Porque a recuperação dos mitos do processo histórico e das utopias pretensamente anti-utópicas de um fim da história não passam de meros fragmentos da eterna literatura de justificação que sustenta aqueles situacionismos que negam a força subversiva da justiça, proibindo a procura das energias libertadoras dos ideais históricos concretos, daquele direito racional de conteúdo variável que reconhece os realismos idealistas, segundo os quais as essências só se realizam na existência dos homens concretos, de carne, sangue e sonhos. Isto é, daqueles indivíduos sem os quais não há pessoas, as tais máscaras de teatro da vida, onde o nós precede o eu. Confesso que me mantenho firme no humanismo cosmopolita de Kant, nas concepções do “Verstehen” neokantiano e nas sementes lançadas por Woodrow Wilson, para quem o direito é superior à paz dos soberanismos e dos Estados em Movimento, cuja dinâmica é susceptível de provocar a paz dos cemitérios, incluindo daqueles pós-totalitarismos e pós-autoritarismos que não põem a lei acima do regulamento, o direito acima da lei e a justiça como chave da abóbada que deve mobilizar tanto o direito como a política. Porque sem essa estrela do Norte, as ordens estabelecidas podem ser meras desordens instaladas, sem que se permita a necessária mobilização pela justiça, sem a qual não há civismo nem sequer coisa pública. Sem essa “Grundnorm” que propicias a necessária “peace through law”, para utilizar palavras de Kelsen, podemos ter Estados, mas não teremos Direito nem poderemos atingir a complexidade do Estado de Direito. Por isso, considero que a Europa tem de rimar com liberdades nacionais, pelo que um federalista também pode ser nacionalista e um defensor da unidade da república assumir a necessidade da regionalização política. Para que se mantenha a tensão criadora da unidade e da diversidade e para que a liberdade como libertação exija o estádio de uma emergência que permita novas divergências e novas convergências. Porque é urgente que se retome a dialéctica clássica onde não se procure aquela superação sintética onde um dos termos não tem que aniquilar o outro, quando um deles se configura como silogística tese, destinada a combater o irmão-inimigo de uma endeusada, ou diabolizada, antítese. Por isso é que fui apanhar azeitona. Num intervalo filosofante, como a fotografia demonstra.
Monthly Archives: Outubro 2007
os referendos a tratados europeus não são democráticos
Um altíssimo dignitário da eurocracia, ex-comissão, ex-MNE de um pequeno Estado, o nosso, donde também foi ilustre ministro educativo e reitor de universidades, uma pública e outra privada, utilizando os axiomas da ciência exacta de que é especialista, veio decretar, do alto da suas circulações e tacadas cortesãs, que os referendos a tratados europeus não são democráticos, insinuando que quem está contra o acordo do Mar da Palha quer que Portugal abandone a União Europeia. Recordo-me de uma conversa com ele tive, em grupo, quando ele nos comissionava em Bruxelas e não gostou das minhas provocações federalistas e nacionalistas, quase me alcunha ndo como tolinho que não conhecia as leis da Razão de Estado, isto é, do pensamento único e das modas que passam de moda, de que ele era, e é, um dos máximos representantes situacionistas. Na altura ainda não era do PPE, cavaquistava… É verdade que qualquer constituição é tão complexa que sempre precisa de constitucionalistas e tribunais que possam decretar inconstitucionalidades, emitidas pelo poder. Tal como a democracia é tão complexa que há séculos a vamos teorizando, sem nunca chegarmos ao fim da história. Daí que também o seja o Estado de Direito, onde não vigora a regra segundo a qual “in claris non fiat interpretatio”. Todas estas entidades, com efeito, não conseguem ser captadas pelos conceitos operacionais da ciência química. Porque esse objecto material chamado povo apenas se deixa compreender por uma complexa alquimia de conceitos empíricos e de conceitos abstractos, apenas nos deixando espaço para meros indicadores. Para a democracia, sempre foi má conselheira a tolice da sofocracia, especialmente quando os pretensos sábios se decretam a si mesmos como aderentes a um clube de reservado direito de admissão. A democracia implica a complexidade crescente da cidadania e as repúblicas são melhores quando permitem um regime onde um mais um são mais do que a mera soma quantitativa das respectivas parcelas. Porque a mobilização da unidade e da diversidade pode fazer aumentar as forças, pela técnica do “e pluribus unum”. Quando um ministerial e reitoral catedrático de laboratoriais provetas nos quer dar música sobre o tratado do Mar da Palha, apenas podemos concluir que a respectiva palha propagandística é típica desses intermediários representativos que, ao assumirem-se como os monopolistas da voz da Europa e do nosso próprio futuro, deveriam ser despedidos por justa causa, porque o representado sempre foi superior ao representante. Os erros filhos da pauta podem dar origem a desagradáveis fífias. Especialmente quando o representante procura, com silogismos, transformar os cidadãos em inferiores homens comuns, os tais que não podem aceder ao que qualifica como complexidade, mas que não passa de mero segredo da Razão de Estado, só porque alguns supranacionais políticos dizem deter os mecanismos da “inside information”, nomeadamente por conversas e telefonemas que dizem manter com chefes de governo. Porque nunca de forma tão despudoradamente antidemocrática tinha sido emitida esta opinião que decreta a “vox populi” como inimiga da “vox dei”, prenunciando um projecto de governação de um rolo compressor, pelas pretensas elites que como tal se assumem só porque circulam provincianamente pelas corredores dos grandes deste mundo. Porque não parece que só alguns donos do poder invisível possam decretar como passíveis de punição herética todos os que duvidem da justeza da respectiva iluminação. Porque o povo, como um todo, institucionalmente posto em referendo, não pode ser algo de inferior aos representantes do todo, quando eles, depois de serem escolhidos para o cumprimento de um determinado programa, viram o bico ao prego. Pelo menos, nosso primeiro ainda não disse tudo. Apenas argumentou que o respectivo compromisso eleitoral se baseou noutras circunstâncias. Resta saber se o “sic rebus, sic stantibus” o levará a concluir pelo habitual “lixem-se os dedos dos princípios, para que salvemos os anéis das negociações diplomáticas”. Os habituais adversários da democracia são precisamente os que consideram o povo incapaz de decidir altos assuntos do estadão, especialmente quando o mesmo povo pode não aceitar as regras do jogo da ditadura dos perguntadores de um referendo. Como se não estivesse em causa o destino da nossa casa comum, uma questão vital que não pode ficar dependente do clube de reservado direito de admissão, onde se sentaram certos tecnocratas disfarçados de políticos. Não me parece que o antigo sucessor do Professor José Júlio Gonçalves na reitoria da Universidade Moderna tenha pergaminhos de formação académica que o habilitem para a condição técnica de internacionalista ou de constitucionalista. Ele apenas acedeu à tal complexidade do tratado do Mar da Palha como profissional da política, esse especialista de assuntos gerais que percebe de tudo um pouco, embora não tenha que perceber nada de nada. Não passa de mero homem comum elevado a representante de um povo pouco apto para questões complexas, mesmo que tenha passado a beber do fino, mas que não o exime de poder ouvir do grosso, dos tais homens comuns que, se têm o poder de sufrágio, não podem receber do eleito o arrogante do desprezo.
Quase todos vivem em desencanto
Todos invocam uma moralidade, a que qualquer homem de boa vontade adere, seja comunista, direitista, maçon, católico, socialista, social-democrata ou liberal. Quase todos vivem em desencanto, quando reconhecem que os mecanismos policiais e judiciais do Estado a que chegámos não consegue escrever justiça por linhas tortas. Porque nem sequer ainda conseguiu vislumbrar com recortes de eficácia as pontas visíveis do “iceberg” da pedofilia. Por mim, apenas reparo que seria bem melhor não inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Seria mais prudente passarmos os olhos por processos paralelos, ocorridos no nosso tempo, por outros universos político-culturais um pedacinho mais pluralistas e mais liberais. Por exemplo, a atitude tomada por certos segmentos da Igreja Católica norte-americana, onde a resposta moral da sociedade e o reconhecimento institucional da Igreja foram bem além da resposta judicial, sem contabilizarem tantas manobras dilatórias, habituais nos processualismos, e sem deixarem de enfrentar os casos formalmente prescritos. Também por lá, os grupos de pressão denunciantes exageraram em teorias da conspiração. Só que, nessas paragens, a sociedade civil não esperou que a culpa morresse solteira. Indignou-se e utilizou a moral social para colmatar as lacunas do juridicismo, do policiesco e do judiciesco, não deixando que tais atentados contra a dignidade concreta das pessoas concretas caíssem neste ambiente de hipocrisia e de “voyeurismo”, onde muitos se excitam com os “vícios privados” dos que ostentam “virtudes públicas”. Por outras palavras, temos os polícias e os magistrados que merecemos, tal como temos um governo adequado ao povo que o elegeu. Porque pedimos ao direito que faça moral e aos políticos profissionais que monopolizem a opinião pública. A culpa não morre solteira. O culpado somos nós, o tal povo que não se indigna. Nem sequer exige a alguns políticos, eleitos metapoliticamente, como o Presidente da República, que, federando homens de boa vontade, impulsione a sociedade dos homens livres, para a criação de uma espécie de comissão de honra, verdade e inteligência que exercesse missão idêntica às que, outrora, emitiram relatórios sobre as sevícias, abrangendo todas as instituições afectadas pelas redes pedófilas, laicas ou eclesiásticas, da direita ou da esquerda. Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral.
