A única coisa que não passa é o que passa sem cessar, o tempo A melhor forma de procurarmos a felicidade está em vivermos como pensamos, sem pensarmos como assim vamos vivendo. Isto é, sem conjugarmos utópicos ou ucrónicos amanhãs que afinal não cantam. Porque talvez seja mais fecundante vivermos cada um dos dias que nos restam como se cada um deles fosse o último. E lá vai crescendo esta minha arca de escritos inúteis, estas palavras que, dia a dia, vou semeando, estas quotidianas peregrinações “ad loca infecta”. Tout s’anéantit, tout périt, tout passe : il n’y a que le monde qui reste, il n’y a que le temps qui dure. [Denis Diderot] Pessoa a pessoa, a sociedade é uma complexa pluralidade de comunitárias pertenças, com muitos vizinhos em sucessivos círculos dialécticos. Aliás, dialogar é pôr em comunicação o logos, o discurso, enquanto sinónimo de razão. Le temps est le rivage de l’esprit ; tout passe devant lui, et nous croyons que c’est lui qui passe [Rivarol] É preciso descobrir que é o “outro” que nos faz “eu”. É o “nós” que nos permite descobrir que é por dentro de cada um que as coisas realmente são. Que só dentro de cada um, no situado trasncendente, há o dever-ser que é. Le temps est une invention du mouvement. Celui qui ne bouge pas ne voit pas le temps passer [Amélie Nothomb]. O tempo é espera, esperança, esfera. A tal espera que nos dá esperança, a eternidade que nos permite aceder a esse armilar a que chamamos cosmos e que todos os dias temos de imitar, para crescermos por dentro. L’espace change, l’univers se dilate, et la seule chose qui ne passe pas, c’est ce qui passe sans cesse, le temps [Jean d'Ormesson]
Monthly Archives: Novembro 2007
Esta coisa de ser vertebrado atrapalha muito num mundo de esqueletos no armário e consciências reduzidas a escória…
Por estas tascas e cafés de bairro, por onde passava o Eduardo Prado Coelho e ainda vagueia António Lobo Antunes, restam dois ou três peregrinos da intelectualidade castífera e capitaleira, com que, de vez em quando, deparo na solidão das mesas, todos lendo pausadamente o jornal “Público”, todos carregando o último livrinho encomendado a Londres ou a Paris, todos olhando o povo que vai aos balcões tomar a biquinha como uma multidão alienígena. Se alguns foram meus conhecidos dos bancos e bares das faculdades, com todos esses fazedores de vanguardas progressistas e reaccionárias, não me apetece conversar nem sequer saudar, até porque não estou minimamente interessado em aceder ao respectivo sindicato das citações mútuas, com os consequentes subsídios em circuito fechado, nomeadamente nos júris clandestinos das selecções avaliadoras. Não faltam sequer os ilustres angariadores de patrocínios para seminários, “workshops” e conferências que, de uísque em punho, vão engenheirando a respectiva caça ao favor, trocando telemóveis da fauna bancária e empresarial que ainda acredita que assim se faz o marketing e a política de imagem. E tal como no anterior sindicato das citações mútuas são os ditos que emitem adjectivações sobre peritos que podem mobilizar para a procissão, sobretudo os que não requerem “cachet”, mas apenas prendinhas da loja dos trezentos. Por mim, prefiro gerir meus pareceres sem cedência a esse grupo de amigos que cordialmente se odeiam, apoiando os que têm mérito, apenas em nome da justiça.
