Out 31

Entre a memória do sofrimento e as saudades de futuro

Depois de quase dois dias sem ligação à Internet, lá voltei ao mundo, graças ao engenheiro paquistanês que lá conseguiu refazer a ligação “wireless” ao canal da embaixada. Ao fim da tarde, foi uma breve viagem aqui à beira mar, mesmo ao lado do farol, onde se avistaram duas baleias passeando-se pela enseada de Dili.  Apenas digo que, tal como em Brasília, o meu ritmo de escritura e de investigação adequa-se ao trópico, sendo mobilizado para a elaboração de textos de apoio aos alunos. Por exemplo, nestes dias, refiz o esboço de tópicos políticos, como os que apresento na coluna à esquerda, neste blogue, e irei fazer uma pequena publicação sebenteira aqui em Dili, onde há grande imaginação criativa nestas matérias de edição electrónica de textos. Com efeito, uma nação em construção é um desafio constante à criatividade e permite alguma metafísica, a quem se deixar enredar por esta natureza das coisas e ainda tiver o encanto da visão do paraíso, sem estar preso a utopias do passado. Basta sairmos da cidade e percorrermos um pouco do espaço rural, para podermos compreender como, por aqui, há imensas saudades de futuro e uma juventude que coloca Timor Leste no pódio da taxa de natalidade. Talvez pela memória do sofrimento, onde a liberdade passa a ser uma conquista.

 

PS: Só hoje reparei que ainda tinha marcado no blogue a hora lisboeta. Aqui são sempre mais nove horas. A correcção passa a ser automática.

Out 30

Relendo o sentido para a vida de Baden Powell

Há dias conversava com um jovem resistente, com provas dadas na libertação, que me contava como aprendera com  o Padre Felgueiras o sentido da palavra,  quando ela passa por formar um homem na raiz da sua dignidade e na procura da conquista da liberdade. Apenas se me reavivaram as memórias da adolescência, quando vivia uma crise de fé, da qual ainda não saí, e quando também ele nunca me falou de religião. Mandou-me, pelo contrário, ler Baden Powell e, há dias, ainda me confirmava que este grande paradigma só foi possível por causa do diálogo de civilizações a que os trópicos são propícios. E lá acrescentei Kipling à lista, porque as coisas antes de o serem já realmente o são, quando nos marca a imanência de só por dentro das coisas as coisas realmente serem.

 

Esse jovem resistente lá me confirmou que foi graças à visita de João Paulo II que a resistência passou da mera guerrilha, de menos de uma centena de activistas na montanha, para a luta política global, a partir das redes de clandestinidade, ateando uma consciência de tiranicídio que passou as fronteiras de Timor Leste e penetrou no coração da própria Indonésia.  E lá fui recordando como aprendi Timor por coração e alma. Com as histórias e teorias que me foram transmitidas por Luís Filipe Reis Tomás ao vivo, ainda antes de 1974. Com os longos contactos que, depois dessa data, mantive em Lisboa com o falecido Moisés Amaral, que me levou ao Jamor e às pensões do Cais Sodré, onde sofriam os refugiados que se assumiam como mauberes. Com o hiperactivismo do Miguel Anacoreta Correia e até com uma incursão que fizemos a uma reunião de uma internacional partidária influenciada pelo arquiduque Otão de Habsburgo, um dos líderes do grupo de pressão indonésio na Europa, tentando dar notícia dos massacres e do potencial democídio. Em vez de cedermos às tretas do realismo da guerra fria que queria uma província católica num dos maiores Estados islâmicos do mundo e onde o próprio Murdani metia cunhas a Lisboa para poder fazer uma peregrinação a Fátima…

 

 

 

Hoje, ao contactar com os primeiros frutos desta luta pela libertação, que ainda vai continuar por décadas, mas agora nas vias da institucionalização do poder, quando a mesma puder ser efectivamente protagonizada pelos próprios timorenses, apenas me apetece pedir aos que sempre foram simpatizantes, amigos ou militantes da causa que dêem tempo ao tempo e que, com humildade, tentem compreender que, por cá, há outro conceito de tempo bem diverso do “stress” do chamado “time is money”, o tal que embebedou a globalização, sobretudo a da geofinança. É preciso que o fruto libertador amadureça, enraizadamente, que a árvore da liberdade possa estender os seus ramos a uma terra sagrada.

