Imaginemos que, por estes dias, sem prévio aviso da CIA ou do SIS, um comando de extraterrestres aterrava em Lisboa e assassinava todos os conselheiros do presidente, todos os ministros e directores-gerais, todos os parlamentares, todos os membros dos órgãos directivos dos partidos parlamentares, bem como todos os bispos e presidentes de câmara. Seria bem pior do que assassinarem os primeiros cinquenta cientistas, professores, empresários, engenheiros, negociantes, operários, agricultores, artistas e banqueiros. O primeiro assassinato não fazia mal nenhum à república, porque chegaríamos à conclusão que a fachada do governo não é o governo real, dado que apenas nos interessam os que são verdadeiramente produtores, isto é, os sábios, os industriais, os banqueiros, os negociantes e os operários… A parábola que brevemente enumerei já tem barbas. Foi publicada pela primeira vez por Saint-Simon em 1819, quando ainda se acreditava numa organização social que poderia eliminar o ócio, criando-se um grande partido nacional de verdadeiros produtores, embora se admitisse um grupo restrito de padralhada, para que houvesse meia dúzia de pregadores da moral. Assim, as capacidades poderiam substituir o poder e o governo reduzir-se à dimensão de uma simples máquina “chargé d’affaires de la societé” visando a “harmonie uiniverselle”, nomeadamente com um parlamento europeu, desde que se praticasse o “a chacun selon sa capacité, à chaque capacité selon ses oeuvres”, mas também desde que houvesse o “souvenez-vous que pour faire quelque chose de grand, il faut être passioné”. Foi isto que me apeteceu lembrar, depois de assistir a nova manobra propagandista do governo remodelado e da oposição renovada. Até para recordar que o velho Marx, retomando Saint-Simon, veio proclamar o “de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Uma antiquísima tese, já expressa por Aristóteles e pelos juristas romanos, os quais disseram que importava o “honeste vivere” da justiça geral ou social, o “suum cuique tribuere” da justiça distributiva e sempre o “alterum non laedere” da justiça comutativa dos contratos. O problema sempre esteve na circunstância de cada homem nunca se repetir, de sermos todos iguais, mas de haver alguns que são mais iguais do que outros. Ora, sendo a justiça o mesmo que igualdade, ela tem que tratar desigualmente o desigual e medir a diferença segundo um critério constitucional oculto, o padrão que afere das desigualdades. Porque dar a cada um segundo os seus méritos é ir para a meritocracia e dar a cada um segundo as suas obras é proclamar-se que quem não trabalha não come, São Paulo “dixit”. Daí, os diferentes programas ideológicos dos social-istas e dos liberalões que também procuram a justiça, mais em nome dos contratos do que da distribuição dos bens acumulados no erário, dizendo que a intervenção da caixa geral de recolha dos impostos deve ser apenas supletiva, em nome do princípio da subsidiariedade. Como não chegámos ao fim da história, haverá ainda discussões programáticas nos próximos séculos, pelo que acho mais curiosa a parábola de Saint-Simon misturada com o “mandarim” do Eça. Proponho, portanto, que cada um dos cidadãos portugueses imagine que pode carregar num botão e fazer desaparecer quinhentos dos hierarcas inúteis que nos consomem o imposto. Façamos este exercício académico, apenas para concluirmos como seria útil extinguirmos grande parte dos aparelhos e dos ocupantes dos mesmos, os tais donos do poder que nos consomem até com discursos de música celestial. Ou então sugerir à governação e à classe política que façam greve. Descobriríamos que vivemos em governança sem governo e que a pilotagem automática nos conduziria à realidade. É perfeitamente inútil tirar este e colocar lá aquele, acolitado pelo outro. Prefiro recordar que o péssimo regime que temos é o único onde não houve assassinatos do terrorismo de Estado ou do contraterrorismo subsequente. Acho que a rainha Dona Maria Pia é que teve razão quando optou pela loucura de sempre dizer o que pensava…
Monthly Archives: Janeiro 2008
Partido dos becas
Dois anos depois do facto consumado, o Tribunal Constitucional veio confirmar que, à excepção de Garcia Pereira, nenhum dos candidatos presidenciais, incluindo o eleito, cumpriu a lei. Não consta que algum deles tenha sugerido aos partidos apoiantes uma simples tentativa de aproximação do direito eleitoral da vida, procurando mais autenticidade naquilo a que os mesmos agentes do principado se vincularam. Num Estado de Direito, o príncipe está sujeito à própria lei que faz e nem tudo o que príncipe diz tem valor de lei. O povão vai ouvindo e confundindo essas irregularidades com o apito dourado, ou com a impunidade face à corrupção, hoje denunciada pelo novo bastonário da Ordem dos Advogados, onde prometeu apresentar, dentro em breve, casos concretos de pessoas em cargos de destaque nos órgãos de poder. Vale-nos que somos definitivamente um país de escritos e escritores, sobretudo quando, também hoje se confirma que publicamos 12 500 livros por ano, mais de mil por