Fev 21

Todos continuamos enredados no neofeudalismo absolutista da engenharia das cunhas, da subsidiocracia, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo

Em momentos de decadência, há certos dias em que sentimos, na pele, os riscos vingativos de certa canalha de unhas aduncas que subocupou os interstícios do poder dito democrático, confirmando como continua a mentalidade da persiganga, mesmo quando a facada é comandada a partir dos sofás de coiro dos altos gabinetes. Os descendentes dos moscas, dos formigas e dos bufos continuam a não compreender que o poder dos sem poder, o tal que alimenta a saudável desobediência individual e que há-de sublimar-se em resistência, não é passível de distribuição de cima para baixo. O poder antipoder, do cidadão contra os poderes, apenas se vai semeando, de centro a centro, de consciência a consciência, através da permanente corrente da libertação, daqueles que acreditam que o desenvolvimento impõe que se cresça não apenas pela estatística, mas sobretudo que se cresça para cima e por dentro. Ainda ontem, em dia em que circunstâncias da vida pessoal e familiar me obrigaram a não poder comparecer num acto público, tive que recordar que, aqui e agora, não há o maniqueísmo do público contra o privado, que alguns traduzem como conflito entre liberais e socialistas, mas antes, as águas pantanosas da chamadaeconomia mística, daqueles que seguem o dito de Ramada Curto, segundo o qual gostamos de nacionalizar os prejuízos e de privatizar os lucros. O acórdão do Tribunal Constitucional condenatório da Somague e do PSD permitiu que se iluminasse uma zona da nossa vida pública que, há mais de um quarto de século, permanecia na clandestinidade, enrodilhando a democracia em zonas pouco transparentes, onde, por trás das cortinas, circula o caciquismo, o pato-bravismo, os autarquinhas, os politiqueiros partidocratas e até os futebolíticos. Aliás, só recentemente se começaram a ver as pontas do “iceberg” do enredo da mulher de César. É evidente que a democracia que temos é um péssimo regime político, mas o menos mau de todos os que, até agora, tivemos. Daí podermos dizer que todos os líderes, históricos ou presentes, do PS, do PSD e do CDS, os tais partidos “catch all” que regem o nosso centrão, todos esses líderes donde nos vem a reserva de recrutamento dos primeiros-ministros, dos ministros, dos presidentes da república e dos deputados, todos eles, para poderem ascender dentro da máquina partidária, ou por entre os corredores e gabinetes da luta interna pelo poder, tiveram que fazer pactos com o diabinho dos caciqueiros, ficando, posteriormente, condicionados. Assim, todos ficámos enredados no neofeudalismo da engenharia das cunhas , da subsidiocracia, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo. A partir desta infra-estrutura mental, gerou-se uma rede de pactos de silêncio e de cumplicidade que nenhum jornalismo de investigação pode descobrir, até porque quase ninguém consegue descodificar as vastas empresas ditas de consultadoria e de “outsourcing”, ou os mecanismos da parecerística. Uma “network” que, depois, se refinou pela engenharia da alta finança e das sociedades inter-estaduais de tráfego de influências, tornando-se transnacional e diluindo-se em mais vastas formas da tradicional pirataria global dos colarinhos brancos e dos “yuppies”, onde até D. Sebastião e os seus pretensos teóricos só anseiam pela prebenda da sociedade de casino. Estes caldos de cultura, que partiram do velho caciquismo de regeneradores e progressistas, e, depois, passaram ao “adesivo” do republicanismo e ao “virasacas” do salazarismo, chegaram, mais recentemente, à modernidade da integração europeia e da globalização, gerando o verdadeiro estado a que chegámos. O tal que não é de esquerda nem de direita, nem socialista nem social-democrata, nem democrata-cristão nem conservador, nem republicano nem monárquico, nem miguelista nem pedrista, nem salazarento nem abrileiro, mas mero efeito da própria cultura de mestre-escola do tal senhor director que não passa de um tiranete vingativo, à maneira do intendente policiesco da Viradeira, alimentado por relatórios de espiões de costumes e de pretensas traições à barriguinha dos interesses que usurpa o nome de pátria. É toda uma sucessão de chefes e subchefes de um micro-autoritarismo sub-estatal que enxertaram a incompetência no corno de cabra politiqueira, disfarçando-os em adornos tecnocráticos com que vão pintalgando a aparente modernidade tecnológica. Contudo, os tiranetes não passam de analfabetos funcionais que nada sabem do “hardware”, que mandam comprar, e do “software”, que contratualizam a recibos verdes. Mas gostam de ser fotografados ao lado de um écran de PDA, com que confundem o promontório dos séculos. Muitos deles irão, depois da inevitável queda da cadeira, ser revelados, em seus pés de barro, na barra de um tribunal, talvez por causa de um qualquer negócio de intendência e economato, mas, por enquanto, continuam a comandar o aparelhismo típico dos sargentos verbeteiros e ainda esperam que os chamem para as alturas gabinetais da mesa do orçamento, ou para o sucedâneo de um lugar de administrador, por cunha  do Estado, numa qualquer empresa de economia mística. Nenhuma dessa gentalha gosta da cultura do antes quebrar que torcer, da lusitana antiga liberdade, e por isso, contra a autenticidade da cidadania, o poder nu, das instituições sem ideia de obra, manifestações de comunhão entre os seus membros e total desrespeito das regras do Estado de Direito, continua a mobilizar toda a herança do inquisitorialismo, com a permanecente procissão dos bufos que sonham, todos os dias, com os autos de fé da terra e dos corpos queimados…