 

 

 

Nunca esqueçamos a bela imagem de Jean Bodin, quando, referindo-se à dimensão óptima das repúblicas, dizia que tudo dependiam da alma que as fazia mover, coisa que que é a mesma coisa num elefante ou numa formiga, porque, independentemente do tamanho, ambos são dotados do tal “animus” que os faz movimentar como um todo, quando conseguem harmonizar as respectivas contradições. E a paz pelo direito e o governo pelo consentimento nunca aconteceram num ambiente de paz dos cemitérios. Só os valores universais da democracia podem fazer com que as divergências e convergências se convertam numa emergência libertadora, a tal complexidade crescente, onde na fase superior, sem que se eliminem as anteriores divergências e convergências, se procede a uma adeuada institucionalização dos conflitos, onde, pelos lugares comuns, se torna enriquecedor o diálogo entres adversários que não são inimigos. Vou reler Baden Powell. A coragem treina-se e pode mover montanhas.

Out 28

Da resistencia que foi ate a independencia que tem ser

Ontem ao cair da tarde fui visitar o meu querido Padre Felgueiras, acompanhado pelo Padre Martins. Foi um falar de memorias para futuro, da resistencia que foi ate a independencia que tem ser, liberta dos fantasmas do Estado Falhado. Porque nada do que e humano nos pode ser alheio. Ou de como Cernache renasceu aqui em Dili. Porque a regulação que nos falta não é a que, à maneira do velho verticalismo hierarquista dos estadualismos de outrora, estabeleça uma federação de potências com um rolo unidimensionalizador, ao estilo de um qualquer simulacro de Estado Mundial, herdeiro dos erros das monarquias universais, onde os conselhos de ministros passem a ser os sucessivos festivais de cimeiras, hierarquicamente dependentes da autorização prévia de prévias minicimeiras dos controleiros que se pensam superpotentes.

 

Porque esta criminosa utopia imediatamente desencadearia a revolta das principais vítimas do processo, os chamados povos mundos do mundo que tentariam o desespero de novas ideologias de lutas de classe. O que nos falata é acabar de vez com a Razão de Estado e voltarmos a peregrinar os princípios de um Estado de Direito universal, capaz de evitar uma qualquer nova “animal farm”, onde sempre haverá Estados todos iguais, mas onde alguns serão sempre mais iguais do que outros. O que nos falta é a passagem da Razão de Estado ao Estado-Razão e a um novo conceito de pluralismo político que responda à multiplicidade de pertenças. Basta que os homens, depois de libertados, queiram construir um espaço de participação para homens livres.

 

As experiências de liberdade, de democracia e luta contra a doença e a pobreza, desencadeadas por alguns Estados Continentais, como o Brasil, ou os esforços de coesão e de solidariedade assumidos pela União Europeia têm treinado e praticado sistemas de solidariedade nas respectivas zonas de cidadania e apenas esperam que encetemos um esforço mais amplo de regulação global, onde a democratização e a juridificação sejam caminhos paralelos.

 

Por outras palavras, a política externa da União Europeia pode ser bem simbolizado pela recente Casa da Europa em Dili. Um estímulo para que muitas entidades políticas como esta república do sol nascente possam ter um melhor Estado que não seja apenas uma governança mais tecnocrática, mas sobretudo um melhor Estado que dê força ao sentido comunitário das sociedades, isto é, do elemento comunitário dos Estados. Para que diminuam as gorduras adiposas dos aparelhos de poder e para que a pluralidade de pertenças dos indivíduos, libertados e livres, admitam a urgente pluralidade de redes políticas, onde espaços supra-estatais sirvam de reforço para as próprias liberdades nacionais, sobretudo dos pequenos Estados que admitam um Estado-Razão superior à Razão-de-Estado.

 

Foi este o sonho dos pais-fundadores da Europa política supra-estadual. Pode ser este o principal exemplo que podemos espalhar pelo mundo, se soubermos e quisermos uma Europa que seja mais aprofundada e não apenas mais alargada. Daí que talvez seja de recuperar algumas das lições de certo liberalismo ético, como o de John Locke, quando defendia que a separação de poderes deveria incluir, como elemento vital, um “confederative power”. Os portugueses de antanho chamaram, a esse sonho, abraço armilar e talvez os povos mudos do mudo voltem a exigir que a Europa dê esses novos mundos ao mundo.

 

Foi apenas isso que vim aprender a esta ribeira da Oceania, diante da sonhada terra austrália do Espírito Santo, na procura de um novo império anti-imperialista, o do poder dos sem poder. Que a Europa volte a ser uma potência do espírito e da moral e que, da respectiva conduta, se possa voltar a extrair uma máxima universal.

Out 28

Aristóteles em timorense, contado aos povos sujeitos a governos de espertos

O hoje, de aqui e agora, já depois de tomada a bica, ainda é o ontem de Lisboa, e lá me vou disciplinando neste beneditino exercício de preparação das aulas, depois de ontem termos introduzido o tópico das relações do direito e da força. Porque se Hobbes, com o seu Leviathan, parece sedutor, para quem anseia pelo monopólio da violência legítima, também Kant, com um Estado de Direito universal, a proteger os mais pequenos, evitando que os peixes grandes os devorem, tem aqui um cunho eminentemente realista e libertador.

 

E lá vou lendo Aristóteles em timorense, tal como poderia ler o mesmo em Confúcio. Porque, aqui, no princípio, edificou-se uma casa, donde saiu uma geração cada vez mais numerosa, Uma-Fukun, o mesmo que nó ou origem, tal como Santo Isidoro dizia de natio, que também vem de nascendo. Aqui, foi ao filho primogénito dessa casa que se atribuiu o título de Liurai, isto é, de o mais do que a terra, também dito Na’ai em Mamba, tal como o Deus único dos missionários cristão se passou a chamar Na’ai Maromak.

 

Também como em Aristóteles, as várias aldeias se federaram e, acima delas, surgiu uma acrópole, com um Uma-Fakun a superiorizar-se aos vários chefes de aldeia, os Datos. Só que, havendo um governo por conselho, também se institucionalizou o Nahe Biti Boot, com o Liurai com os seus Datos, chamados Liana’in, os mais velhos, detentores da palavra…

 

E a história continua, em timorense, como em grego, como em latim, como em português arcaico, do tempo das aldeias comunitárias, as efectivas raízes do próprio Estado, entendido, como um concelho em ponto grande, conforme ensinava o nosso Infante D. Pedro no Livro da Virtuosa Benfeitoria, o primeiro tratado político pensado e escrito em português. Por outras palavras, o que vos conto, resulta do que tenho aprendido de alguns trabalhos dos meus alunos Liana’in, os tais que bem poderiam ter sido ouvidos para a institucionalização constitucional da democracia dos timorenses, onde uma segunda câmara bem era necessária, porque ela já existe realmente, quase de forma clandestina, porque nenhuma decisão política fundamental é aqui tomada sem prévia audição dos senadores.

 

Porque se o costume não é fonte de direito novo, continua a ser o principal fornecedor do direito eficaz e válido, mesmo quando não está formalmente vigente. Sobretudo, nos espaços praeter legem e como critério de juridicidade na aplicação do direito. Porque só com o costume se pode evitar a pior das heranças da colonização e da ocupação militar, aquilo que Hannah Arendt qualificou como o governo dos espertos. Isto é, a aplicação arbitrária da elefantíase legislativa do direito formalmente posto na cidade. Onde há sempre alguns que são mais iguais do que outros e uma lei para os amigos e outra para os inimigos e dissidentes.

 

O exagero legiferante, sobretudo o das traduções em calão, sempre levou a que houvesse uma enorme distância entre o direito formal e a vida, porque os administradores podem seleccionar arbitrariamente, como o velho déspota, as leis e regulamentos convenientes. E o pior é quando o mesmo administrador se assume como o príncipe absolutista e determina que não está sujeito à lei que aplica aos súbditos, colonizados ou ocupados (princeps a legibus solutus). Ou então, quando considera lei tudo o que ele diz (quod princeps dixit legis habet vigorem), mandando, passando a capataz de um poder sem controlo. Bom dia, Lisboa. Também por aí, na ex-capital do império, há muitos destes inimigos do Estado de Direito, muitas almas de capataz, muitos candidatos a feitores dos donos do poder que não são legítimos. Chegou a hora de expulsarmos os vendilhões do templo do povo.

Out 27

Neste acordar do Oriente

Este acordar do Oriente, que acontece na precisa altura em que a noite começa a cair em lisboa, nove horas mais cedo, obriga-nos a curiosas mnemónicas, como a de somarmos três horas às que aparecem no mostrador do relógio, diminuindo-lhe depois as doze que perfazem meio dia. Mas esta não sincronia tem, pelo menos, a vantagem de relativizarmos as novas que nos chegam lá dos reinóis, com Sócrates em mangas de camisa a aparecer em mangas de camisa, depois de vermos uma missa em tétum, ao som dos Abba, o que nos permite a libertação pelo “zapping”. Aliás, o telejornal que nos é transmitido à hora do jantar é o portuense Jornal da Uma, com pronúncia à moda do Norte, relativizando ainda mais os “faits divers” dessa quase pré-campanha. Os problemas que aqui se vivem, infleizmente, não se resolveriam com a exportação do Magalhães nem com a varinha mágica do propagandismo, com os habituais golpes de “imagem, sondagem e sacanagem”, para citarmos Manuel Alegre.

 

Nesta república do sol nascente, mais de 90% dos “inputs” do respectivo orçamento de Estado vêm das receitas petrolíferas e o Estado, para assegurar o monopólio da violência legítima, viu-se forçado a recorrer à cooperação internacional, em matérias militares e de segurança. Por aqui houve séculos de colonização e cerca de um quarto de século de ocupçaão militar estrangeira. Logo, vivo entre um povo onde nenhuma família escapaou a um massacre, dado que cerca de duzentos mil timorenses foram assassinados por causa de uma abstracção chamada guerra fria e de clamorosos erros de cálculo da diplomacia norte-americana e europeia e das muitas boas intenções descolonizadoras e integracionistas de Lisboa, quando ainda tinha manias de ser capital do império.

 

Logo, seria estúpido, depois de tantos horrores, procurarmos a contabilidade dos culpados e inocentes, dizendo que o heróis foi Maggiolo ou que o traidor foi Lemos Pires, para não esmiuçarmos os passos dados por Costa Gomes ou Almeida Santos. Mais do esquecer, importa pensar e ler o Professor José Mattoso. Daí que, por respeito pela independência timorense e, sobretudo, por respeito aos mortos, não comente as declarações cruzadas de Xanana, Alkatiri e Horta, todos eles à procura da democracia como institucionalização de conflitos. Mais irresponsável são tiradas vindas de doutos professores, propondo o desembarque nesta ilha de cortadores de cabeças, como se os duzentos mil mártires não fossem suficientes para a garantia do direito à pátria. Infelizmente, as velhas marcas teóricas que os pretensos realistas tecem, apenas nos devem merecer o nível do desprezo, especialmente quando não se importaram em receber chorudos subsídios para exportaram para este território projectos de reforma. Quando pensamos nesta ilha sagrada pelos corpos mortos dos resistentes, temos, pelo menos, o dever de respeitar a dignidade e a honra.

 

A mais recente crise dos preços do petróleo, dos bens alimentares e os sobressaltos da geofinança apenas têm demonstrado que o mundo viveu hipnotizado por uma vaga ideia de globalização e que a presente encruzilhada exige uma espécie de “new deal” universal que não se confunda com a chamada teologia de mercado em que se enredaram quase todos. Não apenas os neoliberais e neoconservadores, mas também póscomunistas, pósfascistas, democratas-cristãos e sociais-democratas. Por outras palavras, a ilusão do fim da história foi, como diz o ditado português, chão que deu uvas mirradas.

 

Talvez importe sublinhar que só novos paradigmas conceituais podem permitir captar e compreender as efectivas circunstâncias de tempo e de lugar que marcam as presentes coordenadas da navegação humana. E daqui, da mais recente república asiática, na ribeira da Oceania, podemos dizer que todos temos que nos expatriar nas próprias raízes do político. Porque, se como ocidentais, percorrermos Platão e Aristóteles, podemos concluir lugares comuns para o urgente diálogo de civilizações, porque todas elas são filosoficamente contemporâneas.

Pelo menos, podemos extrair da história comparada uma lição: os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Porque a política é superior à economia, tal como é superior ao Estado e ao próprio Mercado.

 

Volta a ser a hora de recuperarmos o conselho de Rawls e Habermas que, em 1995, advogavam o regresso à lição de Kant, de dois séculos antes, esse subsolo filosófico do Estado de Direito universal que nos permite superar Vestefália dos Estados-Lobos-dos-Estados, tão selvagem quanto a sociedade de casino e as bebedeiras de Wal Street. Basta recordarmos que coisas como o branqueamento de capitais, o financiamento do terrorismo e a bandocracia da corrupção deixaram cogumelos virais no próprio coração do sistema financeiros internacional. Um processo que, ao mesmo tempo, gerou inúmeros micro-autoritarismos estatais, subestatais e supra-estatis, com as suas sociedades de corte, promovendo a fragmentação e a captura dos tradicionais Estados que, algumas vezes, não passam de meras presas de grupos de interesse e de grupos de pressão.

 

Tal como Kant propunha, importa darmos de novo política à chamada governação global, para que ela deixe de ser mera navegação à deriva e uma consequente governança sem governo, onde as pilotagens automáticas e as lideranças políticas de fantoches e homens de plástico parecem não assumir a urgente lealdade básica face aos valores universais da democracia. A mais urgente das regulações está na recriação de um modelo de Estado de Direito universal que não se confunda com a hirarquia das potências que brote de superpotências ou desse seu sucedâneo a que chamamos G7.

Out 23

Contra esse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira

A verdadeira mãe da república do sol nascente é a Justiça. Porque foi pelo Direito que os timorenses conseguiram vencer a força. Por outras palavras, a independência conquistada é o resultado da aplicação dos princípios do Estado de Direito universal, tal como delineado por Kant em 1795, no seu folheto dito sobre a paz perpétua e que alguns ainda não conseguem vislumbrar como projecto de protecção dos mais fracos contra a violência dos mais fortes que querem ser potências. Por outras palavras, só pelo Direito podemos enfrentar a lei da selva dos Estados-Lobos-dos-Estados e evitar que, neste oceano da globalização, os peixes grandes comam os pequenos.

 

Não diremos, como alguns nostálgicos do socialismo estatista, que a presente crise exige mais regulação leviatânica. Diremos, como liberal que continuamos a ser, que a crise desta anarquia predadora precisa de um Estado de Direito universal, que ela precisa não de uma federação de potências estatizantes, com o consequente facto da hierarquia das forças, mas de uma república universal, que, segundo Kant e Arendt, sempre foi o exacto contrário do Estado universal. Só assim nos livraremos da presente “animal farm”, onde os Estados são todos iguais, mas há alguns desses animais que são mais iguais do que outros, promovendo um neofeudalismo nesta anarquia ordenada, com a consequente governança sem governo de uma pilotagem automática a que chamam globalização.

 

Mesmo as boas intenções onusianas de governança global podem cair na teia de uma intrincada burocracia, desse reino do ninguém onde a culpa costuma morrer sempre solteira, e assumir a imagem de uma vasta rede de aparelhos que se instala, como fortaleza exterior, num qualquer território, com as suas tendas de ar condicionado semeando, pelos pretensos desertos do vazio de política, a cartilha do “nation building” e do “state building”. Porque se não atenderem às raízes das identidades dos vários povos, tais aparelhos podem assumir uma feição neocolonialista, mesmo que assumam a bandeira do anticolonialismo. Já conheci alguns destes agentes lá pelas Lisboas, sempre em turismo de comissão em comissão, vendendo um qualquer subproduto ianque de exportação, e, por cá, apenas posso fazer as observações permitidas pelas cláusulas do meu contrato de agente de cooperação do Estado português, coisa que não me impede a liberdade académica, o universalismo e até um mínimo de patriotismo científico.

 

Apenas assinalo que, por cá há muitos amadores desse ensaísmo de certos conceitos abstractos, assentes nos tais “compounds” e que raramente ousam colocar os pés no tal caminho que se faz caminhando e onde é preciso dar tempo ao tempo. Não há boa ideia de república universal que resista a sacristães, sargentos e cipaios verbeteiros. Colonialismo não é apenas o chicote de capataz, mas também o engraxar das botarras do feitor, com alguns intelectuais caindo da tripeça, numa qualquer escola de passarinhos, que se julgam importantes só porque têm mobília de pau preto e secretários a quem ditam actas que ninguém vai ler. Há pesos mortos de atavismos plurisseculares, marcados pelo regime dos irmãos inimigos que continuam a asfixiar muitos sonhos.

 

Por mim, prefiro ir além do saber do fazer e do próprio saber-agir e continuar a procurar o saber pelo saber da velha Sofia, com muita Prudência e imensa Arte, ou Técnica. Há sempre o “consenso dos que pensam de forma racional e justa”. Porque o homem tende para o infinito sempre que se descobre finito e sabe que a liberdade não nasce da certeza, mas da incerteza. Por isso, ontem mesmo, lancei o primeiro blogue de turma, aqui na UNTL, dito “pensar direito”.