mês, mais de três dezenas por dia, quase cinco por cada hora de trabalho, isto é, em cada quarto de hora sai um livro do prelo… Mas voltando ao bastonário, o mesmo também decidiu partir a loiça no velho partido dos becas, isto é, dos formados, licenciados ou titulados num qualquer ciclo de direito, atacando as fábricas institucionais que lhes dão canudo e que têm direito a um órgão de soberania próprio. Marinho fala em negócio que dá milhões a muita gente, insurgindo-se, em particular, contra os catedráticos e outros professores de direito, pelo exagerado número de alunos que têm nas respectivas faculdades, porque se instalam nas cátedras e criam um exército de servidores, com gastos escandalosos e vontade de controlar a Ordem. Contactado, o senhor ministro da ciência e das universidades, acusado de representante de tais corporações no governo, emitiu comunicado, onde, lavando as mãos como Pilatos, declarou que nunca recebeu reclamação do bastonário. Ficámos esclarecidos. O bastonário anarquista, porque saudoso de várias ordens perdidas, veio assim, muito corporativamente, introduzir a desordem num dos clássicos segmentos do nosso permanecente corporativismo, reclamando o regresso ao desespero do “numerus clausus”. Muito democraticamente, tratou de denunciar os lucros cessantes e os danos emergentes dademocratização do ensino, na sua vertente de reino da quantidade. Espero que os conselhos directivos, científicos e pedagógicos das escolas de direito, públicas, privadas e concordatárias, inspirados pela táctica do senhor ministro, não façam como a avestruz e metam a cabeça na poeira dos códigos, nas regras de Bolonha e nas leis que apelam para o autofinanciamento das escolas. Já agora, será que alguém, que foi convidado a sair das universidades públicas e privadas portuguesas, por manifesto plágio de dezenas e dezenas de páginas numa dissertação de doutoramento, pode agora exercer o título obtido em Espanha e aqui apenas registado, contribuindo para essas fábricas denunciadas por Marinho Pinto? Eu descobri um deles, noutro dia, ao consultar a Internet… apenas espero que não vá para secretário de Estado das universidades, até porque o partido onde milita ocupa o governo de Portugal. Se houvesse por aí uma qualquer mentalidade liberalmente pública, talvez alguém pudesse sugerir que as escolas de direito passassem mesmo a pessoas colectivas públicas, verdadeiramente corporativas. O governo largava-as das reitorias e dos ministérios e dava-lhes um estatuto equivalente ao da Ordem dos Advogados. O Estado ficava com a maioria das quotas, passando as outras para os advogados, magistrados e antigos licenciados, fazendo interferir, nos actos de avaliação dos alunos, magistrados judiciais, como outrora acontecia. Julgo que esta privatização por corporações, seria passível de revestir uma forma especial de fundação, onde as principais receitas até podiam vir da indústria dos pareceres. Para culminar o processo, também sugiro que se realize uma espécie de concordata entre o principado e estes novos clérigos do neocorporativismo…
Como o totalitarismo doce desta democratura vai lançando as suas teias de medo
A nossa independência é cada vez mais uma gestão de dependências, não apenas no contexto da hierarquia das potências, mas, sobretudo, na flexibilidade que temos de usar face a uma reviravolta nos investimentos de uma ou outra rede de firmas transnacionais. Quando a Autoeuropa tem a dimensão que é confirmada pelas estatísticas, podemos, sem dificuldade, compreender que quem manda em Portugal é quem sabe das reais boas intenções de certos potenciais grandes investimentos que aqui podem aterrar. Sobretudo, quando o interior está desertificado e despovoado e os aparelhos definidores da estratégia nacional não parecem ter em linha de conta essa grande vulnerabilidade. Com efeito, os grandes consultores do nosso desenvolvimentismo pós-revolucionário, entre as lições de estratégia do saudoso comandante Virgílio de Carvalho e as grandes opções dos planos e de Valente de Oliveira e Ernâni Lopes, a que chamaram integração europeia, ainda não fizeram aquele crescimento interior que nos devia recordar a política de D. Sancho I, sem que se caia no habitual folclore do ecologismo e do regionalismo, mal digeridos. Por outras palavras, a culpa está numa estratégia que teve consequências negativas para o entendimento da pátria como um todo de terra e de gente. Agora, estamos dependentes do rebentar da bolha da especulação imobiliária, na precisa altura em que a maioria das famílias se entregou às hipotecas bancárias, por causa da casita que compraram e que pensavam ser um investimento seguro. E a coisa é mais cultural do que económica, embora a prometida lei das rendas facilitasse as opções. Daí que continuemos em contraciclo mental face aos nossos parceiros que mais crescem para cima por dentro, onde os lucros da banca são directamente proporcionais ao endividamento dos indivíduos, propiciando o alastrar do negocismo e dos caloteiros.
De boas intenções higienistas, está o inferno da nossa história cheio..