Grão a grão, a galinha da alternância vai enchendo o papo da revolta
Grão a grão, a galinha da alternância vai enchendo o papo da revolta, apesar dos êxitos da política externa e do esquecimento do complexo de Churchill. Ainda ontem, senti esse ambiente na sessão do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, para a qual fui convidado a proferir uma comunicação, onde versei o problema do micro-autoritarismo subestatal e onde tive a honra de recordar que fiz parte da geração fundadora da mesma entidade. Tal como esta semana, nas andanças da reforma da Universidade Técnica de Lisboa, voltei a notar como cresce a reacção contra as intenções reformadoras de Mariano Gago. Lá assumi a minha função discursiva de senador eleito, por entre a floresta dos inerentes e foi-me dado concluir que as boas intenções da lei, porque não foram recebidas, em confiança, pela comunidade dos académicos, vão cair nas teias reaccionárias do neocorporativismo e do neofeudalismo. Darei mais pormenores quando a procissão sair do adro das jogadas politiqueiras e das manobras de RGA, mas, desde já, se nota que Gago não vai conseguir o estatuto de Veiga Simão e não conseguirá a “révolution d’en haut”, pelo menos na sua universidade que, por acaso, também é a minha. De facto, na minha casa, a única universidade que veio da sociedade civil para o Estado e que antes de receber o decreto estadual criador já existia no terreno, nalguns casos há quase cem anos, como a Escola de Veterinária, verifica-se como o célebre RJIES se mostra totalmente incompatível com instituições não pombalinas, onde deveria cultivar-se a atitude federalista e o efectivo pluralismo. Governar entidades complexas com ditaduras maioritárias de grandes eleitores, marcados pela hierarquia das potências, onde nem sequer há equilíbrio das relações em eixo, pode ser transformar as pequenas e médias escolas em mera margem que sofre os efeitos das lutas de facções da que replica a ideia de república imperial, porque é efectivamente a superpotência que resta. Entre a unidade e a diversidade, entre a convergência a divergência, um dos termos não tem que eliminar o outro, se assumirmos a complexidade crescente das emergências criativas. Sempre desconfiei dos decretos estaduais, incluindo os despachos e os regulamentos assentes em deliberações de febris RGAs, aliás idênticos aos baseados na peritagem de uma eventual junta de pensadores de regime, dado que as escolas livres sempre se mostraram rebeldes face aos modelos pombalinos e napoleónicos. Porque é boa a escola que nasce de uma experiência da sociedade civil, para responder a desafios da realidade que afecta a própria existência da entidade política portuguesa. Desafio a que a universidade clássica às vezes não dá resposta, porque as circunstâncias correm mais depressa que os conceitos captados pelas enciclopédias do saber oficial ou oficioso, de matriz essencialmente juridicista. Uma escola livre é marcada por esta ideia fundacional, desde que assum um reformismo gradualista, mais baseado nas circunstâncias do que nas iluminações de um centralismo oficiosamente reformador. E se a escola livre quiser ser uma escola portuguesa, tem de ser fiel ao velho programa dos portugueses de Quinhentos, sempre procurou nacionalizar as tendências importadas. Isto é, se não quis inventar o que já estava inventado nem descobrir o que já estava descoberto, recorrendo aos estrangeirados, sempre os procurou integrar numa estratégia portuguesa, onde o crescimento tem de ser feito não só para o adiante, em termos quantitativos, mas também para cima e para dentro, em termos qualitativos, conforme o lema teilhardiano. Por outras palavras, uma escola livre é a que sempre se praticou um reformismo gradualista e um crescimento a partir das circunstâncias, visando dar resposta aos desafios da realidade, principalmente do emprego. Mas crescendo a partir da base, isto é dos doutores disponíveis, da investigação praticada, do corpo docente gerado maioritariamente a partir da cultura organizacional da escola, de maneira a que a identidade própria da instituição fosse capaz de adequar-se à mudança. Uma escola tem que ser uma efectiva instituição, dotada de uma ideia de obra, de regras próprias de processo e contando com uma efectiva adesão dos próprios membros. Vive-se uma comunhão de crenças, acredita-se numa identidade. Isto é, no âmbito de uma universidade, entendida como efectiva universitas scientiarum, procura-se o interdisciplinar e aquela aliança metodológica, que vai além da tradicional disputa entre as chamadas ciências da natureza e as chamadas ciências da cultura, naquilo que alguns qualificam como aliança metodológica meta-departamental. Aliás, Portugal perderia se desaparecesse a concorrencialidade entre modelos de ensino, caso se optasse pela uniformização dos curricula, eliminando as diferenças, pelo recurso ao livro único de um modelo Pombalista ou napoleónico. Uma boa instituição, tal como ideia de obra que lhe dá alma, tem de transformar-se numa criatura que se desenvolve através de uma lógica própria, adaptada às circunstâncias, num modelo de autonomia, com memória e com identidade, que a fez libertar dos próprios criadores. É a partir desta experiência, do núcleo básico de desenvolvimento com autonomia, que a reforma tem de ser desencadeada, a fim de se garantir autonomia na própria área científica das relações internacionais. Isto é, um dos objectivos fundamentais da necessária reforma passa pelo reforço deste núcleo, sem que se exclua o recurso ao sociológico, ao antropológico, ao jurídico e ao económico. É o que tem sido feito. É o que pode ser incrementado. O modelo português de universidade tem a ver com a estrutura e conjuntura do Estado e da Sociedade dos portugueses, no contexto da integração europeia, da globalização e da sociedade civil internacional. Somos um pequeno Estado e não podemos copiar os modelos dos médias e grandes potências. Aliás, se fizermos uma análise comparativa curricular, com entidades políticas próximas da nossa dimensão, encontraremos curiosas coincidências, da Áustria à Irlanda, da Finlândia à Catalunha e de muitas prestigiadas universidades norte-americanas. O estilo das escolas universitárias que não se assumem como escolas de regime e que atendem essencialmente aos nichos de mercado não pode ser igual à das que pensam seguir a perfeição modélica. O Estado e a Sociedade dos portugueses são atípicos e os respectivos desafios só podem ser assumidos pela diferença. A Sociedade portuguesa, isto é, a vida concreta dos homens concretos, talvez não admita um profissional de relações internacionais idêntico ao que é produzido pelas grandes escolas das médias e grandes potências e das sociedades civis liderantes do processo da globalização. Outras são as circunstâncias portuguesas. Outras terão de ser as respostas curriculares. A necessária reforma universitária, sem esquecer os princípios, também deve reconhecer que toda a racionalidade é complexa, que as essências só se realizam na existência e que os princípios só têm sentido quando são capazes de diálogo com as circunstâncias do tempo e do lugar.
Putin
A tal Europa a que chegámos não passa de mera política internacional, onde os diplomatas são mais importantes do que os políticos e onde os tecnoburocratas controlam os próprios diplomatas. Melhor: é política internacional higienicamente afastada dos povos, talvez porque os chefes sabem que os povos já não confiam nos políticos, para que os políticos desesperem dos diplomatas, os quais, por seu lado, se pensam os únicos políticos profissionais, mas para que todos temam o excesso de poder dos funcionários. A Europa deixou de ser um sonho, convertendo-se numa espécie de circuito integrado de alguns tratadores e tratantes, numa espécie de modo de vida neomaquiavélico, entre eurocratas, grupos de pressão e subsidiados, todos esquecidos da política como religião secular. É portanto natural que Putine chegue hoje a Lisboa e venha ao Palácio da Ajuda inaugurar a bela exposição dos czares no nosso Palácio da Ajuda, entre Pedro, o Grande, e Nicolau II. Política internacional também seria José Sócrates oferecer a Putine uma biografia de Gomes Pereira Freire de Andrade e Castro (1752-1817), com textos de Raul Brandão. O tal que tendo alcançado licença para servir no exército de Catarina II, em guerra contra a Turquia, partiu para a Rússia. Em São Petersburgo conquistou as maiores simpatias na corte e da própria imperatriz. Na campanha de 1788-1789, comandada pelo príncipe Potemkin, distinguiu-se nas planícies do Danúbio, na Crimeia e sobretudo no cerco de Oczakow, sendo o primeiro a entrar na frente do regimento quando a praça se rendeu em 17 de Outubro de 1788, depois de cerco prolongado. Praticou muitos actos de bravura, sendo aos 26 anos recompensado com o posto de Coronel do exército da imperatriz, que em 1790 lhe foi confirmado no exército português, mesmo ausente. Política internacional seria Sócrates dizer ao novo czar que o mesmo Gomes Freire, foi um dos principais líderes da célebre “Légion Portugaise” de Napoleão e que esta também esteve na malograda entrada do usurpador na Rússia. E contar-lhe que, em 1816, o mesmo Gomes Freire, a quem chamávamos o general russo, foi eleito Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa e tornou-se a «alma» de uma conspiração contra o Marechal Beresford, oficial que administrava Portugal sob mão de ferro e com a ajuda de um primo do grão-mestre, Miguel Pereira Forjaz , como se tratasse uma colónia inglesa, despertando grande descontentamento junto dos oficiais e intelectuais portugueses. A 25 de Maio de 1817, em estado avançado dos preparativos da insurreição contra Beresford, Gomes Freire foi preso conjuntamente com outros 11 conspiradores, por denúncia de três maçons (três traidores, como na Lenda do 3.º grau…), José Andrade Corvo de Camões, Morais de Sarmento e João de Sequeira Ferreira Soares. Gomes Freire de Andrade foi enforcado por ordem do Marechal Beresford no cadafalso na Torre de S. Julião da Barra e os demais no Campo de Santana, hoje denominado, em sua memória, Campo dos Mártires da Pátria. Segundo narra Borges Grainha, um dia antes da execução um coronel inglês, Robert Haddock, visitou o Grão-Mestre na cadeia e ofereceu-lhe como irmão a oportunidade para a fuga. Gomes Freire recusou a oportunidade!