Out 23

O gnosticismo desenvolvimentista, a concepção ferroviária da história, o pronto-a-vestir e de como as caricaturas de Descartes enjoam em Timor

Por estas ruas, praças, corredores e salões, muitas vezes me recordo das teses de Clifford Geertz (1926-2006), o autor de Peddlers and Princes, de 1963, e de Negara. The Theatre State in Nineteenth Century Bali, de 1980, onde criticou alguns exagerados ideologismos provindos da concepção weberiana de Estado, os tais que reduzem o político ao monopólio da violência legítima e consideram a dimensão simbólica da política como mero aspecto lateral. Ora acontece que a política é sempre um trabalho simbólico, onde são fundamentais as teatralizações, as cerimónias e os rituais, pelo que existe uma concepção política oculta que marca o centro político de qualquer sociedade organizada de forma complexa. Porque há, sucessivamente, uma elite na governança e um conjunto de formas simbólicas que exprimem o facto de ser aquela que na verdade governa, através de inúmeros sinais de ostentação de poder que marcam o centro. Porque a política é a arena onde se manifestam de forma mais clara as estruturas da cultura, isto é, o conjunto das estruturas de significação pelas quais os homens dão uma forma à sua experiência.

 

Infelizmente, não me parece que, com tanto enviados pela governação global para estes territórios, tenha havido o cuidado em prepará-los em matérias de antropologia básica, ou até de simples cultura geral. O gnosticismo desenvolvimentista da concepção ferroviária da história continua a querer obrigar muitos povos a um percurso tipo pronto-a-vestir, decretando-os como não desenvolvidos, ou em vias de desenvolvimento, e condenando-os a percorrer as mesmas linhas e as mesmas estações que outros já abandonaram. Talvez para lhes poderem vender equipamentos mentais obsoletos ou muito pessoal em via de inetegração no quadro de excedentes.

 

 

 

 

 

 

 

Aqui, onde há fortes afectos de identidade nacional e radicadas sementes comunitárias, o modelo de “state building”, que a super-estrutura da governação global está a disseminar sem ordenamento, tem muitos segmentos de traduções em calão de manuais de aparelhos de poder, importados dos grandes centros comerciais da consultadoria internacional. É por isso que me sinto feliz por não ser um desses peritos de grande-hotel em missões de “copy and paste”, tal como já não tenho idade para voltar a ser assistente universitário à procura de primitivos actuais para uma tese de mestrado ou de doutoramento. Por isso compreendo bem como alguns bispos cá da ilha, em tom metafórico, trataram de denunciar certas caricaturas de Descartes que querem modernizar Timor à força de abstracções. E admiro cada vez mais o Professor José Mattoso. Que não veio para cá em videoconferência…

 

 

 

Bastava que todos estes agentes da governação global atendessem a pequenos estudos sobre a simbólica da política, da religião e do direito, que assumissem a humildade de largar certo capacete neocolonial, usado por tantos pretensos benfeitores internacionais à procura de ficha curricular. Acredito que os timorenses não vão enfiar algumas destas carapuças, porque o verniz estaladiço quebraria no “day after” ao do embarque desses profissionais dos reformismos tecnocráticos. Por mim, apenas me sinto feliz por aqui estar a ensinar e aprender coisas filosofantes das “artes bona”, pouco mensuráveis pelas lupas que apenas procuram utilidades.

Out 22

Só por dentro das coisas é que as coisas realmente são

O mais habitual nestas paragens, onde o normal é haver anormais, prende-se com as repentinas e frequentes quebras de fornecimento de energia eléctrica, não tanto pela ausência de ar condicionado, dado que a sombra ou a brisa a compensam, quanto, sobretudo, pela impossibilidade de funcionamento dos computadores, no acesso ao resto do mundo, com a inevitável “jet-rooter”. E não há pilhas de “backup” que aguentem esta sucessão de imprevisibilidades, a que só a sonhada barragem de Laga pode pôr cobro. No entanto, é comovente notarmos como, nos próprios bairros degradados, que estão bem próximos do circuito da barra que vai do City ao BNU, há inúmeros cafés e lojas com acesso à net, onde jovens passam horas e horas.

 

 

Infelizmente, também aqui aterram algumas aves de arribação com ar de intelectuais desempregados pela demografia das nossas veiga-simónicas reformas de ensino, das tais que não estudaram previsões demográficas e que para o exótico, do pretenso veni, vidi, vinci, pensam poder vender o peixe estragado de respectivas retóricas, gramáticas e didácticas, que julgam ser “artes liberales”. Mas acontece que, por cá, são mais precisas “artes bona” dos latinos, as tais que são passíveis de conciliação com uma adequada “ratio studiorum”. Também, infelizmente, de vez em quando, lá temos que aturar alguns subprodutos das entidades herdeiras das faculdades de teologia, transformados em profissionais da intriga, dado que pensam poder interferir nas teias da partidarite dos mauberes, como se eles fossem parvos e não soubessem distinguir o trigo do joio. Não faltam sequer candidatos a espiões desempregados, formados em “copy and paste” de pós-colonialismo e artigos de divulgação das “Twin Towers”, que nem sequer respeitam democracias como esta, feitas de milhares de mortos, em nome da honra e da pátria. Entre muitos exemplares de agrobetos e de revolucionários frustrados, encontro, felizmente, uma maioria de amantes deste lugar, portugueses à solta e homens de boa vontade, convertidos à alma destas paragens, com destaque para os militares da GNR e da PSP.