Fev 21

Em nome de mestre Rousseau

Muitos dos que vivem da facturação protectiva desta anarquia ordenada, em nome de um securitário de pronto-a-vestir, estão agora a dizer que a democracia corre o risco de ficar dependente da vontade das maiorias, atirando a culpa para o velho Jean-Jacques, conforme rezam algumas vulgatas contra-revolucionárias, as dos tradicionais inimigos da mesma democracia. Por mim, admirador incontido de Rousseau e do seu “Contrato Social”, uma das maravilhas da teoria política, resta-me reler as interpretações que dele fazem um Eric Weil, reconciliando-o com Hegel, ou um Karl Deutsch, que o faz conjugar com Kant. Até em Portugal, o nosso melhor teórico da democracia do século XX, António Sérgio, retomando a senda, não deixou de assinalar a enorme diferença que vai da quantitativa “vontade de todos”, quando todos decidem motivados pelo interesse de cada um, à sagrada “vontade geral”, a única verdadeiramente soberana, quando cada um, ascendendo ao próprio todo, através de uma conversão cívica, abdica dos seus próprios interesses, transformando a sua própria conduta num exemplo moral, numa máxima universal, naquilo que Kant, o verdadeiro discípulo de Rousseau, vai qualificar como o imperativo categórico. Por outras palavras, a verdadeira democracia só existe quando, através da liberdade do indivíduo, este lhe dá as raízes morais da sua própria autonomia. Logo, não há democracia sem esse esforço de cada um dar regras a si mesmo, no sentido de procura da perfeição e da consequente compreensão da coisa pública como um “moi commun”. É dessa sucessão de decisões individuais, onde cada um se assume como o próprio todo, que nasce a norma fundamental das comunidades políticas democráticas, casando-se o impulso liberdadeiro com o profundíssimo sentido da igualdade, através daquela comunhão identitária que é exigida pela virtude da fraternidade. Sempre foi este o sonho girondino que o activismo minoritário de certos jacobinos procurou dissipar com o curto-circuito do terror e, depois, com a usurpação bonapartista. Pelo menos, até Alexis de Tocqueville. Foi esta a revolução francesa que triunfou a partir de 1815 com a moderação cartista da balança de podres, ou com a Revolução de Julho de 1830, quando a racionalidade liberal se casou definitivamente com a procura maioritária da igualdade. E mais não dizem os mais recentes consensos das democracias pluralistas, entre a ploiarquia, o sufrágio universal e o Estado de Direito, conforme também subscreveram um John Rawls ou um Habermas, já depois da queda do Muro. Isto é, a democracia há muito que é demoliberal, com séculos de experimentação e de conciliação da revolução atlântica com velhos contraditores, como o foram, a partir de 1848, o socialismo e a democracia cristã. E como o poderão ser ex-comunistas e ex-fascistas, se tiverem a humildade de, para tanto, contribuírem. Não haverá democracia como valor universal se não reinterpretarmos o sentido regulativo do contrato social de Rousseau, à boa maneira da procura do melhor regime (politeia) de Platão, ou da ideia romana de república, segundo o ritmo de Cícero. Foi o que semeou São Tomás de Aquino, até que Leão XIII emitiu a “Rerum Novarum”, mas em 15 de Maio de 1891. Julgo que pode ser essa a linha de novas coisas novas que os choques de rua na Tunísia e no Egipto acabem por desencadear. A um alargamento da base de consenso universal da democracia. Sem exclusão do Islão. Ai de nós se pedirmos ao mundo islâmico uma mera tradução em calão desse valor universal. Daí a minha esperança, porque a melhor forma de dialogarmos com os nossos vizinhos da outra margem do velho mar interior, mediterrâneo, talvez passe por nos expatriarmos nas nossas próprias origens, procurando os lugares comuns donde brotámos. E aí, Platão e Aristóteles, tal como Maimónides e Averróis, poderão voltar a ser pontes para que conjuguemos deuses comuns. Como já o fizeram os construtores do Estado de Israel. Como o Mahatma aplicou na Índia, através de Tolstoi. E como Confúcio está recuperando na China. Basta registar a via da actual Indonésia, ou o percurso da Turquia. Porque todas as civilizações universais são filosoficamente contemporâneas no intemporal, todas têm as mesmas raízes do político e todas podem encontrar experimentações similares, em termos de mais liberdade, mais igualdade e mais fraternidade. Se houver homens de boa vontade que admitam o regresso dos deuses do espírito às nossas cidades antigas, pode voltar a ser conjugado o velho princípio tomista do QOT, adoptado pelas Cortes de Coimbra em 1385: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido.