Algumas notas, retiradas da cartilha de Sá de Miranda, segundo a qual vencer é ser vencido

O poder, encasulado na sua formal maioria absoluta, continua a julgar que é possível gerir o poder pelo poder, distribuindo migalhas por todos os esfomeados que se aproximam da mesa do orçamento. O poder do estado a que chegámos retoma as lições do velho “raposa” Rodrigo da Fonseca, esse técnico da politiquice que aconselhava os governantes a tornarem os opositores de ontem em comensais, para que todos se banqueteassem com os devoristas. Não tarda que chegue aos desespero ético de um José Luciano e que proclame: não é o meu partido que me leva ao poder, sou eu que levo o meu partido ao poder. Mais: o poder sabe de ciência certa que as patuleias apenas são ocasionais e que se estiver aflito sempre pode dizer, como Saldanha, que a Europa tem de intervir para nos livrar de uma manobra miguelista, mesmo que o grosso da coluna dos revoltados venha a ser capitaneada por Sá da Bandeira, mobilizando todos os setembristas que não seguiram o viracasaquismo dos Cabrais. Haverá sempre uma divisão militar comandada por Concha e uma esquadra britânica que, manobrada pelo Paço, nos obrigará à vergonha da convenção do Gramido. Aliás, Cristóvão de Moura continua a prosperar na alta burocracia dos Habsburgos e o Miguel Vasconcelos, que ainda não foi adequadamente defenestrado, vai elaborando todos os pareceres jurídicos que sejam necessários para que Filipe II possa dizer, no fim do passeio, que nos herdou, comprou e invadiu. Não há nada de novo debaixo do tal sol que continua a não deixar que o olhemos de frente. Esta continuidade pós-autoritária e pós-totalitária, ao não educar para a cidadania dos homens livres, preferindo a estatística dos exames facilitados, impediu que cada um espremesse gota a gota o escravo que permanece dentro de nós. Logo, poderemos concluir, que a culpa de conservarmos esta escravatura doce, apenas está na circunstância de não haver a necessária revolta de escravos, só para parafrasearmos Tchekov e Beaumarchais, os tais que não tiveram que tecer loas à existência a ministros de inequívoco perfil de esquerda que, ipso facto, se julgam detentores do monopólio de uma ética antifascista, um pouco à imagem e semelhança dos tais Cabrais e das respectivas “restaurations” dos “anciens régimes”. Apenas esquecem que, do mesmo mal, padeceram antigos ministros de Salazar que lavavam as mãos como Pilatos, só porque, aos dezoito anos, tinham o carimbo de esquerdistas. Porque eles atingiram o despudor da total ausência da verdadeira ética republicana, aquela que Kant identificou como o imperativo categórico, quando praticando descaradas ilegalidades, injustiças e persigangas, típicas do despotismo ministerial, conseguiam, pela emissão de adequada literatura de justificação, assumir a dimensão de música celestial, que a jagunçada dos servos ia propagandeando. Aliás, tinham cuidado de deixar as cacetadas para os serviçais e feitores e sempre podiam mostrar que as respectivas mãos de macho de cabra estavam dotadas da necessária limpeza de sangue. Basta ver como em certas esquinas do nosso micro-autoritarismo sub-estatal continua a mesma música celestial, cantarolada pelos mesmos sacristães que perderam o sentido dos gestos, mas que têm o mérito dessa moral de sucesso, do poder pelo poder, congregando numa grande união nacional, estalinistas que se pintaram de democratas, fascistas cobardes que nem ao pós-fascismo aderem e outros tantos deste neocabralismo, a quem pedem serviços de neopidismo denunciante, com muita água benta e dobragem da espinhela. Ai dos que seguem o velho partido de Sá de Miranda, do antes quebrar que torcer, que homens da Corte não podem nem querem ser… só porque consideram que as leis universais só podem ser emitidas pelo exemplo das condutas de cada um, quando cada um ousa viver como pensa, mesmo quando se assume do contra e quer dar o exemplo do risco de viver cada uma das suas horas como se fosse a última. Os tais doidinhos que, neste tempo de homens lúcidos e situacionistas, têm a lucidez daquela ingenuidade que os obriga a ser do contra, mesmo quando foram os primeiros convidados para a tal mesa do orçamento… Só que leram Fernando Pessoa e sabem que vencer é ser vencido…

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