 

 

 

 

Há, sobretudo, uma enevoada metafísica nestes orientais trópicos, há pedaços de espírito que vão dando contornos às coisas, neste saudosismo dos antípodas, onde Pascoaes pode ser Pessanha e Pessoa volver-se em Wenceslau, para não falarmos em engenheiros agrónomos surrealistas que passam a Cinatti. E todos os dias, há um dia novo, uma noite de sonhos sem pesadelos, há palmares e mangueiras bordejando casas que são casas, nesta cidade de muitos fios ostensivos, motoretas sempre em bulício e essências que podem realizar-se pela existência, a dos homens concretos de carne, sangue e sonhos. Porque as essências apenas se objectivizam espiritualmente, quando as subjectividades pegam na alma e a deixam penetrar nos corpos, compreendendo. Porque só há almas quando elas se religam a um corpo, porque todos os transcendentes só o são quando situados pelos exercícios espirituais. Porque há um idealismo materialista, ou um materialismo idealista, aquele que diz, da natureza das coisas, que só por dentro das coisas é que as coisas realmente são. Continuo estoicamente panteísta.

 

 

 

 

Aqui me esqueço desse estado a que chegámos, com o Mário Lino e o Teixeira dos Santos a fazerem o trabalho sujo do insulto à líder da oposição, dessse estado a que chegámos que pensa que se escreve razão por entre tantas linhas tortas de razão de Estado, perdido que está pelos meandros do poder pelo poder. Por mim, confesso que, aqui e agora, estou cada vez mais do outro lado, que é, desses lados, não querer ter lado nenhum. Que é estar farto desses trejeitos dos que torcem e torcem, vergando, porque apenas têm medinho do quebrar, preferindo o jogo carreirístico dos que pensam que assim vergando não perdem o investimento que estão a fazer pelas vidinhas, saltando pocinhas e evitando as pingas de chuva, julgando que, dessa forma, não vão molhar-se e alcançar o sonhado lugar ao sol. Prefiro saudar o missionário franciscano aqui da ilha, vindo da Beira profunda, que vai de motoreta de aldeia em aldeia, escrevendo divino por tantos caminhos tortos e lodosos da terra dos homens. Por isso vou continuar a tentar escrever, ao sabor da pena, o que me vem à mente, mesmo que seja a quente, para os detectores de ferro frio nos inventariem no regaço das respectivas regulamentarices…

Out 21

Longe dos trabalhos de casa para a reeleição, do respeitinho ao chefe, do leitão à Bairrada e do camarão de Espinho

Acordo cedinho, pelo nascer do sol, percorro as ruas fervilhantes do nascer do dia, não leio jornais de Lisboa, estou farto da literatura de justificação dos ausentes-presentes, a que os que restam chamam memórias, a fim de promoverem um revisionismo da história, como se eles pudessem fazer interpretação autêntica dos factos em que foram actores, na maior parte dos casos, secundários, onde apenas soletraram guiões que outros produziram. Não comento as opiniões de Marcello Caetano sobre Freitas, Adriano e Kaúlza, nem as respostas que alguns deles vão dando contra Marcello e uns contra os outros. Portugal devia abrir as janelas e as portas, limpar o caruncho e o bolor e voltar ao navegar é preciso, mesmo para aqueles que têm de se submeter para sobreviverem, porque sempre devem lutar para que possam continuar a viver. Prefiro as ruas de Dili pela manhã e recordar o que ontem transmitia sobre a política, esse agregado humano superior à casa, onde o chefe político não é o chefe da casa, onde inventámos o Estado para deixarmos de ter um dono, um “dominus”, um “patrão”, um “oikos despote”. Prefiro recordar a velha história da doença da democracia, quando, desesperados, regressamos ao neofeudalismo de muitos donos, de muitos patrões, de muitos déspotas, de muitos protectores, de muitas compras do poder, de muitas cunhas, de muitos padrinhos e de intricáveis redes de micro-autoritarismos e sociedadezinhas de corte. Prefiro esquecer o quintalinho da Europa, de mão estendida à espera das migalhas da subsidiocracia e da mesa do orçamento. Prefiro um café pela manhã diante da ilha do Ataúro, prefiro passear ruas que ainda têm nomes como Jacinto Cândido, padrões com frases de Camões e edifícios com as cinco quinas. Prefiro não reparar nos recados que Jaime Gama deu há bocado aos senhores deputados do PS, porque, para serem reeleitos, devem fazer trabalho de casa, com leitão à Bairrada e camarão de Espinho. É bem mais interessante repararmos que para chegarmos à política, temos que sair do espaço doméstico da economia e entrarmos na praça pública pelo discurso, que em grego se dizia “logos”, isto é, razão, agregando-nos em tornos dos símbolos maiores que nos dão pátria, desde um Estado representativo, onde o chefe não é patrão, a uma religião secular que promova a comunidade entre as coisas que se amam, onde o primeiro pode ter poder, desde que assente na autoridade da segunda, porque autoridade é coisa que vem de autor, de fundador, da raiz donde brotamos e crescemos, a caminho das saudades de futuro.