a hiperinformação gera o vício da super-procura
Quase todas as parangonas apenas esperam que as remetam para o armazém dos desperdícios. Porque a hiperinformação gera o vício da super-procura, entre a criação artificial de pretensos factos históricos e o consumismo deste império do efémero que é um império do vazio. Enquanto alguns produtores da informação criam as tais necessidades artificiais, muitos outros preferem ocultar a inside information, desviando as fontes vitais da dita para os rios subterrâneos, cuja rota controlam, ou ocultam, encenando soundbytes, com que se vai deleitando o Estado-Espectáculo. Apenas noto como os donos do europês começam a decretar que os defensores do referendo são uns perigosos anti-europeístas, só porque os engenheiros e arquitectos da super-estrutura institucional do OPNI (objecto político não identificado, na definição de Jacques Delors) querem que as regras processuais do mesmo sejam superiores às manifestações de comunhão dos cidadãos e à própria ideia de Europa como instituição. Por outras palavras: querem tapar com a peneira das cimeiras de chefes de Estado e de governo, precedidas pelas reuniões do PPE e do PSE, o sol das liberdades nacionais e a voz directa dos cidadãos. Querem que os conceitos se transformem em preceitos, nesta super-democracia sem povo que visa remediar as péssimas soluções da defunta convenção. Desta forma, os grandes eurocratas correm o risco de lançar, para as garras do populismo anti-europeísta e para os manipuladores do descontentamento, segmentos fundamentais do eleitorado. O paradigma bismarckiano vencedor na cimeira do Mar da Palha, intrumentalizando a revolta gaullista do oui par le non, contra a Europa confidencial, gerou esta partidocracia global que corre o risco de levar os intermediários cimeiros das representações nacionais a perderem a legitimidade, embora mantenham a legalidade, nesse palco de abstracções, suceptível de se reduzir a mera teatrocracia de um império oculto. Qualquer sondagem demonstra que a maioria dos povos europeus gostaria de pôr a funcionar a voz da Europa dos cidadãos, referendando os seus próprios destinos. A maioria dos seus governantes e comissários apenas quer conservar o poder pelo poder e chama a isso pôr a Europa a funcionar segundo o modelo dos Estados em Movimento. Para que os povos não venham a colocar inesperadas areias nas engrenagens, porque assim o murganheira poderia não fluir nas gargantas ao som de um restrito hino da alegria…
O portuguesíssimo gajo porreiro
O portuguesíssimo gajo porreiro que nos governa e trata o presidente da comissão europeia pelo portuguesíssimo pá, tem que voltar a enfrentar as chatices domésticas, as tais que metem financiamentos partidários enevoados por irregularidades, fatinhas de felgueiras e toda uma federação de micro-autoritarismos subestatais que vão difundindo essa cultura de medo que sitia o Estado de Direito, o qual deixa de ser a necessária religião secular, passando a mera bola de bilhar que vai sendo arremessada pelo acaso dos poderes fácticos dos sempiternos donos do poder. Hoje, depois dos vapores da murganheira, já voltámos ao “day after” da falta de mobilização comunitária que não aguenta a liderança tricéfala do PSD (não esquecer as homílias semanais de Marcelo) nem entende a vitória dos meus irmãos liberais na Polónia. Acontece que a unidade do Estado, em vez de federar a diversidade, fragmenta-se em neofeudalismos e neocorporativismos, directamente proporcionais à própria despolitização do Estado de uma democracia sem povo e de um direito sem justiça. Fica a pirâmide verticalista da máquina do poder pelo poder que não respeita os espaços de autonomia das sociedades imperfeitas que perdem a plenitude das matérias que dizem respeito à respectiva natureza, da família à universidade, passando pelos espaços associativos daquilo que se designa por sociedade civil. Mais do que isso, os vários grupos se, pelo lado superior, caem nas teias do concentracionarismo, também se deixam enredar, pelo lado das bases, no antipolítico do regresso ao doméstico. Logo, é inevitável que se confunda autoridade com autoritarismo e superioridade hierárquica cm centralismo arrogante, assim se liquidando as necessárias autonomias das sociedades complexas. Veja-se esta multiplicação de políticas (policies), sem que assentem numa pensada macropolítica, geradoras de uma desconexão fragmentadora, impossível de ser curada por celestiais planos construtivistas de um livro único de reforma estadual, como pretendeu configurar-se o PRACE. Porque não pode reformar-se o Estado sem uma ideia de Estado. Porque não pode pensar-se o Estado sem uma ideia de sociedade. A mera aritmética quantitativista do menos ou mais Estado, ou do menos ou mais Sociedade, com que confundem liberalismos e socialismos, é péssima conselheira. Nenhuma destas caricaturas se compadece com a necessidade de, em primeiro lugar, se repolitizar o Estado, retirando-o da inércia moluscular em que se encontra. Porque o corpo político, pleno de gorduras, bem precisava de um tratamento intensivo que lhe aumentasse a agilidade dos nervos, sustentando-o numa arquitectura flexivelmente óssea, principalmente pela estruturação da coluna vertebral. Com efeito, a política quantitativa do menos Estado não pode transformar-se numa receita dos que atiram pela janela fora algumas missões do dito, para, depois, as deixarem entrar, de forma pouco transparente, pelos sótãos e alfurjas da avençologia, da consultadoria e da subsidiocracia, com muito “outsourcing” de clientelismo e barganha. Mesmo um liberal empedernido não pode negar o intervencionismo do Estado como cérebro social nos domínios da economia e da sociedade. Só que não podemos ser conservadores face às antiquadas respostas dadas à velha questão social. Especialmente quando importa aplicar o fim da justiça a novas circunstâncias, muito principalmente quando somos desafiados pela nova questão social.
Sobre o estado a que chegámos. Colóquio do SQTE
SOBRE O ESTADO A QUE CHEGÁMOS
Por José Adelino Maltez
Ex-fundador do SQTE
Professor Catedrático da UTL
Há toda uma federação de micro-autoritarismos subestatais que vão difundindo essa cultura de medo que sitia o Estado de Direito, o qual deixa de ser a necessária religião secular, passando a mera bola de bilhar que vai sendo arremessada pelo acaso dos poderes fácticos dos sempiternos donos do poder.
E a unidade do Estado, em vez de federar a diversidade, fragmenta-se em neofeudalismos e neocorporativismos, directamente proporcionais à própria despolitização do Estado de uma democracia sem povo e de um direito sem justiça. Fica a pirâmide verticalista da máquina do poder pelo poder que não respeita os espaços de autonomia das sociedades imperfeitas que perdem a plenitude das matérias que dizem respeito à respectiva natureza, da família à universidade, passando pelos espaços associativos daquilo que se designa por sociedade civil.
Mais do que isso, os vários grupos se, pelo lado superior, caem nas teias do concentracionarismo, também se deixam enredar, pelo lado das bases, no antipolítico do regresso ao doméstico. Logo, é inevitável que se confunda autoridade com autoritarismo e superioridade hierárquica cm centralismo arrogante, assim se liquidando as necessárias autonomias das sociedades complexas.
Veja-se esta multiplicação de políticas (policies), sem que assentem numa pensada macropolítica, geradoras de uma desconexão fragmentadora, impossível de ser curada por celestiais planos construtivistas de um livro único de reforma estadual, como pretendeu configurar-se o PRACE.
Porque não pode reformar-se o Estado sem uma ideia de Estado. Porque não pode pensar-se o Estado sem uma ideia de sociedade. A mera aritmética quantitativista do menos ou mais Estado, ou do menos ou mais Sociedade, com que confundem liberalismos e socialismos, é péssima conselheira. Nenhuma destas caricaturas se compadece com a necessidade de, em primeiro lugar, se repolitizar o Estado, retirando-o da inércia moluscular em que se encontra.
Porque o corpo político, pleno de gorduras, bem precisava de um tratamento intensivo que lhe aumentasse a agilidade dos nervos, sustentando-o numa arquitectura flexivelmente óssea, principalmente pela estruturação da coluna vertebral.
Com efeito, a política quantitativa do menos Estado não pode transformar-se numa receita dos que atiram pela janela fora algumas missões do dito, para, depois, as deixarem entrar, de forma pouco transparente, pelos sótãos e alfurjas da avençologia, da consultadoria e da subsidiocracia, com muito “outsourcing” de clientelismo e barganha.
