Em comunicado, o Tribunal de Contas revela que “foi detectada despesa pública irregular nas auditorias realizadas acima de 800 milhões de euros, nos vários níveis da Administração – Central, Regional e Local”. A habitual hermenêutica dos comentadores oficiosos deve ter achado a matéria abstracta demais. Prefere lucubrar sobre o comício da nova esquerda, logo à noitinha. Ou silenciar a reportagem da TVI sobre o SIRESP, a que não compareceram António Costa nem Santana Lopes. O primeiro acaba de ser convocado para as alturas do Clube de Bilderberg, ao lado de Rui, onde sucedem tanto a Sócrates como a Santana e onde nunca foi Manuela Ferreira Leite.
O país está mais preocupado com a greve do pescado e as margens do Neuchâtel, entusiasma-se com Mourinho no Inter e entrou em maluqueira decisional, a caminho das legislativas do próximo ano. Peguntam-me sobre o que muda com Ferreira Leite?
E lá respondo que muda, acima de tudo, a gestão da percepção (“perception’s management”) do PSD, face a um PS socrático, marcado pelo delírio do controlo do “agenda setting”, num combate de teatrocracia deste Estado Espectáculo, onde já passou de moda o “soundbyte”, dado que este ficou limitado pelos cinco por cento eleitorais de PP e pelos eventuais dez por cento de PSL, apenas mobilizáveis pelos próximos estados gerais da direita que Manuel Monteiro venha a organizar.
Perguntam-me sobre o que muda no PSD? Lá insisto: Manuela apenas se inscreveu no PSD em 1985 e as directas confirmaram que o partido é mais cavaquista do que sá-carneirista e conseguiu vencer a tentação neopopulista. Se ela conseguir dar a essa nebulosa social-democrata o ar de questão social à maneira da Igreja Católica e de reforma de Estado melhor do que o desastre do PRACE de Sócrates, passa a ter com ela dois importantes “clusters” do centrão sociológico e desviar para o PSD grande parte de um milhão de votantes que costumam flutuar entre o PS e o PSD, aproximando-se subliminarmente da maioria sociológica.
Insistem. E nas relações com o PS? Respondo: enquanto Sócrates tem que gerir a indigestão da dissidência Alegreira, Manuela tem a oposição conveniente de Santana e consegue colocar a seu favor a memória esquerdista do PSD, através de Pacheco Pereira. Acresce que no PS já não há os militantes católicos da senda dos “jucistas” tipo Guterres, dado que o ministro Silva Pereira não parece suficiente. A Sócrates já não basta dizer ao Cardeal que vai desistir da causa fracturante do casamento de homossexuais, com que há meses pretendia copiar Zapatero.
Sobre as relações com Cavaco Silva, considero que Cavaco é o ausente presente que vai exercer uma função de importante apoio indirecto a Manuela, na mesma altura em que “che” Mário Soares escreve artigos críticos que embaraçam Sócrates. Acresce que a crise do petróleo e dos preços alimentares podem produzir uma vaga de dramatismo favorável a uma imagem de mudança que possa levar a esperança a encostar-se a uma cara como a de Manuela, habituada a gerir os silêncios e a não ir a todas, caindo nas rasteiras verbais em que tem caído Sócrates, ao responder às provocações de Louçã, Jerónimo, Santana e Portas.
Já quanto ao sistema político, apenas acrescento, de forma irónica: Uma é lisboeta, bisneta de um chefe do governo da monarquia, ilustre maçon. O outro vem de uma pequena cidade da província. Uma apenas se inscreveu num partido onze anos depois de o mesmo partido existir (1985). O outro é militante jota, mais histórico no PSD do que ela. Por outras palavras, uma começou como tecnocrata e só chegou a militante partidária por conclusão, por serviço prestado ao seu mentor (Cavaco). O outro passou de jota a político profissional, com traquejo semelhante ao de Santana Lopes.
Uma saiu de ministra da educação para alta directora de uma instituição universitária privada (o ISLA) e de ministra das finanças para administradora da banca privada e ninguém lhe fez artigos como os que fizeram sobre Jorge Coelho, porque tem, à maneira de Cavaco e de Salazar, um aspecto enigmático de prestígio. Ao outro todos lhe denunciam a enorme fileira de partidocratas, não reparando que a primeira, como líder distrital, teve como principal colaborador um António Preto.
Um é socialista democrático da ala direita do PS que gostaria de ser semelhante a Blair, quando estamos no tempo de Gordon Brown poder ser derrotado pelos conservadores, com uma Europa marcada por Sarkosy e Berlusconi. A outra, encostou-se a intervenções semanais na Rádio Renascença que não ficaram registadas em papel de jornal e não podem ser objecto de pesquisa no Google, pelo que tem sempre na memória os dossiers do Estado que lhe vieram de ser Directora-Geral da Contabilidade e dirigente do Instituto de Participações do Estado, por onde também andou Guterres.
Um celebrizou-se na polémica da incineração, sendo memorável o debate televisivo em que esmagou o guru do BE, Boaventura Sousa Santos, por causa de Souselas, treinado que estava pelos debates dominicais na RTP com Santana Lopes. A outra, tem por Santana, a afinidade sportinguista e laranjeira e a doçura interventiva da emissora católica. Mas ambos lêem a cartilha neokeynesiana. Um é o subcavaquismo, assente no novo aeroporto e no TGV. A outra é o cavaquismo em plenitude, sem qualquer aspecto de sucedâneo. E entre a esquerda menos de Sócrates e a esquerda ainda menos de Cavaco, o centrão sociológico é capaz de preferir o regresso a esse mito do Bloco Central, se houver uma carga mais dramática, por causa dos preços da alimentação e dos combustíveis para o carro.
Um tem como inimigos principais um António Barreto e um Manuel Alegre. A outra tem a vantagem de ter como inimigo conveniente Santana Lopes. Um já esteve em estado de graça com Cavaco Silva. A outra estará sempre em estado de graça de quem é autêntico apóstolo.