Jun 04

Entre Ronaldos, Mourinhos, greve do pescado e a calma do lago Neuchâtel

Em comunicado, o Tribunal de Contas revela que “foi detectada despesa pública irregular nas auditorias realizadas acima de 800 milhões de euros, nos vários níveis da Administração – Central, Regional e Local”. A habitual hermenêutica dos comentadores oficiosos deve ter achado a matéria abstracta demais. Prefere lucubrar sobre o comício da nova esquerda, logo à noitinha. Ou silenciar a reportagem da TVI sobre o SIRESP, a que não compareceram António Costa nem Santana Lopes. O primeiro acaba de ser convocado para as alturas do Clube de Bilderberg, ao lado de Rui, onde sucedem tanto a Sócrates como a Santana e onde nunca foi Manuela Ferreira Leite.

O país está mais preocupado com a greve do pescado e as margens do Neuchâtel, entusiasma-se com Mourinho no Inter e entrou em maluqueira decisional, a caminho das legislativas do próximo ano. Peguntam-me sobre o que muda com Ferreira Leite?

E lá respondo que muda, acima de tudo, a gestão da percepção (“perception’s management”) do PSD, face a um PS socrático, marcado pelo delírio do controlo do “agenda setting”, num combate de teatrocracia deste Estado Espectáculo, onde já passou de moda o “soundbyte”, dado que este ficou limitado pelos cinco por cento eleitorais de PP e pelos eventuais dez por cento de PSL, apenas mobilizáveis pelos próximos estados gerais da direita que Manuel Monteiro venha a organizar.

Perguntam-me sobre o que muda no PSD? Lá insisto: Manuela apenas se inscreveu no PSD em 1985 e as directas confirmaram que o partido é mais cavaquista do que sá-carneirista e conseguiu vencer a tentação neopopulista. Se ela conseguir dar a essa nebulosa social-democrata o ar de questão social à maneira da Igreja Católica e de reforma de Estado melhor do que o desastre do PRACE de Sócrates, passa a ter com ela dois importantes “clusters” do centrão sociológico e desviar para o PSD grande parte de um milhão de votantes que costumam flutuar entre o PS e o PSD, aproximando-se subliminarmente da maioria sociológica.

Insistem. E nas relações com o PS? Respondo: enquanto Sócrates tem que gerir a indigestão da dissidência Alegreira, Manuela tem a oposição conveniente de Santana e consegue colocar a seu favor a memória esquerdista do PSD, através de Pacheco Pereira. Acresce que no PS já não há os militantes católicos da senda dos “jucistas” tipo Guterres, dado que o ministro Silva Pereira não parece suficiente. A Sócrates já não basta dizer ao Cardeal que vai desistir da causa fracturante do casamento de homossexuais, com que há meses pretendia copiar Zapatero.

Sobre as relações com Cavaco Silva, considero que Cavaco é o ausente presente que vai exercer uma função de importante apoio indirecto a Manuela, na mesma altura em que “che” Mário Soares escreve artigos críticos que embaraçam Sócrates. Acresce que a crise do petróleo e dos preços alimentares podem produzir uma vaga de dramatismo favorável a uma imagem de mudança que possa levar a esperança a encostar-se a uma cara como a de Manuela, habituada a gerir os silêncios e a não ir a todas, caindo nas rasteiras verbais em que tem caído Sócrates, ao responder às provocações de Louçã, Jerónimo, Santana e Portas.

Já quanto ao sistema político, apenas acrescento, de forma irónica: Uma é lisboeta, bisneta de um chefe do governo da monarquia, ilustre maçon. O outro vem de uma pequena cidade da província. Uma apenas se inscreveu num partido onze anos depois de o mesmo partido existir (1985). O outro é militante jota, mais histórico no PSD do que ela. Por outras palavras, uma começou como tecnocrata e só chegou a militante partidária por conclusão, por serviço prestado ao seu mentor (Cavaco). O outro passou de jota a político profissional, com traquejo semelhante ao de Santana Lopes.

Uma saiu de ministra da educação para alta directora de uma instituição universitária privada (o ISLA) e de ministra das finanças para administradora da banca privada e ninguém lhe fez artigos como os que fizeram sobre Jorge Coelho, porque tem, à maneira de Cavaco e de Salazar, um aspecto enigmático de prestígio. Ao outro todos lhe denunciam a enorme fileira de partidocratas, não reparando que a primeira, como líder distrital, teve como principal colaborador um António Preto.

Um é socialista democrático da ala direita do PS que gostaria de ser semelhante a Blair, quando estamos no tempo de Gordon Brown poder ser derrotado pelos conservadores, com uma Europa marcada por Sarkosy e Berlusconi. A outra, encostou-se a intervenções semanais na Rádio Renascença que não ficaram registadas em papel de jornal e não podem ser objecto de pesquisa no Google, pelo que tem sempre na memória os dossiers do Estado que lhe vieram de ser Directora-Geral da Contabilidade e dirigente do Instituto de Participações do Estado, por onde também andou Guterres.

Um celebrizou-se na polémica da incineração, sendo memorável o debate televisivo em que esmagou o guru do BE, Boaventura Sousa Santos, por causa de Souselas, treinado que estava pelos debates dominicais na RTP com Santana Lopes. A outra, tem por Santana, a afinidade sportinguista e laranjeira e a doçura interventiva da emissora católica. Mas ambos lêem a cartilha neokeynesiana. Um é o subcavaquismo, assente no novo aeroporto e no TGV. A outra é o cavaquismo em plenitude, sem qualquer aspecto de sucedâneo. E entre a esquerda menos de Sócrates e a esquerda ainda menos de Cavaco, o centrão sociológico é capaz de preferir o regresso a esse mito do Bloco Central, se houver uma carga mais dramática, por causa dos preços da alimentação e dos combustíveis para o carro.

Um tem como inimigos principais um António Barreto e um Manuel Alegre. A outra tem a vantagem de ter como inimigo conveniente Santana Lopes. Um já esteve em estado de graça com Cavaco Silva. A outra estará sempre em estado de graça de quem é autêntico apóstolo.

Jun 04

Ao princípio, não era o Estado, mas o Homem…será o Estado a ter de se humanizar e não o Homem que se tem de estadualizar

Ontem, ao fim da tarde, estive na Assembleia da República, participando na cerimónia de homenagem que o parlamento, através dos grupos parlamentares do CDS e do PSD, quis prestar a Francisco Lucas Pires. Resguardei-me na última fila, que éramos mais dois os antigos membros da comissão política do Francisco, na sua primeira aventura eleitoral. Guardo-me para, daqui a uns dias, reflectir sobre o percurso de quem me meteu, como professor, o bichinho das aventuras na teoria política e até de quem me levou a filiar, pela primeira vez, num partido, do qual logo saí quando voltou o primeiro fundador. Daqui a uns minutos vou até à Academia Militar tentar comunicar uns tópicos sobre cidadania electrónica, onde falarei mais de cidadania que de electrónica, porque essa tarefa vai caber ao meu companheiro de painel, o Carlos Zorrinho, com quem, da última vez que estive, foi numa sessão idêntica, mas no PS do Barreiro, a convite do Eduardo Cabrita.

 

 

No intervalo, lá ouvi que o FCP foi suspenso das provas da UEFA, mas sem ainda me poder deliciar com os comentários de Pinto da Costa contra o Benfica e a Maria José Morgado. Ainda estou combalido com alguns dos discursos de ontem, onde brilhou Marcelo Rebelo de Sousa e cumpriu excelentemente o papel o José Luís Nogueira de Brito, dado que alguns dos outros falaram deles e das respectivas posições de hoje, com muita literatura de justificação e imensos conceitos retroactivos, sem qualquer réstea de pirismo. Um deles até disse, do alto do seu institucionalismo, que o Francisco criou o Grupo de Ofir depois da campanha eleitoral em que foi derrotado por Cavaco Silva…

 

 

Olhando para os participantes, reparei que eu era um dos raros alunos dele e que não o posso apenas olhar como líder ou companheiro de combates políticos, dado que nunca consegui tratá-lo por tu, apesar da proximidade e da cumplicidade. Apenas recordo a homenagem que lhe prestei na publicação de um livrinho meio jurídico de 1998: “Em memória do meu Professor, Doutor Francisco Lucas Pires. Porque ao princípio, não era o Estado, mas o Homem, donde será o Estado a ter de se humanizar e não o Homem que se tem de estadualizar”