Mesmo um liberal empedernido não pode negar o intervencionismo do Estado como cérebro social nos domínios da economia e da sociedade. Só que não podemos ser conservadores face às antiquadas respostas dadas à velha questão social. Especialmente quando importa aplicar o fim da justiça a novas circunstâncias, muito principalmente quando somos desafiados pela nova questão social.
Interessa também salientar que, muitas vezes, temos conseguido espremer, uma a uma, as gotas de micro-autoritarismos que ainda nos poluem, esses restos de subsistema de medo que marcam os pós-autoritaritarismos e os pós-totalitarismos, esses atavismos absolutistas que dizem que L’Etat c’est moi e que quod princeps dixit, legis habet vigorem, porque princeps a legibus solutus.
Infelizmente, continuam muitos segmentos do regime des décrets que, segundo Hannah Arendt, coincide com o governo da burocracia, essa mera administração que aplica decretos, existente nos Estados imperiais, como o czarismo russo e a monarquia austro-húngara, bem como em certos impérios coloniais.
Os burocratas destes regimes que administravam territórios extensos com populações heterogéneas, pretendiam suprimir as autonomias locais e centralizar o poder, mas apenas exerciam uma opressão externa, deixando intacta a vida interior de cada um, ao contrário dos totalitarismos do século XX. Era uma espécie de domínio perpétuo do acaso e de governo dos espertos onde o burocrata tinha a ilusão da acção permanente e onde, por trás dos decretos, nem sequer havia princípios gerais de direito.
Temos de assumir a bela ideia de luta pela Constituição, com verdade e autenticidade, espremendo gota a gota o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio.
Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: n’ayez pas peur, na servitude volontaire o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhe dá, um poder que vem da volonté de servir das multidões que ficam fascinadas e seduzidas por um só”.
O culto das pequenas personalizações de poder de cunho bairrístico e endogâmico, ou de falso carisma regionalista, bem como a crescente cedência às caricaturas de pretensos príncipes neomaquiavélicos são directamente proporcionais às sucessivas ilusões populistas. Apenas servem para que se reforce a presente ditadura da incompetência, de um situacionismo que continua a poder manipular os sucessivos inimigos a quem convém dar palco.
O que resta desta federação de notáveis, entre o poder banco-burocrático, as mordomias e o caciqueirismo, pode não ser suficiente para fazer aguentar este crepúsculo dos bonzos do Bloco Central que vai enredando o regime. Seria melhor que os últimos bem-pensantes que restam contabilizassem a eventual inutilidade dessas ilusórias procuras do neopopulismo, pretensamente pós-moderno.
Vejamos alguns dos elementos deste caldo de cultura da crise moral nos entorpece. E tanto pode afectar a máquina central, regional ou local do Estado, como alguns dos seus segmentos de micro-autoritarismo pós-totalitário, onde os antigos lacaios do passado deboche se reconvertem, pela calada das benções de sacristia, nos manobradores da nova gamela, recrutando agentes pidescos e estalinistas, para a manutenção das vaidades, onde a servidão voluntária da maioria sociológica dos cobardes vai lavando as mãos como Pilatos, enquanto apenas internam, nos campos de concentração e nos hospitais psiquiátricos, os diferentes, isto é, os que vivem como pensam sem pensarem como vivem. Não serão estes criados e criaturas que assegurarão a continuidade do Portugal à solta…
Porque a qualidade de uma democracia não se mede por sabermos quem manda, mas antes por sabermos como de institucionaliza o controlo do poder. Democracia não é sondajocracia. Aliás, Hitler obteve uma maioria numa democracia, a da República de Weimar, e a Inquisição era bastante popular, com pressões do braço popular em Cortes, quando o rei queria abrandar o terrorismo de Estado, e amplas adesões das massas aos autos de fé. Aliás, em determinados momentos de pânico securitário, mesmo dos nossos dias, se a pena de morte fosse a referendo, logo revogaríamos a respectiva abolição, constante do Acto Adicional à Carta de 1852 e do decreto de 1 de Julho de 1867.
Depois de séculos de inquisição e de quase meio século de autoritarismo, se eliminámos os aparelhos de repressão, manteve-se o subsistema de medo que os mesmos geraram e não se apostou na revolução cultural educativa que desse autonomia às pessoas, com a consequente meritocracia.
Deixámos subsistir os colectivismos, herdados do beatério catolaico ou comunista, onde qualquer um para se libertar dos pecados adere a uma dessas seitas, dizendo que não recebe lições de democracia dos adversários e demonizando-os com um qualquer adjectivo depreciativo.
Esquecemo-nos que o poder não é uma coisa que se conquista em “spoil system“, mas antes uma relação, uma relação entre os aparelhos e a comundidade, entre o principado da governança e a república dos cidadãos, onde a sociedade civil não se reduz à CIP e aos loibos que sabem uivar e que não podem institucionalizar-se no parlamento, para não fazerem concorrência aos senhores deputados que pretendem monopolizar a actividade disfarçadamente, num país onde o importante não é ser ministro, é tê-lo sido, para recordar uma conhecida exclamação de António Almeida Santos, como amanhã glosarei na RTP.
Valia a pena que se estudasse, com toda a humildade, algumas lições de democracia sobre o spoil system, o sistema dos troféus, correspondente ao sistema norte-americano de nomeação de novas equipas, depois da eleição de um presidente, um modelo instituído por Andrew Jackson no primeiro quartel do século XIX.
Max Weber definia-o como a atribuição de todos os postos da administração federal ao séquito do candidato presidencial vitorioso, salientando que, a partir de então, surgiu um novo esquema de partido, entendido como simples organização de caçadores de cargos, sem convicção alguma.
Com António Guterres, o spoil system passou a ser traduzido em português por jobs for the boys, antes de Durão Barroso o volver em boys for the jobs. E terá sido com base nesta experiência que Bailey considerou a política como um jogo onde os competidores actuam numa arena visando a conquista de troféus.
O que levou ao aparecimento, no modelo norte-americano, do boss, do empresário político capitalista que procura votos em benefício próprio, sem ter uma doutrina e sem professar qualquer espécie de princípios. Um político profissional típico que trata de atacar os outsiders que lhe podem ameaçar os futuros rendimentos, isto é o futuro poder.
Muitas são as algemas e a rede de cunhas e influências que estão a arrastar a democracia para as teias de uma sociedade de Corte de outros “anciens régimes”, onde quem ousa falar como homem livre da finança, da partidocracia, do comunismo burocrático, da lealdade hierarquista ou da união dos interesses económicos corre o risco de passar à categoria de maluquinho ou de incompetente.
O situacionismo sempre tratou o dissidente como praticante do pecado da deslealdade, só porque este não tem medo de ser minoria e até pode querer pertencer a uma minoria constituída apenas por ele próprio, dado que não teme fugir do carreirismo subserviente.
Os locatários do poder preferem cultivar memórias das pequenas guerrazinhas de homenzinhos e das golpadas de corredor, nas muitas pequenas tribos da esquerda e da direita que reduzem o país a histórias da adolescência politiqueira, com cenas de promiscuidade depois de uma noitada num bar do Cais do Sodré.
Daí que a política tenha sido reduzida aos pequenos imundos mundos das casas de alterne, intervaladas por retiros espirituais, com sacanices consequentes e heroicidades de acampamento, nessa devassidão de pequenas cenas vanguardistas. A própria universidade deixou de ser uma fábrica de sonhos, com sucessivas cenas de facadas em conselhos e júris, onde domina o carreirismo do salve-se quem puder e a feira das vaidades de muitas vérmicas criaturas, enfarpeladas em água de colónia e fatos finórios de alfaites elitistas.
E assim este pobre país não escapa às estórias dos traseiros da capital e seus arredores, com sucessivas inconfidências de romances de cordel, onde já ninguém respeita a privacidade e onde a própria justiça corre o risco do favoritismo ideológico e do vício mediático.
Quando a secção da elite bancária já não se entende, é natural que os directores de hospitais passem a comissários políticos, tal como uma recente investigação acabe por revelar eventuais trocas de camisolas de jogadores de futebol por facilidades de registo de estrangeiros do pedibola. Para não falar dos diplomatas-espiões que continuam a conseguir segredos de Estado a troco de um uísque e de dois croquetes, numa passagem de modelos do “jet set”, assim se demonstrando como se rebaixam os fins da política e os preços de saldo da própria compra do poder, nesta fragmentação de politiqueirice partidocrática.
As própria elites são construídas pela elevação dos adjuntos jotas a titulares, quando estes, levando a agenda dos contactos, dos contratos e dos favores, entram na actividade do pós-poder, com consultadoria, avençagem e subsiodiodependência. Porque o importante não é ser ministro, é tê-lo sido, sobretudo se se souber conservar a memória da engenharia das cunhas correspondidas à boa maneira do bloco central.
Todos somos uma pátria furtiva e uma política confidencial que, em ritmo de música celestial, discute o sexo dos anjos da teoria de Hauriou, mesmo quando a careca foi descoberta na véspera, antes de passarem mais umas décadas para virmos a saber quais as trocas, baldrocas e sacadocas que o permitiram elevar-se a supremo coveiro dos cemitérios que estão cheios de insubstituíveis.