Out 20

You might think that it was chuckling with amusement at the white men who come and go and leave all things as they were

O discreto autor do suspenso  Je Mantiendrai, cujo nome bem conheço, remeteu-me o seguinte excerto do livro cuja imagem encima este postal: “In the tropical East, where the sun sets at much the same time throughout the year, the evening’s ‘Last Post’ often coincided with the Muslim call to prayer or the gongs and bells of a nearby temple. Together they came to comprise a reassuring recessional at day’s end. The scent-laden air, once the sting of its heat had been drawn by the lengthening shadows, seemed at last to stir in moist sympathy with these serenades to silence and repose. Somewhere the flag had been furled and the watch had been set. Peace reigned; empires came off duty. Into crystal glasses tinkled ice cubes while rattan roofing reawoke to the first tut-tuts of the pale nocturnal lizard which Malays call the chik-chak. “You might think’, wrote the novelist Somerset Maugham, ‘that it was chuckling with amusement at the white men who come and go and leave all things as they were…”

 

Apenas lhe respondo com um abraço. Dizendo-lhe que tentarei o conselho de não perder uma peregrinação à ilha das Flores. Mais não posso dizer neste lugar público, a não ser este

 

Apelo à liberdade de blogar! Juntem-se!

 

Dear Friend, 10th October, 2008

 

At this moment, at least 80 people around the world, many of them bloggers, are behind bars because they dared to express their political opinions online. We are hoping that you will take a moment to add your name to a petition by parliamentarians and others calling for their release. The short statement below, calling for freedom of expression on the Internet, has been signed by over 50 legislators from all continents, and is now being circulated for signature to bloggers, journalists, citizens and groups. Once it has received a large number of signatures, it will be sent to heads of state and government, including those who are holding the prisoners, as well as to the UN Human Rights Council.

This Call for e-Freedom has been initiated by the e-Parliament, which is a new forum for democratic legislators.

For the first time in history, the internet enables us to have a truly global conversation about our common future – in our local communities, our national communities and our global community. In blogs, websites and discussion groups, people are sharing ideas, exposing corruption and building networks to solve common problems.

Yet in some parts of the world, people who express views that conflict with those of their leaders risk imprisonment, torture or death. This is not only a denial of their rights. It denies their countries the benefits of free debate, and it prevents the world from hearing their voices as our global conversation expands day by day.

We are now contacting you as a member of the blogging community in the hope that you would like to sign this Call for e-Freedom — to show solidarity with your fellow bloggers whose only crime has been to voice an opinion online.

The text that we are asking people to sign is as follows:

As Members of Parliament and Congress and as citizens, we call on all governments to allow their people to express their views on the Internet freely and without fear of retribution. In particular, we call for the release of those who are now in prison because they expressed opinions online that their governments did not like. We believe the Internet should be a space for free exchange among all the world’s people, where no one loses their life or their liberty for saying what they think.

You can add your name simply by visiting http://www.e-parl.net/efreedom and signing at the bottom of the page. If you can also encourage your friends and colleagues to add their names, we would be most grateful.

We look forward to hearing from you.

Sincerely,

 

Graham Watson MEP , Alliance of Liberals and Democrats, European Parliament

Sirpa Pietikainen MEP, European People’s Party (Christian Democrats), European Parliament

Ana Maria Gomes MEP, Socialist Group, European Parliament

Anders Wijkman MEP, European People’s Party (Christian Democrats), European Parliament