Em nome de mestre Rousseau

Muitos dos que vivem da facturação protectiva desta anarquia ordenada, em nome de um securitário de pronto-a-vestir, estão agora a dizer que a democracia corre o risco de ficar dependente da vontade das maiorias, atirando a culpa para o velho Jean-Jacques, conforme rezam algumas vulgatas contra-revolucionárias, as dos tradicionais inimigos da mesma democracia. Por mim, admirador incontido de Rousseau e do seu “Contrato Social”, uma das maravilhas da teoria política, resta-me reler as interpretações que dele fazem um Eric Weil, reconciliando-o com Hegel, ou um Karl Deutsch, que o faz conjugar com Kant. Até em Portugal, o nosso melhor teórico da democracia do século XX, António Sérgio, retomando a senda, não deixou de assinalar a enorme diferença que vai da quantitativa “vontade de todos”, quando todos decidem motivados pelo interesse de cada um, à sagrada “vontade geral”, a única verdadeiramente soberana, quando cada um, ascendendo ao próprio todo, através de uma conversão cívica, abdica dos seus próprios interesses, transformando a sua própria conduta num exemplo moral, numa máxima universal, naquilo que Kant, o verdadeiro discípulo de Rousseau, vai qualificar como o imperativo categórico. Por outras palavras, a verdadeira democracia só existe quando, através da liberdade do indivíduo, este lhe dá as raízes morais da sua própria autonomia. Logo, não há democracia sem esse esforço de cada um dar regras a si mesmo, no sentido de procura da perfeição e da consequente compreensão da coisa pública como um “moi commun”. É dessa sucessão de decisões individuais, onde cada um se assume como o próprio todo, que nasce a norma fundamental das comunidades políticas democráticas, casando-se o impulso liberdadeiro com o profundíssimo sentido da igualdade, através daquela comunhão identitária que é exigida pela virtude da fraternidade. Sempre foi este o sonho girondino que o activismo minoritário de certos jacobinos procurou dissipar com o curto-circuito do terror e, depois, com a usurpação bonapartista. Pelo menos, até Alexis de Tocqueville. Foi esta a revolução francesa que triunfou a partir de 1815 com a moderação cartista da balança de podres, ou com a Revolução de Julho de 1830, quando a racionalidade liberal se casou definitivamente com a procura maioritária da igualdade. E mais não dizem os mais recentes consensos das democracias pluralistas, entre a ploiarquia, o sufrágio universal e o Estado de Direito, conforme também subscreveram um John Rawls ou um Habermas, já depois da queda do Muro. Isto é, a democracia há muito que é demoliberal, com séculos de experimentação e de conciliação da revolução atlântica com velhos contraditores, como o foram, a partir de 1848, o socialismo e a democracia cristã. E como o poderão ser ex-comunistas e ex-fascistas, se tiverem a humildade de, para tanto, contribuírem. Não haverá democracia como valor universal se não reinterpretarmos o sentido regulativo do contrato social de Rousseau, à boa maneira da procura do melhor regime (politeia) de Platão, ou da ideia romana de república, segundo o ritmo de Cícero. Foi o que semeou São Tomás de Aquino, até que Leão XIII emitiu a “Rerum Novarum”, mas em 15 de Maio de 1891. Julgo que pode ser essa a linha de novas coisas novas que os choques de rua na Tunísia e no Egipto acabem por desencadear. A um alargamento da base de consenso universal da democracia. Sem exclusão do Islão. Ai de nós se pedirmos ao mundo islâmico uma mera tradução em calão desse valor universal. Daí a minha esperança, porque a melhor forma de dialogarmos com os nossos vizinhos da outra margem do velho mar interior, mediterrâneo, talvez passe por nos expatriarmos nas nossas próprias origens, procurando os lugares comuns donde brotámos. E aí, Platão e Aristóteles, tal como Maimónides e Averróis, poderão voltar a ser pontes para que conjuguemos deuses comuns. Como já o fizeram os construtores do Estado de Israel. Como o Mahatma aplicou na Índia, através de Tolstoi. E como Confúcio está recuperando na China. Basta registar a via da actual Indonésia, ou o percurso da Turquia. Porque todas as civilizações universais são filosoficamente contemporâneas no intemporal, todas têm as mesmas raízes do político e todas podem encontrar experimentações similares, em termos de mais liberdade, mais igualdade e mais fraternidade. Se houver homens de boa vontade que admitam o regresso dos deuses do espírito às nossas cidades antigas, pode voltar a ser conjugado o velho princípio tomista do QOT, adoptado pelas Cortes de Coimbra em 1385: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido.

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