Os tiques e os tombos do autoritarismo tanto afectam gonçalvistas, como salazarentos frustrados, só porque um qualquer grande chefe não aceitou ser padrinho do respectivo casamento. Contudo, todos eles querem demitir os que não se enquadram no respectivo conceito de lealdade, todos eles chamam traidores aos dissidentes, todos eles acham que quem não está connosco está contranosco e andam sempre à procura do primeiro que lhes apareça para lhes levar a pasta do elogio, sem perceberem que a verdade vem sempre à tona de água, raspando o verniz do oportunismo predador dos eucaliptos, onde o “spoil system” exige sempre um “boss”, com um adequado programa de latrocínio.
Se os partidos governamentais se deixarem enredar nestas tortuosas cedências ao estadão salazarento, com alguns epifenómenos de vigilância revolucionária, os afastamentos regulamentares e disciplinares tornar-se-ão numa vaga de saneamentos e na consequente ditadura da incompetência. Os sinais são crescentes e não basta que alguns proclamem que estão de consciência tranquila e não recebem lições de democracia de ninguém.
Os vícios do centralismo e do autoritarismo são uma possibilidade que pode afectar um qualquer detentor do poder.
Também eu temo este agigantar do poder de ninguém, típico do comunismo burocrático, onde o clamor público do direito à indignação apenas consegue parangonas e ritmo contestatário de telejornal quando a pretensa vítima é um ex-deputado. Porque os vícios do micro-autoritarismo subestatal podem continuar a ser os anónimos cidadãos que não conseguem furar o bloqueio desta democratura de silêncios.
Já Montesquieu observava que quem detém um qualquer pedaço do mesmo poder tende a abusar do poder que dispõe. Por isso, apontava para a clássica balança receita da separação e divisão do poder e dos poderes, pelo estabelecimento de um sistema de pesos e contrapesos, de poderes e contrapoderes, onde, para cada acelerador, se deveria estabelecer um travão, naquilo que, outrora, Cavaco Silva qualificou como forças do bloqueio.
Julgo que as recentes crises têm a ver com a nossa falta de cultura pluralista, que tanto tem afectado o absolutismo do despotismo ministerial, como certo absolutismo democrático que lhe sucedeu. Onde, em vez de um rei absoluto, se colocou a absoluta abstracção do povo.
Com efeito, o chamado povo, como tal, nunca esteve nem estará no poder, dado que quem efectivamente o gere são os chamados representantes, como se dizia o antigo rei absoluto ou como se dizem, actualmente, os deputados eleitos e os governantes que aqueles sufragam.
Acontece apenas que estes representantes, directos ou indirectos, dependem do sistema de canalização que os elevou ao palco do estadão democrático. Isto é, dependem de duas formidáveis máquinas que podem desfocar a relação directa com o eleitorado. A montante estão os oligárquicos mecanismos da partidocracia. A jusante, os verticalistas processos dos aparelhos da administração do chamado Estado.
E tudo se agrava quando se elimina o sistema de competência e de carreira do velho conceito weberiano de burocracia racional-normativa e se faz um curto-circuito da partidocracia para a burocracia, com a criação dos tais jobs for the boys and girls, nomeadamente com directores-gerais da confiança política, ou pessoal, dos senhores ministros. Porque se transporta para jusante a poluição existente a montante.
Logo, uma qualquer ministerial figura, marcada pela partidocracia, não pode lavar as mãos como Pilatos por um acto de um seu director-geral, nomeado segundo o critério da confiança política. Não pode invocar a autonomia institucional de uma qualquer direcção-regional, dado que o vértice é imediatamente responsável por tudo quanto emerge na fileira dos directamente dependentes. Não lhe é possível dizer, de acordo com o princípio da subsidiariedade, que uma entidade de ordem superior não pode interferir na esfera de autonomia de um seu directo inferior.
Esse modelo funciona quando há um complexo de esferas autónomas em razão da sua natureza, onde a que tem menos espaço na hierarquia nem por isso perde a plenitude da sua independência, nas matérias em que tem competência própria. O director-regional nomeado por razões de confiança política é tão indistinto quanto o adjunto ou o chefe de gabinete de Sua Excelência. Pertence à zona do não-pessoal-de-carreira, sendo passível de instalação e remoção pelas vagas do “spoil system”.
Os sinais de despotismo de um só podem conduzir ao extremo oposto do despotismo de todos, também embrulhado nos mesmos mecanismos delatórios, com denunciações de ouvida, demagogia e populismo, os habituais prelúdios dos césares de multidões, nessa espiral de vindictas a que só pode atalhar-se pelos cumprimentos dos conselhos de Montesquieu, conforme a cultura do Estado de Direito.
Porque se apenas mantivermos o verniz do Estado de Legalidade, nem Bordalo Pinheiro poderia editar o seu “António Maria”, havendo sempre candidatos a juiz Veiga, com os consequentes moscas do Intendente e bufos da PIDE. Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos.
Karl Raimund Popper, constituiu, na fase pós-revolucionária da nossa democracia, um dos principais patriarcas intelectuais de um tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só muitos anos depois é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.
Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.
Apesar de tanto atraso, Popper também foi um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideraram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utilizava para desgarradas citações.
Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo: The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.
O exemplar da Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.
Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma. Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.
Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente. Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam!
Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.
Prefiro viajar pelos meandros do permanecente micro-autoritarismo subestatal, citando parcelas de um “mail” recebido: este País parece ter ensandecido… fui colocado num depósito onde está uma série de pessoas absolutamente desactivadas… que esperam desactivados pela reforma. Durante um ano e meio, nunca me deram uma única tarefa. Nem uma única. Chamam-me …, mas nunca recebi qualquer despacho, nem me foi solicitada qualquer tarefa.
Ontem recebi a minha nota de serviço referente ao ano de … Ora tudo isto é um embuste sem limites, nunca ninguém me definiu objectivos, e nunca ninguém me mandou fazer fosse o que fosse. A minha classificação de serviço assenta em verborreia que mais não é do que um chorrilho de mentiras… Inventaram tudo. Para aplicar o sistema de avaliação chamado SIADAP (inventado pelo …) estão a inventar. Apesar de a minha classificação ser inócua … arrepia-me pensar que as pessoas que estão a ser dispensadas … tem-no sido apenas com base nessa classificação. Os jornalistas que enfeitam os jornais com letras garrafais que anunciam rigor e novas regras que visam distinguir pelo mérito, estão a ser enganados. Não é nada disso. Pior do que tudo, vejo os funcionários mais amedrontados do que nunca… vou lutar contra esta absurdidade. Esta noite mal consegui dormir na ânsia de me dirigir ao meu sindicato, e admito ir para os jornais denunciar a barbaridade que se vive em certas gaiolas da função pública. Para começar vou devolver a minha classificação ao …, e explicar-lhe que tudo o que escreveu na minha classificação é mentira. Absoluta mentira! Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.
A história que aqui transcrevo, passada num organismo da administração directa do Estado, podia ser contada, com outros recortes, mas com o mesmo decadentismo, numa qualquer entidade dependente do decretino ministerial, assim confirmando como vivemos em plena ditadura da incompetência. O ambiente de crise leva à destruição do nobre poder político, entendido, não como uma coisa que se conquista, mas antes como uma relação entre a chamada sociedade civil e o aparelho de poder.
Estamos em plena loucura típica de um tempo de entrada na simples patrimonialização do poder, onde um qualquer indivíduo, social ou economicamente enfraquecido, para sobreviver, trata de pedir protecção a um qualquer outro que julga social e economicamente mais forte na barganha negocial. Primeiro, começa com a simples cunha, a parte soft do feudalismo. Depois, vai alargando o absuso e pode atingir a corrupção, ou compra do poder, a parte mais hard do mesmo fenómeno da antipolítica. E entre a cunha e a compra do poder, vive-se neste ambiente de relações privadas que afectam o próprio financiamento partidário, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido.
Não tarda que surjam as sereias do moralismo populista, enquanto vão proliferando os episódios ditos da judicialização da política e as ameaças do Estado de Juízes, simples manobras de diversão que nos embaciam as lentes analíticas. A chegada a Lisboa de algumas vassouradas das investigações brasileiras sobre os furacões, os mensalões ou o sanguessugas, apenas revelam como estamos hipócritas demais, entalados entre Deus e o Diabo e não assumindo que, na prática a teoria é outra, dado que o homem tem os olhos nas estrelas da música celestial, mas anda com os pés no lodo daquele dia a dia onde o normal é haver anormais.
Basta notar como já ninguém diz o que efectivamente pensa e que a palavra dada se não respeita, em proveito das orgias do poder pelo poder, onde quem parece ter razão no curto prazo, logo a perde no dia seguinte, quando ficamos todos a saber das chantagens e das próprias orgias, algumas delas registadas em video, ou testemunhadas presencialmente por alguns intervenientes. O pior é que a longo prazo estamos todos mortos. Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.
Por outras palavras, quando as instituições transformam os homens livres em dissidentes, passíveis de saneamento por heresia e não se apercebem que a lealdade básica não se confunde com seguidismo face à voz do dono, podemos dizer que as ditas, um quarto de hora antes de morrerem, ainda estão vivas, especialmente quando domina a cobardia abstencionista dos batedores de palmas, a entoarem a ladaínha do sim, chefe ou do yes, minister. O micro-autoritarismo já não tem pides que assassinem o chefe da oposição, nem pode, por resolução do conselho de ministros, afastar funcionários incómodos, mas obtém os mesmos fins de forma tortuosamente teológica, de acordo com o método daquela bissectriz que vai comprando os neutros, ao mesmo tempo que emite decretinas medidas, pelas quais, através de uma forjada arquitectura de uma nova lei orgânica, afasta todos os críticos sem os nominar.