Europa, Sistema Eleitoral e Greve: Faz falta ouvir a malta
Estranhei, ontem e hoje, certos “mails” e mensagens que me davam em directo na RTP2, ontem, e na RTÁfrica e na RTPInternacional, hoje, quando eu continuo em quarentena. Depressa me foi dado concluir que se tratou da transmissão do programa “Entre Nós” da Universidade Aberta, gravado na semana passada. Aqui fica o esclarecimento. Em directo, sobre o tema, apenas estarei no Café Europa da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, mas no dia 6 do próximo mês, assim recupere desta Viradeira. Para continuar certos registos, noto que a Rádio Renascença, do passado dia 27, transmitiu o meu comentário à recente manifestação inequívoca do Bloco Central de interesses, que visa a bipolarização partidária. Também hoje a revista Visão traz comentários meus sobre o ambiente social-sindical, nas vésperas de uma Greve, onde Faz falta ouvir a malta. Registando a comunicação, aqui deixamos a versão integral do nosso depoimento: Na sua opinião, como é que o poder político olha para as manifestações dos trabalhadores? Como «honestas» manifestações de descontentamento? Como manipulações de outros partidos? Como provas de vida dos sindicatos? Com desprezo ou com preocupação? Julgo que o chamado poder político nacional, no contexto da globalização e da integração europeia, já funciona em regime de pilotagem quase automático, dado que a maioria dos factores de poder que consegue gerir já não são intra-nacionais e, mesmo no plano nacional, há uma contabilidade de orçamentações plurianuais e até inter-geracionais. Logo, um qualquer governo sabe, que acima de tudo, tem que gerir dependências ditas internacionais e interdependências globais. As ditas manifestações de trabalhadores não passam de mais uma das pressões que entram na caixa negra daquilo que alguns qualificam como governança sem governo, algo que se contabiliza friamente como mais um incêndio florestal, uma cheia ou uma pequena catástrofe natural. A não ser que dê em tsunami e provoque um curto-circuito no sistema global, coisa pouco previsível, dado que, como Jacques Delors definiu a Europa, ela consegue viver com um terço de excluídos sociais, desde que garanta uma contenção, ou uma pequena melhoria de rendimento dos dois terços do centrão sociológico, dos remediados da classe média baixa que, entre nós, sustentam os partidos do Bloco central que, aliás, também são as secções portuguesas das duas multinacionais partidárias dominantes na Europa (PPE e PSE). – E os media? Dão notícias das manifestações em França, mas por cá, aquela que juntou 200 mil pessoas no Parque das Nações a propósito da cimeira europeia, pouco mais mereceu que uma nota de rodapé. Será uma questão de credibilidade dos sindicatos portugueses? De discurso? Quanto a credibilidade, basta assinalar que o líder da CGTP é mais qualificado academicamente que a maioria dos ministros e dos dirigentes das associações patronais, assim revelando que está prestes a patentear-se uma nova forma de questão social, não prevista por Karl Marx e Álvaro Cunhal, a emergência do proletariado intelectual. Com 65 000 licenciados no desemprego, talvez surjam manifestações de massas das pretensas elites, esses novos clérigos donde podem surgir novos fundamentalismos, provocados por certa ditadura da incompetência na organização do trabalho nacional, na vertente da formação e do sistema educativo. Claro que os sindicatos, agarrados à velha questão social do século XIX, no marxismo ortodoxo do cunha lismo cêgêtêpista, ou à questão social-democrata do relatório Beverigde, fundador do Welfare State do pós-guerra, na versão do Engenheiro Proença, ainda não entraram no século XXI. – O que precisam os sindicatos de fazer para ganhar relevância política em Portugal, como têm em França ou na Alemanha? E para mobilizar os trabalhadores? A embriaguez discursiva dos aproveitadores das velhas lutas de classes não tem permitido inventariar as vítimas da novíssima questão social, esses novos marginais da globalização, da europeização e do chamado desenvolvimento situacionista, os quais são a efectiva realidade deste pretenso paraíso que, sem qualquer espécie de solidariedade, lança no desemprego essa nova forma de escravatura doce. A sociedade que estamos a gerar, para garantir os pretensos direitos adquiridos de cerca de dois terços de instalados, lança as novas gerações no precário da falta de esperança. E porque os privilegiados têm o monopólio da palavra e do reformismo, continuam a música celestial das reformas do sistema de ensino e da luta pela qualificação, pensando que todos os jovens têm que ter o futuro dos “jotas” da partidocracia, dos sete aos setenta anos, que eles empregam como assessores e adjuntos, através da velha encomendação neofeudal da cunhocracia e do clientelismo, sem vergonha. Basta notarmos como começam a surgir pequenas organizações contra o precariado, esses que sabem o que significam palavras como “call center”, estágios, bolsas, recibos verdes e contratos a prazo e que não podem constituir família, ou comprar casa, mas até pagam imposto.