Julgo que os nossos bem intencionados inquisidores do tal Estado Higienista devem compreender que os bons fins não conseguem remendar os péssimos meios de legiferação que têm de utilizar. Porque a lei proibitiva vigente não obedece aos mínimos de generalidade e abstracção e até parece admitir a analogia em matéria penal, gerando, ao mesmo tempo, uma espécie de direito de segunda ordem, onde as dúvidas e casos omissos parecem poder ser resolvidos por circulares de directores-gerais e inspectores-superiores, eventualmente acordados por pactos e protocolos neofeudais, estabelecidos com associações ditas representativas das chamadas forças vivas, como tal reconhecidas por um burocrata-mor. O espectáculo deu uma péssima imagem tanto dos defensores do Estado de Direito como até de alguns liberais, só porque uma carunchosa legiferação até permite que possa florescer a indústria privada da parecerística, levada a cabo por servidores públicos, em regime de acumulação, coisa que apenas é escandalosa quando se trata de engenheiros autárquicos. Assim se confirmou como, apesar de sermos todos iguais, há alguns que são mais iguais do que outros. Porque a justiça deixou de corresponder ao clássico tratar desigualmente o desigual, ao tal exigir de cada um conforme as suas possibilidades, para que a república possa dar a cada um conforme os seus méritos e, subsidiariamente, conforme as suas necessidades. Por outras palavras, estou a traduzir palavras de Aristóteles e São Tomás de Aquino, repetidas por Karl Marx e que um qualquer Adam Smith subscreveria. Nenhum deles admitiria que uma lei urgente caísse na ratoeira de dar a imagem de estar ao serviço da justa reivindicação tecnocrática dos engenheiros do ar condicionado, isto é, aos únicos que podem refazer todos os sistemas de extracção do ar de todos os prédios existentes em Portugal. Tal como um simples director-geral não pode cair na tentação de ter o privilégio da interpretação autêntica da letra e do espírito de uma lei da República, invocando leis de outros país ou directivas comunitárias, para mandar a ASAE proibir ou permitir o mais comum dos actos dos viciados em tabaco, que podem ser vinte por cento dos cidadãos. De boas intenções está o inferno da nossa história cheio, quando se diz que os meios justificam os fins, desde o enterramento em cemitérios, com Costa Cabral a promover a Maria da Fonte, a Ricardo Jorge a ser expulso do Porto, por causa da peste bubónica. Só ganhou a guerra à Cola Cola, porque estávamos em Ditadura… Por outras palavras, refaçam a lei, senhores deputados! Não permitam que o nosso DGS continue a passar as presentes passas do Algarve, só porque quer cumprir o seu dever. Porque não tardará que muitos tratem de reler as memórias de Zita Seabra para compararem métodos celulares de militância com modelos de serviço público, assumidos pelo mesmo estilo e o mesmo actor…
Do ministro da justiça
A ministerial figura que pousa na pasta da justiça veio dizer que Portugal não é uma república de procuradores-gerais adjuntos. Tal como a que se chama da economia poderá, depois, declarar que não somos uma república de mercadores. A que nos trata da saúde, que não somos uma república de boticários. A que gere as finanças, que também não somos uma república de banqueiros. Acresce que o primeiro-ministro gostaria que o governo não fosse uma confederação de ministérios, onde cada ministério fosse mais do que uma federação de direcções-gerais, assentes em partidos, feitos ajuntamentos de boys à procura de jobs através de cunhas, pressões e grupos de interesse. Talvez fosse melhor que voltássemos a ser uma simples república, à maneira de Cícero, isto é, uma harmonia entre a liberdade, a autoridade e o poder, onde a libertas deve estar na participação directa do povo na decisão política, a auctoritas, nos órgãos que conservam a memória da fundação da cidade e detêm o poder legislativo, e a potestas, no poder executivo da governança. Seria mais sensato recordarmos os primeiros escritos sobre política, pensados e escritos em português, os do Infante D. Pedro, quando este já considerava que o dominium politicum não tem a mesma natureza dodominium servile. O primeiro tem a ver com a república, o segundo com o dono. Porque nós inventámos a política para deixarmos de ter um dono. Aliás, ele já visionava a comunidade política como uma espécie de concelho em ponto grande, proclamando deverem os príncipes promover o bem comum, dado que por esto lhe outorgou deos o regimento, e os homees conssentiron que sobrelles fossem senhores. Salientava que, então, já não se vivia no soingamento do dominium servile, tendo algo da liberdade do dominium politicum, daquele que institui o aliquod regitivum, que não nasce do pecado original, mas é outorgado ao rei pelo consentimento dos homens. Porque já éramos república antes de haver republicanos e monárquicos, e de os monárquicos, feitos bobos de uma corte que não há, fazerem política de imagem com adesivos republicanos e viracasacas monárquicos, esses ecléticos que variam conforme as conveniências e detestam todos os monárquicos que, antes de o serem, já eram republicanos, só porque aqueles caquéticos do costume confundem a monarquia com a tirania, ou o mais doméstico despotismo, mesmo que seja o da teocrática mistura do trono e do altar, ou da mesa do orçamento e do mecenato, benzida pela sacristia do mais do mesmo.