Este acordar do Oriente, que acontece na precisa altura em que a noite começa a cair em lisboa, nove horas mais cedo, obriga-nos a curiosas mnemónicas, como a de somarmos três horas às que aparecem no mostrador do relógio, diminuindo-lhe depois as doze que perfazem meio dia. Mas esta não sincronia tem, pelo menos, a vantagem de relativizarmos as novas que nos chegam lá dos reinóis, com Sócrates em mangas de camisa a aparecer em mangas de camisa, depois de vermos uma missa em tétum, ao som dos Abba, o que nos permite a libertação pelo “zapping”. Aliás, o telejornal que nos é transmitido à hora do jantar é o portuense Jornal da Uma, com pronúncia à moda do Norte, relativizando ainda mais os “faits divers” dessa quase pré-campanha. Os problemas que aqui se vivem, infleizmente, não se resolveriam com a exportação do Magalhães nem com a varinha mágica do propagandismo, com os habituais golpes de “imagem, sondagem e sacanagem”, para citarmos Manuel Alegre.
Nesta república do sol nascente, mais de 90% dos “inputs” do respectivo orçamento de Estado vêm das receitas petrolíferas e o Estado, para assegurar o monopólio da violência legítima, viu-se forçado a recorrer à cooperação internacional, em matérias militares e de segurança. Por aqui houve séculos de colonização e cerca de um quarto de século de ocupçaão militar estrangeira. Logo, vivo entre um povo onde nenhuma família escapaou a um massacre, dado que cerca de duzentos mil timorenses foram assassinados por causa de uma abstracção chamada guerra fria e de clamorosos erros de cálculo da diplomacia norte-americana e europeia e das muitas boas intenções descolonizadoras e integracionistas de Lisboa, quando ainda tinha manias de ser capital do império.
Logo, seria estúpido, depois de tantos horrores, procurarmos a contabilidade dos culpados e inocentes, dizendo que o heróis foi Maggiolo ou que o traidor foi Lemos Pires, para não esmiuçarmos os passos dados por Costa Gomes ou Almeida Santos. Mais do esquecer, importa pensar e ler o Professor José Mattoso. Daí que, por respeito pela independência timorense e, sobretudo, por respeito aos mortos, não comente as declarações cruzadas de Xanana, Alkatiri e Horta, todos eles à procura da democracia como institucionalização de conflitos. Mais irresponsável são tiradas vindas de doutos professores, propondo o desembarque nesta ilha de cortadores de cabeças, como se os duzentos mil mártires não fossem suficientes para a garantia do direito à pátria. Infelizmente, as velhas marcas teóricas que os pretensos realistas tecem, apenas nos devem merecer o nível do desprezo, especialmente quando não se importaram em receber chorudos subsídios para exportaram para este território projectos de reforma. Quando pensamos nesta ilha sagrada pelos corpos mortos dos resistentes, temos, pelo menos, o dever de respeitar a dignidade e a honra.
A mais recente crise dos preços do petróleo, dos bens alimentares e os sobressaltos da geofinança apenas têm demonstrado que o mundo viveu hipnotizado por uma vaga ideia de globalização e que a presente encruzilhada exige uma espécie de “new deal” universal que não se confunda com a chamada teologia de mercado em que se enredaram quase todos. Não apenas os neoliberais e neoconservadores, mas também póscomunistas, pósfascistas, democratas-cristãos e sociais-democratas. Por outras palavras, a ilusão do fim da história foi, como diz o ditado português, chão que deu uvas mirradas.
Talvez importe sublinhar que só novos paradigmas conceituais podem permitir captar e compreender as efectivas circunstâncias de tempo e de lugar que marcam as presentes coordenadas da navegação humana. E daqui, da mais recente república asiática, na ribeira da Oceania, podemos dizer que todos temos que nos expatriar nas próprias raízes do político. Porque, se como ocidentais, percorrermos Platão e Aristóteles, podemos concluir lugares comuns para o urgente diálogo de civilizações, porque todas elas são filosoficamente contemporâneas.
Pelo menos, podemos extrair da história comparada uma lição: os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque a política é superior à economia, tal como é superior ao Estado e ao próprio Mercado.
Volta a ser a hora de recuperarmos o conselho de Rawls e Habermas que, em 1995, advogavam o regresso à lição de Kant, de dois séculos antes, esse subsolo filosófico do Estado de Direito universal que nos permite superar Vestefália dos Estados-Lobos-dos-Estados, tão selvagem quanto a sociedade de casino e as bebedeiras de Wal Street. Basta recordarmos que coisas como o branqueamento de capitais, o financiamento do terrorismo e a bandocracia da corrupção deixaram cogumelos virais no próprio coração do sistema financeiros internacional. Um processo que, ao mesmo tempo, gerou inúmeros micro-autoritarismos estatais, subestatais e supra-estatis, com as suas sociedades de corte, promovendo a fragmentação e a captura dos tradicionais Estados que, algumas vezes, não passam de meras presas de grupos de interesse e de grupos de pressão.
Tal como Kant propunha, importa darmos de novo política à chamada governação global, para que ela deixe de ser mera navegação à deriva e uma consequente governança sem governo, onde as pilotagens automáticas e as lideranças políticas de fantoches e homens de plástico parecem não assumir a urgente lealdade básica face aos valores universais da democracia. A mais urgente das regulações está na recriação de um modelo de Estado de Direito universal que não se confunda com a hirarquia das potências que brote de superpotências ou desse seu sucedâneo a que chamamos G7.