A partidocracia corre o risco de se tornar numa federação entre caciques, locais e regionais, e uma casta de políticos profissionais
Para além do folclore das reivindicações e do apoios, um redivivo rotativismo decidiu entrar em ditadura sistémica, procurando feudalizar, em bipartidarismo, mas sem bipolarização, o monopólio da representação política, numa altura até em que o PS e o PSD são secções nacionais das principais multinacionais partidárias da Europa. Por outras palavras, já não serão precisos mais golpes violentistas de chapelada para que, no futuro, tudo continue como dantes. O anunciado “gentleman’s agreement” do vira o disco e toca o mesmo vem, assim, garantir, através da lei, que todas as futuras mudanças eleitorais serão alternâncias sem possibilidade de alternativa. Belém, naturalmente, lavará as mãos como Pilatos, dado que seria feio aplaudir. Desta forma, os tradicionais “inputs” do sistema político ficam cada vez mais reduzidos ao situacionismo oficial e ao oposicionismo oficioso das duas faces do Bloco Central. As outras forças políticas estão condenadas à residual dimensão de “vozes tribunícias”, cada vez mais prenhes de demagogia, para forçarem o “agenda setting”. Todos vão deixar o campo do dinamismo interventivo aos grupos de pressão das velhas forças vivas, dado que se desiste da mobilização cívica de uma maioria de indiferentes e de abstencionistas. Corremos assim o risco de a chamada sociedade civil perder as pontes de ligação à “black box” do sistema político, onde passa a circular, quase impune, uma classe política bipartidocratizada. E esta ameaça tornar-se numa federação entre caciques, locais e regionais, e uma casta de políticos profissionais, face à qual apenas temos que referendar e plebiscitar as respectivas propostas. Logo, as “eleições”, assim rigorosamente vigiadas, poderão ser limitadas às canalizações representativas de um sistema que parece temer a voz directa dos povos. O ambiente é propício à criação de um “mainstream” que retome os vícios do rotativismo dos monárquicos liberais e da ditadura sistémica do afonsismo durante a Primeira República. Não tardará que o mesmo caia na tentação de condicionar ou punir o dissidente ou de procurar estigmatizar a heresia. Até pode acontecer que os serviços oficiais de espionagem comecem a comunicar, a grupos políticos, a lista dos infiltrados, ou que os partidos dominantes abram uma secção de renovação com blocos de bons desinscritos dos partidos marginais. Aliás, se consultarmos um desses engenheiros de sistemas políticos e eleitorais, ele dir-nos-á, em termos técnicos, que o bipartidarismo é mau para os pequenos e médios partidos, mas que é bom para o sistema, até porque um parlamento ou uma assembleia municipal que fosse uma fotocópia do país, ou da autarquia, conduziria à ingovernabilidade. Por mim, preferiria que os engenheiros sistémicos cedessem lugar aos repúblicos que se preocupam com a crescente falta de participação cívica, para todos tratarmos de reinventar a cidadania. Por isso, continuo do contra!
Eu, abrileiro, me confesso…
Um amigo, da velha esquerda liberdadeira, enviou-me a Carta aos Puros de Vinicius de Moraes, escrita na década de cinquenta do século XX. Olhei-me ao espelho da geração abrileira a que pertenço, onde uma certa esquerda lutava contra uma certa tirania, e uma certa direita contra uma indefinida tirania, ambas coincidindo no estilo. E tudo na complexidade de um processso que foi de antes e de após o 25 de Abril, mesmo quando os irmãos em disputa alinhavam em campos concorrencialmente adversários. Hoje, essas tiranias desvaneceram-se e, consequentemente, as esquerdas e as direitas, que viviam no encantamento das causas, ficaram desempregadas, como se tivessem descoberto a Índia, sem direito a visita à Ilha dos Amores. Porque venceram os tais agentes infra-estruturais do poder banco-burocrático e do totalitarismo doce, assente na vontade de servidão. Aliás muitos dos mais ruidosos abrileiros, armados em saudosistas da revolução perdida, não percebem que os respectivos opositores, também abrileiros, mas do anti-PREC, como eu, são tão ou mais anti-tiranias do que eles. Acresce que qualquer dos filhos e netos desses abrileiros, olhando o retrato mental dos pais, não consegue distinguir tais irmãos-adversários. Tal como eles e todos nós não percebem as oposições que marcavam os almeidistas e os afonsistas, da I República, ou os progressistas e regeneradores, do rotativismo. Obrigado, Paulo, pela lembrança! Lutemos contra o desemprego! Navegar é preciso, sobreviver não é preciso…
A noção de Estado Exíguo não depende do tamanho. Depende da vontade.
Acima de nós, estão cerca de quinze Estados mais pequenos, em termos de dois elementos da massa crítica (população e território). Também mais de uma dezena de entidades políticas que estão acima de nós se integram no bloco que optou por modelos de descentralização, regionalização ou federação. A maioria absoluta dos que nos superam tem tido governações que não obedecem ao gnosticismo socialista e social-democrata, demonstrando como as chamadas direitas e as chamadas esquerdas, mais liberais e mais conservadoras do que deve ser, incluindo estruturas ainda medievais, em termos constitucionais, têm produzido melhores resultados em termos de desenvolvimento humano, com mais justiça e mais felicidade. De boas intenções discursivas, está o inferno progressista cheio… Continua a não ser por acaso que a maioria dos últimos colocados na classificação do PNUD passou por experiências de partido único, de autoritarismo e de totalitarismo, muitos dos quais muito à esquerda, muito socialistas e muito estatistas, vivendo as amarguras pós-autoritárias e pós-totalitárias, em cleptocracia, bandocracia e senhores da guerra. Não será a altura de alguns “gurus” mudarem o discurso, pondo os pés na realidade? A noção de Estado Exíguo não depende do tamanho. Depende da vontade.
Depoimento a Visão
1 – Na sua opinião, como é que o poder político olha para as manifestações dos trabalhadores? Como «honestas» manifestações de descontentamento? Como manipulações de outros partidos? Como provas de vida dos sindicatos? Com desprezo ou com preocupação?
Julgo que o chamado poder político nacional, no contexto da globalização e da integração europeia, já funciona em regime de pilotagem quase automático, dado que a maioria dos factores de poder que consegue gerir já não são intra-nacionais e, mesmo no plano nacional, há uma contabilidade de orçamentações plurianuais e até inter-geracionais. Logo, um qualquer governo sabe, que acima de tudo, tem que gerir dependências ditas internacionais e interdependências globais. As ditas manifestações de trabalhadores não passam de mais uma das pressões que entram na caixa negra daquilo que alguns qualificam como governança sem governo, algo que se contabiliza friamente como mais um incêndio florestal, uma cheia ou uma pequena catástrofe natural. A não ser que dê em tsunami e provoque um curto-circuito no sistema global, coisa pouco previsível, dado que, como Jacques Delors definiu a Europa, ela consegue viver com um terço de excluídos sociais, desde que garanta uma contenção, ou uma pequena melhoria de rendimento dos dois terços do centrão sociológico, dos remediados da classe média baixa que, entre nós, sustentam os partidos do Bloco central que, aliás, também são as secções portuguesas das duas multinacionais partidárias dominantes na Europa (PPE e PSE).
2 – E os media? Dão notícias das manifestações em França, mas por cá, aquela que juntou 200 mil pessoas no Parque das Nações a propósito da cimeira europeia, pouco mais mereceu que uma nota de rodapé. Será uma questão de credibilidade dos sindicatos portugueses? De discurso?
Quanto a credibilidade, basta assinalar que o líder da CGTP é mais qualificado academicamente que a maioria dos ministros e dos dirigentes das associações patronais, assim revelando que está prestes a patentear-se uma nova forma de questão social, não prevista por Karl Marx e Álvaro Cunhal, a emergência do proletariado intelectual. Com 65 000 licenciados no desemprego, talvez surjam manifestações de massas das pretensas elites, esses novos clérigos donde podem surgir novos fundamentalismos, provocados por certa ditadura da incompetência na organização do trabalho nacional, na vertente da formação e do sistema educativo. Claro que os sindicatos, agarrados à velha questão social do século XIX, no marxismo ortodoxo do cunhalismo cêgêtêpista, ou à questão social-democrata do relatório Beverigde, fundador do Welfare State do pós-guerra, na versão do Engenheiro Proença, ainda não entraram no século XXI.
3 – O que precisam os sindicatos de fazer para ganhar relevância política em Portugal, como têm em França ou na Alemanha? E para mobilizar os trabalhadores?
A embriaguez discursiva dos aproveitadores das velhas lutas de classes não tem permitido inventariar as vítimas da novíssima questão social, esses novos marginais da globalização, da europeização e do chamado desenvolvimento situacionista, os quais são a efectiva realidade deste pretenso paraíso que, sem qualquer espécie de solidariedade, lança no desemprego essa nova forma de escravatura doce. A sociedade que estamos a gerar, para garantir os pretensos direitos adquiridos de cerca de dois terços de instalados, lança as novas gerações no precário da falta de esperança. E porque os privilegiados têm o monopólio da palavra e do reformismo, continuam a música celestial das reformas do sistema de ensino e da luta pela qualificação, pensando que todos os jovens têm que ter o futuro dos “jotas” da partidocracia, dos sete aos setenta anos, que eles empregam como assessores e adjuntos, através da velha encomendação neofeudal da cunhocracia e do clientelismo, sem vergonha. Basta notarmos como começam a surgir pequenas organizações contra o precariado, esses que sabem o que significam palavras como “call center”, estágios, bolsas, recibos verdes e contratos a prazo e que não podem constituir família, ou comprar casa, mas até pagam imposto.
Não me parece que desponte uma nova luta de classes
Não me parece que desponte uma nova luta de classes. O que agora temos é uma nova questão social, misturando problemas não resolvidos da velha questão social, que Jerónimo de Sousa ainda traduz no calão da velha luta de classes, com a emergência de uma nova realidade da governança sem governo, que tanto dizemos ser integração europeia como globalização.”. O chamado “Estado Providência”, ou, em termos gerais, a intervenção dos aparelhos de Estado na sociedade e na economia, tanto pode ser a resposta bismarckiana à questão social da segunda metade do século XIX que, em Portugal, foi traduzida pelo Estado Novo salazarento, com meio século de atraso, como o “Welfare State” do pós-guerra, do relatório Beveridge, que começou a ser traduzida entre nós com o marcelismo, pintando-se de vermelho pintasilguista com o PREC e a pós-revolução do Bloco Central, dita Keynesiana.” Marx é um velho subsolo filosófico que a todos nos ilumina, mesmo a liberais como eu e nada tem a ver com as vulgatas neomarxianas do leninismo, do maoísmo. Até o velho Karl se insurgia contra as ideologias de conserva, dizendo que não era marxista. Na prática, a teoria é outra, porque, sobretudo em Estados da nossa dimensão, a maioria dos factores de poder já não são nacionais, e os governos são meras pilotagens automáticas que só podem garantir as independências nacionais se conseguirem gerir dependências e interdependências. Pena é que não reparem na velha lição segundo a qual os problemas económicos só podem resolver-se com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Isto é, só se conseguirem repolitizar os velhos Estados, libertando-se das adiposas gorduras de aparelhos que foram feitos para dar resposta à velha questão social, mas que não admitem que a nova questão social implica a meritocracia e a consequente avaliação das competências, segundo o critério da justiça e não da inveja igualitária.” Ainda bem que Jerónimo de Sousa quer manter intacto o museu do neo-realismo. De outra forma, a UNESCO, em nome da defesa da ecologia, tinha que declarar o PCP como património da humanidade. O cunha lismo ortodoxo e as festas do Avante são como o fado, as peregrinações a Fátima ou as marchas populares de Lisboa. Destruí-los seria atentar contra a nossa identidade profunda. E os comunistas portugueses até agradecem a queda do muro e a implosão da URSS. Agora podem ser mesmo comunistas de sonho.”
O espaço criativo daquilo que continua a ser a universidade
O espaço criativo daquilo que continua a ser a universidade, a dos alunos e dos professores que querem ensinar e aprender, uns com os outros, tem-me absorvido por estes dias, especialmente quando se consegue furar o bloqueio com que as más leis, os péssimos regulamentos e os automáticos burocratas, dia a dia, nos tramam, de forma quase kafkiana. Felizmente, tive a ocasião de poder casar a honra com a inteligência e de assim participar numa iniciativa de alunos que se pratica desde os anos oitenta do século passado, a que eles dão o pomposo nome de Jornadas de Relações Internacionais, onde, como coordenador de um departamento que continuam a proibir, fiz breve discurso de iniciação, pedindo ao regime da bolonhesa que deixe entrar esta invenção como parte das unidades de crédito, dado tratar-se de uma continuidade das velhas sessões quodlibéticas da Idade Média, quando Bolonha não nos vinha de cima para baixo, dos eurocratas para os ministros e dos ministros para os povos. Claro que a minha bolonhesa é outra. Tem mais a ver com um velho aluno da instituição, um tal João Hispano, a que, nós demos o nome de João das Regras, esse constitucionalista que elaborou, pelo discurso, a primeira constituição portuguesa, mais ou menos escrita, a das actas das Cortes de Coimbra de 1385, talvez uma das primeiras perspectivas políticas consensualistas pós-feudais que, sem esforço, podemos equiparar à ideia de democracia, baseada no princípio dito do QOT que, traduzido do tópico latinista, sempre quis dizer: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido. O tal princípio, bem relatado por Fernão Lopes, assente no dever geral de conselho, que obrigou à eleição do