Por outras palavras, o nosso Estado de Direito está a cair naquela ratoeira do governo dos espertos que transformou o slogan liberal de António Feliciano de Castilho, do manda quem pode, obedece quem deve, numa forma salazarista de obediencialismo.
Por isso, é natural que o lema das aldeias comunitárias segundo o qual o que é comum, não é de nenhum se transforme no seu exacto contrário, quando passamos a considerar que o Estado já não é a comunidade ou república, mas antes o c’est lui do aparelho de poder. Por mim, preferia que a democracia não mantivesse os velhos hábitos do absolutismo: o Estado não é o c’est moi, da voz do dono, o Estado somos nós todos. Porque, como já dizia Plínio, quando se dirigia a Trajano, nós inventámos a república para deixarmos de ter um dono.
Os aparelhistas que nos dominam podem ser detectados na forma de estar confirmada pelo relatório da Caixa Geral de Aposentações de 2006, a que o CM teve acesso, revela que as pensões de valor superior a quatro mil euros têm um peso cada vez maior nos gastos com as reformas dos beneficiários: em 2006, numa despesa total de 6,1 mil milhões de euros com as reformas de 393 663 pensionistas, os custos com as 3454 ‘pensões douradas’ oscilaram entre um mínimo de 13,8 milhões e um máximo de cerca de 19,6 milhões de euros.
Porque a tendência dos primeiros cinco meses deste ano indica que o número de pensionistas com as reformas mais altas continuará a aumentar em 2007: entre Janeiro e Maio deste ano registaram-se mais 165 pensões milionárias. Só em Maio 38 beneficiários da CGA aposentaram-se com mais de quatro mil euros. Desse total, seis, todos magistrados, reformaram-se com pensões entre 5034 euros e 5834 euros.
Nada de novo. Na véspera de eleições (em 10 de Maio de 1919), surgiu o mais gordo diário oficial da história portuguesa, onde se publicaram 30 suplementos, que, segundo os críticos, criaram cerca de 17 mil novos empregos públicos. Todos nomeados por conveniência do serviço público, sem o visto do Conselho Superior de Finanças. Logo, em 1930, contabilizavam-se mais de 17 000 funcionários do que em 1911, enquanto as forças armadas, nesse período, também aumentaram em cerca de 16 000 efectivos. Assim triunfava a empregomania semeada pelo devorismo de Rodrigo da Fonseca, só que então ela se democratizava, alargando-se às classes médias e a núcleos da pequena burguesia. E como não havia moralidade, todos continuam a querer comer à mesa do orçamento.
A maleita continua, à direita, à esquerda e ao centro, em nome do 24 de Agosto, do 5 de Outubro, do 28 de Maio ou do 25 de Abril. Todos os revolucionários, quando se transformam em pós-revolucionários, são sempre bonzos, à procura de reformas, aposentações e acumulação das ditas, com chefes em aposentadoria, mas com dispensa oficial, para continuarem no activo, segundo a moral do sapateiro de Braga…
Até ministros dos anciens régimes se convertem em gurus dos novos, a partir do momento em que resoluções do conselho de ministros lhes inventam um vencimento suplementar, para poderem acumular com acumulações de curadorias fundacionais, aposentações deputáveis e directorias-gerais de instituições,onde só ele é orçamentalmente vencimentável. Somos todos iguais, mas há alguns mais legalmente iguais, nesta permanecente animal farm…
Estamos, neste momento, a viver a crise típica dos estados febris que se sucedem a certos vazios de poder e a sublimação das tendências recalcadas que precedem as movimentações para a conquista ou para a manutenção em certos poderes políticos, universitários ou sociais (tudo com minúscula, assinale-se).
Não me parece que os tempos do estado febril da sociedade, sejam eles adolescentes, adultos ou serôdios, se mostrem propícios a decisões de médio e longo prazos, necessariamente harmónicas que reconheçam e dinamizem a poliarquia de paradigmas que, neste momento, conforma ….
Talvez não convenha cedermos aos tempos onde a raposa passa a usar as garras do lobo e a serpente a querer voar como as rapinas. Nem sequer vale a pena a linguagem das pombas a abater ou dos cordeiros a imolar. Não acredito nos animais falantes.
Apenas manifesto a minha dor pelos desenvolvimentos recentes do poder infraestrutural. Pelas consequências da conquista e manutenção do poder na rede institucional em que estamos inseridos, todos poderão ver, amanhã, a constelação causal e as acções reversíveis do processo em curso.
Declaro, com toda a frontalidade, em nome da normativista moral de convicção, que tanto não aceito o autoritário quem não está contra mim, está a favor de mim, como repudio activamente o totalitário quem não está a favor de mim, está contra mim. Os fins não justificam os meios…
Num Estado de Direito Democrático, não considero justo que se ceda à pressão da nostalgia revolucionária ou dos candidatos a princeps que mimeticamente confundem o pretérito perfeito com o futuro aventureiro.
Quem tem razão a curto prazo, pode não tê-la tanto a médio prazo como a longo prazo. E só é moda aquilo que passa de moda. Não tenho medo de estar de acordo comigo mesmo, ainda que venha a estar em desacordo com todos os outros. Tanto é mau o despotismo de um, ou de poucos, como o despotismo de todos.
Julgo saber analisar laboratorialmente os invocadores da pequena Razão de l’Etat c’est moi bem como os pretensamente lúcidos praticantes da moral de responsabilidade. Também percebo a vontade de poder dos que dizem querer salvar a cidade, apenas a pensar na paróquia, no quintal, na casa, na bolsa, na barriguinha, na inveja ou nas vaidades. E entendo o libidinoso de muitas ânsias dominandi, o dogmatismo de acaciana pacotilha e o indisfarçado desejo quanto à imposição de um paradigma único, de um pensamento único e de um politically correct tribalista. Prefiro, neste tempo dos tais homens lúcidos, ter a lucidez de ser ingénuo.
Quem, gerindo democracias, as transforma em sistemas fechados, provoca a involução e o nivelamento, julgando que tudo é marcado pela probabilidade da morte da matéria. A energia de um sistema aberto atravessa o mundo físico e fá-lo subir para o improvável, assentando no poder que têm os seres vivos para a regeneração e a multiplicação, lançando para cima e para dentro, visando estados cada vez mais complexos e mais centrados, ligando os homens de centro a centro, de consciência a consciência, sempre no sentido do improvável.
Numa democracia, as situações e as oposições equivalem à convergência e à divergência da dialéctica clássica. A fase do futuro não passa de mera emergência, onde não desaparecem as anteriores convergências e divergências. Porque um sistema complexo, um sistema aberto, ou um sistema vivo, é regido por mecanismos de auto-organização, responde a flutuações aleatórias, tem processos de crescente complexificação, conduz a ordens cada vez mais espontâneas, dado que cada ordem tem novos desafios e surgem sempre ordens mais complexas.
Os cadeirões do poder que marcam o estadão a que chegámos são meros tigres de papel que pensam mandar, quando apenas são peças da máquina anónima de uma pilotagem automática, onde os pretensos homens do leme tanto não têm carta como querem saber da rota. Já não ousam dobrar cabos desconhecidos, nem gostam de navegar para a conquista da distância. Isto é, continuam a julgar que o porto seguro está no quintal da endogamia e não nesse prazer do navegar é preciso quando, aqui e agora, se procura o paraíso.
Quem conhece a distinção entre a moral, a política e o direito, também é capaz de confundir a moral, a política e o direito, perante os que não estão traquejados em tais distinções doutrinárias.
Sobretudo, se sabe, de ciência jurídica certa e de experiência partidária vivida, que um acto perfeitamente lícito do ponto de vista do direito positivo, pode também ser totalmente imoral e passível de uma forte censura política.
Sabe que os tribunais deste Estado de Direito apenas podem julgar segundo o direito estabelecido e não segundo a moral ou os juízos de valor da política. Sabe que em nome do mesmo povo que dá aos tribunais o poder de julgar, ele tem o poder de propor leis, de ser coautor de decretos-leis e de editar regulamentos, o que inclui, nomeadamente, a revogação das leis, dos decretos-leis e dos regulamentos que estão em vigor.
Sabe também que um dirigente cimeiro da aparelhança não tem poderes para revogar normas morais ou para estabelecer novos conceitos de justiça, mas que, com jeito político e muita demagogia, pode virar o bico ao prego, lavar aos mãos como Pilatos e dispensar Barrabás da crucificação.
Por tudo isto rendo-me aos maravilhosos exercicios dialécticos, onde membros de um órgão de soberania, que, como dissemos, tem poder executivo e poder legislativo, manipulam a política com a engenharia conceitual do direito, dando ares de quem tinha protecção da moral.
O visado percebeu que quem detém o poder, detém a palavra, demonstrando, perante os representantes do chamado quarto poder, que , no Estado a que chegámos, o espectáculo constitui a principal fonte dos votos. Mais: proclamou, por portas travessas, que o actual poder político aceita a maquiavélica oposição entre moral e política, bem como o conceito positivista de direito, onde o ser não depende do dever-ser e a segurança é preferível à justiça.
