Fev 25

Quando o poder ameaça destruir a independência do saber e os professores correm o risco de extinção

O melhor das elites situacionistas não é chamado para a selecção nacional do governo, tal como o melhor das elites históricas do PS e da esquerda humanista se passou para a oposição, ao estilo de António Barreto, enquanto outros preferem os blogues ou a última fila do parlamento. Quando a nobreza deixa de cumprir a sua função e passa a bola aos filhos de algo, assim se confirmando a necessidade de estudarmos a genealogia das oligarquias, dos padrinhos e das famílias que nos levaram ao estado a que chegámos. Com efeito, na revisão do meu último trabalho, quase no prelo, tive que confrontar algumas biografias de parlamentares lusitanos, aproveitando a feira de descontos da livraria parlamentar. Comprei, por um euro apenas, uma das mais recentes recolhas das “Biografias dos Deputados” e, passando os olhos pelas ditas, apenas confirmei que cerca de noventa por cento da fauna nem sequer ficará a nível das notas de pé de página da história, mesmo que alguns se esforcem por transformar os “curricula” no tradicional doutorismo das boas intenções. Até encontrei um que tem como habilitações literárias, há mais de duas décadas, um “doutoramento em… (em realização)”, para não falar nos que dizem que são “professores”, sem nunca terem dado uma aula nos últimos trinta anos, só porque não têm a coragem de assumir que são “políticos profissionais”. Nada de estranhar. Confrontando os dados com as equivalentes biografias do século XIX e do século XX, feitas realmente por jovens assistentes, exageradamente fichadas pelo recurso aos enciclopedismos do “quem é quem”, com muita cedência às autocontemplações curriculares dos biografados e ao sindicato de citações mútuas dos biografantes oficiosos e subsidiados, onde, algumas vezes, se confundem as produções literárias e científicas dos filhos com as dos pais, só porque têm o mesmo nome, ao contrário do que fazia o beneditino Inocêncio, que nunca deixaria de fora dos registos coisas como os “Aphorismos” de Alberto Morais de Carvalho, cheguei à conclusão que mantemos alguns dos defeitos típicos da falta de seleccionadores de elites, incluindo nas biografias sistémicas dos gestores das escolas de regime. Tal como ontem, a presente democracia não consegue dar o salto para a meritocracia e para a consequente organização do trabalho nacional. Porque a incompetência vem do mau exemplo dos que estão em cima, nos lugares de distribuição do poder, incluindo as verbas para a investigação científica e as academias estadualizadas. E quando os hierarcas do estadão caem na tentação de confundir o poder com o saber, pode acontecer-nos até a destruição dos bons fragmentos de ensino, de investigação e de educação que ainda resistiam. Basta reparar como a universidade pública, marcada pela positivista “révolution d’en haut”, parece sucumbir ao politiqueirismo, sob o nome de avaliação e reforma, onde os avaliadores e reformadores são nomeados pela mesma fauna que escolhe os distribuidores dos subsídios, ou os amigalhaços que podem fazer registos de “curricula”. Verifico, infelizmente, que o mesmo método vérmico ameaça agora os professores dos ensinos pré-universitários, suceptíveis de liquidação pela formidável e kafkiana mentalidade dos “pracistas” que se alimentam do regime de classificação de serviço na administração pública hierarquizada, em “outsourcing”. Onde também ninguém avalia os avaliadores e reformadores, chegando, por exemplo, à conclusão que só pode ser avaliada uma peça da máquina se for possível avaliar a máquina, o engenheiro que a concebeu, o capataz que a controla ou o feitor que lhe dá combustível. O “big brother” do pensamento único ameaça, agora, confundir o saber com o poder e destruir as últimas ilhas que nos permitiam avaliar o mérito, com aquela profunda justiça que sempre foi tratar o desigual desigualmente. Ao fazerem entrar no sistema normalizado da decadência um dos últimos lugares onde se podia cultivar o centro excêntrico da descoberta dos criativos, pode acabar de vez o culto da imaginação ao poder, mesmo que seja o poder dos sem poder, a que, desde sempre se chama autoridade, a tal que vem deautor, e não de mero actor ou de simples auditor, com que, por vezes, confundimos os totais responsáveis pela assinatura dos inestéticos projectos de obras que nos vão desfeando. Não tarda que um qualquer senhor director de escola, ou de universidade, receba cunhas  da tia da prima da antiga sopeira, metendo influências e pressões por um qualquer sobrinho e criticando o eventual rigor de justiça deste ou daquele professor, para que o quinzinho, esse filho de algo, possa enquadrar mais um lista dos “yesmen” deputáveis da nossa praça. E eu a pensar que a última cena desse género a que assisti foi numa dita universidade privada, plena de passarinhos, quando o padreca administrador entrou em plena prova oral, para dizer ao examinador que tratasse bem daquela menina. Para não falar de outra, ainda mais privadíssima, onde um genial aluno foi chumbado numa prova escrita só porque sabia mais do que o dito professor que o avaliava… Quem julgar que a história real dos dias que passam anda longe desta ficção feita de circunstâncias bem efectivas, basta ver, ouvir ou ler, como eu, testemunhos fidedignos, daqueles que nenhum processo de investigação judicial sobre a corrupção consegue registar, mas que, também de vez em quando, levam a que ministros tenham que se demitir, só porque o facto real passou a notícia de jornal e fez com que a vergonha enlameasse aquele que diz que “l’État c’est moi”.