rei, contra os pactos de Salvaterra do senhorio de honra, em nome do senhorio natural das velhas franquias nacionais que, entre nós, nunca admitiram o rei morto, rei imposto, quando os reinos não eram monarquias de tradução em calão. Claro que os pretensos bolonheses dos nossos dias têm outra genealogia. Dizem que estão contra o “magister dixit”, mas praticam coisa pior: o “burocrata dixit”. Pior: cedem ao domínio do ninguém (Hannah Arendt) de certo comunismo burocrático (J. P. Oliveira Martins) que assume o gnosticismo das reformas feitas de amanhãs que cantam e continuam essa estratégia lançada pelo veiga-simonismo, que sempre foi a de irmos de decretino reformista em decretino conservador do que está, a caminho da derrocada final da ideia criativa de universidade. Por isso me entusiasmou o pensamento essa possibilidade de uma aula medieval “de quod libet”, sem magistrais lições de sapiência, mas com o peripatético da tópica da Academia de Platão e do Liceu de Aristóteles, que sempre foi dar um passeio à volta de um problema, tirando várias perspectivas da coisa complexa, conforme as concepções do mundo e da vida dos observadores que pensam de forma racional e justa. O problema que ontem debatemos foi o do politicamente correcto e tive a honra de imoderadamente moderar os meus colegas e mestres Saldanha Sanches e Rosado Fernandes, sem que este último assumisse a postura hierarquista de antigo reitor dos outros dois. E lá se foram os fantasmas e preconceitos da direita e da esquerda e lá se destruíram as pretensas barreiras dos palanques das pretensas autoridades que o pensam ser só porque falam de cima para baixo, como actores face a uma audiência passiva. Porque os auditores também passaram a autores e tiveram intervenção.
O país real. A fronteira com Espanha recuou para Setúbal
Nestas conversas de corredor, de que é feita a universidade, discutia há pouco com o meu colega Mora Aliseda sobre as diferenças de desenvolvimento entre o interior de Portugal e o interior de Espanha. Pouco depois, ele mandou-me um mapa, elaborado pelo Professor Doutor João Ferrão que, por acaso, é secretário de Estado do actual governo. Fiquei esclarecido. A azul claro estão as freguesias regressivas, a azul mais escuro, as que estão em coma. Percebi a falta que nos faz um resto de Estado que volte ao lema do rei povoador. E voltei a admitir que deveríamos acabar com a capital, começando pela compressão dos capitaleiros, especialmente dos que continuam a estratégia desenvolvimentista do crescer a caminho do mar sem crescermos por dentro e para dentro. Confirmei que Portugal é uma ilha, sem direito a jangada de pedra. Não tarda que sejamos atirados borda fora. E não há ninguém que declare o estado de emergência? Por mim, preferia a institucionalização de regiões, por razões de salvação pública, e que se apostasse numa estratégia nacional assente em perspectivas rurbanas… Voltei a dar razão a meu mestre Herculano, quando ele denunciava o centralismo como um fideicomisso do absolutismo, mantido no liberalismo e na democracia. Percebi Joaquim Pedro de Oliveira Martins e a sua lei de fomento rural. Entendi Ezequiel de Campos e a sua denúncia sobre a falta de organização do trabalho nacional. Procurei saber se ainda existe um partido de agrocratas, como o defendeu Rodrigo Morais Soares. Dizem-me até que a semente lançada por Gonçalo Ribeiro Teles deu em fados e guitarradas, numa espécie de produção de novas melancias de outra cor, ao serviço do PSL. E meditei nalgumas imaginações. Mudarmos o parlamento para o Porto. A sede do poder judicial para Coimbra. Restaurarmos o reino e o rei povoador, sem o confundirmos com a monarquia. E até me apeteceu propor que minha universidade deixasse de ser UTL e passasse a ser Universidade Técnica de Portugal, com todos os mestres e instalações lá para as bandas de Elvas, mas sem que se repetissem competidores em Lisboa. Cheguei à conclusão que me chamariam louco, por ousar uma espécie de um arquipélago de novas Portugálias, assim à maneira de Brasília, plurais e com diminutivos. Concluí apenas que estou a querer grandeza, incompatível com este Portugalório de bonzos, canhotos e endireitas. Mas não decidi calar.