Por outras palavras, defendeu a teoria voluntarista dos que dizem que o bem é bem porque o poder quer e que o mal é mal quando é mal para o poder que está.
É evidente que o mesmo fez o actual governo quando acusou retroactivamente o anterior de ter muito pouca credibilidade, porque assim não pisou as raias da calúnia e da infâmia: fez um simples juízo político, utilizando expressões verbais com certa conotação moral.
Ora, quando os governos nos tentam dizer que aos tribunais é que compete tudo julgar, apenas estão a procurar escapar àqueles julgamentos que os tribunais não podem fazer. É que, numa democracia, os detentores do poder também têm que ser julgados segundo a moral e segundo a política, isto é, segundo a consciência dos cidadãos e segundo a opinião pública.
Os actos administrativos dos membros do Governo e as condutas privadas dos cidadãos que nos governam, mesmo quando não são “contra legem”, podem infringir a moral e a boa política. E tal como as inspecções das finanças e da saúde não são tribunais, também estes não podem ser eleitorados, opiniões públicas ou consciências individuais.
Com efeito, todos podemos exigir que os nossos governantes vivam como dizem pensar e, portanto, que num governo que se arvora em defensor da solidariedade e da justiça social não possa haver figuras públicas que se comportem segundo os valores do “far west” e do capitalismo “de faca na liga”, misturando o “charme” indiscreto do “jet set” com “almas de corsário”.
Nós, cidadãos, podemos e devemos exigir que os nossos ministros e secretários de Estado sejam efectivos “servi ministeriales”, dado que os poderes que detêm , enquanto funcionários da nossa “coisa pública”, mais do que direitos subjectivos, são simples poderes-deveres. Podemos e devemos exigir que os nossos governantes se submetam à lei que eles próprios editam e executam. Não poderemos tolerar que a democracia se transforme num qualquer orientalismo, onde, como denunciava Montesquieu, tout se réduit à concilier le gouvernement politique et civil avec le gouvernement domestique, les officiers de l’État avec ceux du sérail.
Temos que dar a césar o que é de césar e ao mercado o que é do risco. Não podemos admitir que queiram transformar Portugal numa espécie de “pátria, sociedade anónima” com governantes de responsabilidade muito limitada, misturando a mentalidade banco-burocrática do intervencionismo com o a atitude laxista do liberalismo a retalho.
As fronteiras entre o Estado e a Sociedade Civil têm que estar perfeitamente demarcadas. Não pode tolerar-se que um novo poder económico brote do velho proteccionismo estadual. Quem quer enriquecer que vista a pele do capitalista e concorra lealmente com todos os outros que também querem enriquecer.
Mas não misturem público com alhos e privado com bugalhos. “Menos Estado” nunca foi privatizar o público nem “melhor Estado”, publicizar o privado. Escrever Direito por linhas tortas só a Deus pertence. . .
O elemento mais marcante do salazarismo sempre foi a hipocrisia. Pior: o paradoxo de se fazer um discurso contra a hipocrisia a fim de se fazer ainda mais hipocrisia. Isto é, teorizando-se a necessidade da autenticidade, faz-se o exacto contrário do que se vai proclamando.
E agora tudo se disfarça com as mãos papudas do salamaleque de salão, com a cadeirinha de coiro preto, sacanamente posta para o tolo do gabiru julgar que o assassinato pode ser gratificante. E tudo sempre na solenidade ritual de gabinetes grandiosos, onde a luz esguia dos candelabros, o óleo frio dos quadros épicos e o retorcido das escrivaninhas, nos parece transportar para a delícia cultural dos livros de carneira cheios de bicho, cheirando ao mofo dos inquisidores da treta.
O chefe supremo tem sempre as mãos higienicamente desinfectadas, porque ele apenas é mais um desses honestos que, infelizmente, tem que gerir uma plebe de intermediários desonestos, desde a bufaria dos serviçais que esperam ser promovidos, à minoria dos jagunços violentistas, numa rede que só é eficaz se o vértice continuar a parecer o exacto contrário daquilo que o conjunto é, na realidade.
A rede de dependências e medos vai continuar enquanto não assumirmos que em situações pós-totalitárias e pós-autoritárias, mesmo depois de se eliminarem os aparelhos visíveis da repressão e da corrupção, permanecem os subsistemas de medo e de venalidade que os mesmos geraram.
Pior: abundam os micro-autoritarismos sub-estatais e esses modelos de temor reverencial podem aí ser substancialmente agravados e fomentados, principalmente quando as pequenas e os pequenos chefes do bando actuam em legítima defesa, em épocas de transição ou de crepúsculo.
Neste regime de pequenos feudalismos em que se enreda o oportunismo lusitano, o longo prazo do combate por ideias nunca conseguirá ter qualquer espaço de comunicação com o frenesim do mediático. Os candidatos com mais sucesso, silenciando irreverentes, souberam criar uma espécie de sociedade de Corte, tecendo uma rede de fidelidades e simpatias, tal como ilustres gestores do presente aparelho de Estado subiram ao poder gerindo adequadamente o saco azul, vermelho, preto ou amarelo dos pareceres e avenças.
Por outras palavras, o quintal português da feira das vaidades é estreito demais tanto para a autonomia da sociedade civil como até para efectiva expressão da liberdade de pensamento. Os grandes controleiros deste pequeno “big brother” devem ser, aliás, os primeiros que se riem com os habituais invocadores da chamada teoria da conspiração. E isto porque a estreiteza do nosso espírito capitaleiro produziu uma lógica de campanário na nossa principal aldeia, a que damos o nome de Lisboa.
Quando a política de campanário nos vai fragmentando em facciosismos e pequenas zangas de comadres e compadres, onde não faltam os potentados dos pequenos e velhos padrinhozinhos. Quando o futuro se confunde com cinematográficos regressos ao passado e quase todos se diluem na procissão carneiral dos colectivismos morais, importa reparar que à míngua de pátria é o povo comum que começa a perder a vontade de sorrir.
Quando é a esperança colectiva que vai definhando, face à falta de sentido cívico e ao vazio de justiça, começamos a notar que surge uma sociedade de ouriços cacheiros, onde em vez do individualismo da criatividade pessoal e das boas sociedades de egoístas, começa a marcar ritmo de desespero o “vê se te avias” e a moral do sapateiro de Braga, onde tanto não há moralidade como ninguém come nada.
O próprio discurso sobre o bem comum foi esfacelado e usurpado por vendedores de banha da cobra que o encomendaram aos assessores honestos que recrutaram no mercado do proletariado intelectual. Os tais para quem a moral é uma lei que eles impõem aos outros, mas de que se pensam dispensados pela graça do poder, esquecendo-se que não podem invocar tais normas de autonomia os que são exemplos de falta de autenticidade. E não nos parece que os anunciados candidatos à reflexão presidencial tenham suficientes saudades de futuro para provocarem o urgente acordar deste nebuloso letargo em que nos vamos enrodilhando.
Este profundo estado depressivo em que nos deglutimos nada tem a ver com as tensões do tudo e do seu nada de anteriores crises colectivas, quando a alma colectiva ainda não era pequena e nos entusiasmavam os sonhadores activos. Agora, vive-se uma espécie de definhamento com barriga cheia e luxo à farta, com que vamos alimentando a ilusão de ainda sermos uma comunidade nacional.
A mentalidade típica de certos donos do poder está em que entre a teoria e a prática tudo é teoricamente prático e tudo é praticamente teórico, porque, na prática a teoria é outra. Mas, como pela boca morre o peixe e estamos na terra do sapateiro de Braga e de Frei Tomás, se uns logo observam que ou há moralidade ou comem todos, muitos outros logo reconhecem que bem pregas Frei Tomás.
Enquanto estes pálidos e pretensos taumaturgos continuarem nos pedestais do seu ministerial despotismo, não são possíveis gestos com sentido. Eles prostituíram a palavra e profanaram os símbolos. Pujantes em seu efémero julgam-se donos da eternidade. E se alguns dos que vivem como pensam podem volver-se em agnósticos, muitos outros ainda continuam a semear a esperança dos desesperados.
O proibicionismo caceteiro e a persiganga, só porque assentam nos donos do subsidiável e do inspeccionável e que nem sequer têm que registar interesses e acumulações, podem continuar a inspirar muitas transpirações serôdias, inumeráveis cortes de salamaleques, lisonjas e engraxamentos, mas acabam por contribuir para o nosso fenecer sem honra nem humildade.
O decretino e o mediático podem ter, no curto prazo, a razão da eficácia, mas nem por isso se livram de poderem ser um clamoroso erro no médio prazo e até uma estupidez destrutiva no longo prazo. De boas intenções está o inferno do pseudo-reformismo cheio
Não há meio de compreenderem que a história, mais do que o produto da intenção de certos homens que dizem deter o monopólio das boas intenções, é, sobretudo, o produto da acção dos homens livres. A história é sempre uma co-criação de homens livres e raramente é detida pelo caixilho teórico dos que apenas pensam que pensam.
O dominador sempre conseguiu controlar as esperanças e domar as ilusões, através do magistral uso do chicote e da cenoura, usando apenas o primeiro de forma selectiva, de maneira a liquidar as cabeças que se assumem como alternativas oposicionistas.
A cultura imperial-otomana que nas amarfanha, pintando-se de bom pai tirano, sempre soube manipular de forma magistral o pão e o circo, desde a jantarada à custa do dinheiro do contribuinte, às sucessivas farras e guitarradas, para que a rapaziada se embebede e não cuide da chefia da cidade.
E neste ambiente de acrítico louvaminheirismo continua a ser pecado produzirmos simples farpas que ousem sair da mediania estupidocrática dos produtores de hossanas nas alturas aos contadores de histórias que ocupam as chefias.
Porque ninguém ousa dizer em voz alta, mesmo sem berros, o que todos vão comentando pelo sussurro, sobre a total inutilidade de instituições que, sem ideias, apenas servem de corrimão para gentes viciadas em protagonismos balofos de falso mediatismo, apesar de as cortes se emprenharem em ilusionismos activistas
Ainda há instituições que continuam a ser espaços infradomésticos de falso paternalismo, porque ingloriamente dependentes de certos capatazes e dos respectivos fiéis. E nesse universo de cinzentismo pós-totalitário, quem se assume da oposição quase parece que comete um pecado, porque os donos e senhores da coisa logo dizem que monopolizam o conceito de bem institucional, considerando os divergentes como dissidentes a abater. E assim podem sobreviver, para além do prazo de validade, sistemas imperiais de gestão, marcados pela arendtiana categoria do governo dos espertos, onde se manipula a legalidade, conforme o uso que dela podem fazer os espiões da Razão de Estado. Os quais nem sequer alguma vez compreederam o mínimo denominador comum da civilização do Estado de Direito.
A cultura da dependência, gerada pela estreiteza de vistas do paroquialismo balofo e pelo charlatanismo dos piratas com chapéu de coco, que confundem a palavra com a demagogia, apenas afina o delírio de um carreirismo cobarde.
Os Estados Unidos da Europa e as raízes liberais de um projecto, onde não basta a adesão dos governos, impondo-se o explícito voto dos cidadãos
Ontem, foi derrubado mais um muro na Europa: Polónia, República Checa, Eslováquia, Hungria, Eslovénia, os três Estados bálticos – Letónia, Lituânia e Estónia – e a ilha mediterrânica de Malta alargaram de 15 para 24 países o território europeu livre de controlos nas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas, entre si. Ontem, houve breve sessão no Grémio Lusitano, para apresentação do novo número da revista da ordem, onde se inserem comunicações do 1º Encontro Internacional de Lisboa sobre Religiões, Violência e Razão, onde se inclui uma comunicação da minha autoria, bem como um DVD com o relato integral do congresso.
Logo a seguir, foi inaugurada uma exposição sobre Sebastião Magalhães Lima. E lá viajámos pelo fundo da nossa memória demoliberal. Logo, apeteceu-me recordar que, desta geração, merece destaque Charles Lemonnier que, em 1872, publica um livro intitulado Les États Unis de l’Europe, depressa traduzido para português por Magalhães Lima, em 1874.
Lemonnier, marcado pelas ideias de Saint-Simon, de quem, em 1859, publicara umas obras escolhidas, aparece em 1867 como um dos principais fundadores da Liga Internacional da Paz e da Liberdade. Em 1869 já publica uma memória intitulada Determinar as bases de uma organização federal da Europa.
Segundo Lemmonier, a ideia de Estados Unidos da Europa aparece como a continuação da revolução, não a francesa, mas a europeia de 1789 a 1791. Ele próprio a considera como uma profecia, transformada já, em programa e em fórmula. Coloca o discurso de Victor Hugo de 17 de Julho de 1851 como o momento em que a fórmula entrou na língua política dos Estados, salientando que em três palavras Victor Hugo resumiu Kant.
Para ele, o princípio sobre o qual se baseia a fundação dos Estados Unidos da Europa é o mesmo princípio da republica o qual não é outra coisa do que a aplicação da moral. Contra as dinastias que são por natureza odientas, egoístas, desconfiadas, hostis. Mas para a realização da nossa ideia não é mister destruir as nacionalidades, nem tão pouco enfraquecer o patriotismo. A concepção de uma federação supõe, por si, uma pluralidade de nações e uma diversidade entre os Estados.
No plano prático propõe que se siga o modelo norte-americano como um governo geral europeu, ao qual seria confiada a administração dos interesses gerais e comuns da federação, com uma única organização militar e com uma perfeita união económica, social e política, com livre troca e absoluta liberdade comercial, com nada de direitos aduaneiros, a fim de se propiciar um campo vasto à oferta e à procura.
Mas contrariando a Santa Aliança dos reis que apenas pôde sustentar-se pela força e pela manha, defende que não basta a adesão dos governos. É mister que seja explícito e formal o voto dos cidadãos.
Outros marcos do nosso europeísmo, apeteceu invocar, desde a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da esperança, se procurava pensar enraizadamente do que tem sido Portugal e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado, desejando-se:
Oxalá as honradas cãs do antigo Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado de estranhos, desamparado de todos! Praza a deus que todos, de um impulso, de um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e desconjuntada pátria, – de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa! .
Mas outros portugueses da época foram também pensando a Europa. Solano Constâncio, em 1815, fala-nos do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código comum, o qual, apesar de muitas infracções parciais, formava o direito das gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os princípios salutíferos e protectores da felicidade e da independência das outra nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões .
O Major José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que, entre Maio e Junho de 1823, foi Ministro da Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias, onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso, celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força militar permanente .
E, duas décadas depois de Garrett, Vicente Ferrer de Neto Paiva (1798-1886), na sua Philosophia do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta germânica, proclamando que seria para desejar, que se organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. – a ‘paz perpetua’: o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos, com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta instituição, e que sentem a sua conveniência política .
Continuando esse belo sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa.
Década e meia volvida, chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia, de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa.
Mas, como dizia Manuel Laranjeira, em carta a Miguel de Unamuno: A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha e, sobretudo (…) sem dinheiro. Apesar disso ainda há em Portugal muita nobreza moral.
A nossa ideia de Europa não começou com as conversas de Clara Ferreira Alves com Mário Soares que, como ontem confirmou, foi maçon, mas não gosta de aventais. Antes de haver este PS já havia ideias de república, mesmo entre os monárquicos liberais, já havia ideias de liberdade, já havia propostas para os Estados Unidos da Europa. E homens livres que as professavam, entre os azuis e brancos aos verde rubros. Todos seguiam o monárquico republicano Kant, como também aconteceu com o nosso antimonárquico republicano Magalhães Lima.
Quase todos optariam pelo referendo. Como traduziu o mesmo Magalhães Lima: não basta a adesão dos governos. É mister que seja explícito e formal o voto dos cidadãos.
a Murganheira jorrou pelas gargantas
Hoje, pela madrugada, a Murganheira jorrou pelas gargantas, celebrando o acordo. Mais uma vez, na Europa, ganhou o sim pelo não. O Tratado de Lisboa, que vai além de Maastricht e Nice, quase se aproxima dos Tratados de Paris e de Roma. Se tem o “champagne” da convenção valéria, isso é por homenagem ao maçon Jean Monnet, que era produtor da bebida. E os deuses todos ajudaram. O cenário do Parque das Nações e do Pavilhão Atlântico, com São Pedro e São Martinho a ajudarem, foi perfeito. Portugal ganhou, aqui, à beira Tejo, de olhos postos na partida Atlântico fora. Como Sócrates sintetizou nos “apanhados” da conferência de imprensa, dirigindo-se a Barroso, no abraço final, “porreiro, pá!”. É natural que o nosso primeiro se sinta “um político realizado…” No plano doméstico, é que a realização se vai engasgando. Porque também ganharam Carvalho da Silva, Jerónimo de Sousa e os duzentos mil que se manifestaram na rua, em nome da pluralidade política e social. Estive com os manifestantes e com os artistas da representação instritucional cimeira, deste novo Congresso de Viena, com a sua hierarquia das potências, onde Portugal, gerindo dependências e interdependências, deu provas de estar vivo, como grande potência espiritual, onde, nalguns segmentos, até estamos nos dois primeiros lugares das hierarquias fundacionais. Bem recordo do último trabalho universitário em que cooperei com Barroso e da disciplina que ele sempre insistiu em reger: teoria da decisão em política externa. Agora levou à prática aquilo que sempre ensinou. E, na prática, a teoria não foi outra. Noto a faceta planeamentista de Sócrates e a respectiva teimosia. Quando aplicada em objectivos diversos do semear de micro-autoritarismos subestatais, ela pode ser útil ao país. Aos dois, obrigado! Mas discordo frontalmente da manobra com que alguns pretendem evitar os referendos. Mesmo que concorde com a retórica de Vitorino sobre a não constitucionalidade do tratado reformador, julgo que há promessas que se devem cumprir, por razões substanciais, sem desculpas silogísticas. O povo não pode apenas ir à manifestação da CGTP, tem de ir à urna e que ser mobilizado pela maioria das nossas pluralidades. Por mim, que, na hipótese do outro referendo, logo participei na campanha do “não”, estou, hoje, disponível para ir para o “sim”. Vamos a ele. É a hipótese que temos de dar democracia ao Tratado de Lisboa.