-democracia, já não havia pobres, ou melhor, já não havia ministros que sugerissem caridadezinha a confederações patronais, instrumentalizando os ditos do alto de um palanque discursivo, como se eles fossem alienígenas. Aliás, tal só pode acontecer no mesmo país em que alguns dos patrões mais ricos do país assumem na comunicação social o monopólio do carimbo do liberal, só porque recrutam um ou dois intelectuais que costumam prestar serviço no lóbi que o grupo de Paulo Portas mobiliza.
E lá acordo para a turbulência noticiosa deste quotidiano decadentista, depois de um dia de ontem onde estive mobilizado tanto pela comissão científica do senado da minha UTL, como, de tarde, tive de aturar um deserto onde os ilustres monopolistas da representação disseram que os situacionistas eram caravana, para insinuar que os opositores ladravam e que o caminho em que todos estávamos já era um deserto, onde, aliás, os camelos não ladram. E tudo acabou no final da tarde, onde fui fazer a gravação de um programa televisivo sobre os lóbis, em companhia de J. Martins Lampreia.
Só depois fui informado sobre o caso Saldanha Sanches, esse querido colega académico, a quem aqui deixo o meu testemunho de amiga solidariedade e de universitário reconhecimento pela elevação cultural e a coragem que tem dado provas como animal cívico e paradigma de professor, tanto em aulas como nas sucessivas provas públicas de prestação de serviço à comunidade. Apenas recordo as não raras conversas de bar na faculdade onde fui aprendendo com ele uma perspectiva do mundo e da vida que me levou a muitas leituras, numa atitude de diálogo universitário que publicamente agradeço.
Por mim, sem genealógica cobertura de qualquer ascendente devorista, resta-me também o direito àquela sátira anti-situacionista, isto é, plebeiamente violentista, anticlerical, antifidalgota e antibancária, restos de alguns genes daqueles meus avoengos que tanto andaram pela revolta do grelo como pelos confrontos com os GNRs de Salazar nos finais dos anos trinta, e que levaram alguns deles a também a malhar com os ossos, durante anos, nos cárceres do “ancien régime”. Julgo que Saldanha Sanches tem um destino a que não pode renunciar, desse ter tempo para ganhar o tempo e o poder perder numa actividade de muitos escritos só aparentemente inúteis, feitos de muitas divagações e especulações, nessas viagens que andam sempre na procura de um tempo que não é o “time is money”, o tal tempo da teoria que é o exacto contrário do tempo do “nec-otium”.
Nada estou a dizer sobre a soberania de um júri, ou com qualquer “inside information”, embora já todos saibam, no universo dos jornais e dos fiscalistas, quem foram os três do sim e os maioritários do não. Estou apenas a referir que as provas em causa se realizaram de acordo com uma certa legislação pré-abrileira, ofensivamente anticonstitucional quanto ao modelo de votação, e durante a “vacatio legis” de uma nova lei que eliminou tal anacronismo. Estou apenas a dizer que o silêncio dos claustros unversitários deveria estar fechado aos ruídos da conjuntura, embora devesse estar aberto ao sereno escrutínio dos valores universitários que se esgotam no serviço público.
Apenas digo ao José Luís Saldanha Sanches, com quem, mesmo aqui, tenho publicamente discordado, até nas recentes disputas cívicas, que a vida continua e que não há fins da história. Todos precisamos dessa voz académica e cívica.