O estado febril da sociedade tem-se agravado, apesar do campeonato das parangonas e no dia em que vai abrir uma televisão sensacionalista nos domínios da informação. Com a polícia de segurança armada em polícia de costumes, eis o belo estado de suprema hipocrisia a que chegámos. Não tanto pelo erro dos guardas quanto, sobretudo, pelo cala-te boca das ministerais figuras das pastas do interior e da cultura, talvez para não ficarem associadas a mais uma das anedotas do clássico policiesco da velha senhora que, ao contrário desta, gerava decretos com força de lei que admitiam o tique da devassa de Pina Manique. Apenas resta reconhecer a esquizofrenia deste Estado megalómano, que é grande demais para os pequenos problemas do quotidiano, onde um cabo de esquadra actua como se fosse, na rua da cidade, o “oikos despote” lá de seu lar ainda não sujeito à APAV. Um Estado com essa mania das grandezas que, contudo, é pequeno demais para a crise que nos envolve, sentindo-se plenamente impotente para os concretos desafios do nosso tempo.
A desinstitucionalização em curso faz com que regressem os tradicionais compadres e comadres do país da classe político-jornalística, bancocurocrática, capitaleira e castífera, com muitos anjos, antes da queda, procurando tacho entre os capatazes e os feitores dos ricos. É natural que, a muitos, apetecesse o regresso ao regime das velhas medidas de segurança daquele Estado de Legalidade do bate primeiro, protesta depois. Dessa máquina trituradora de opositores, adversários e dissidentes, em nome dos superiores interesses da Razão de Estado, concentrando os monopólios da avaliação, da classificação de serviço, da definição técnica, da inquirição e do procedimento disciplinar. Porque os interesses profundos da pátria têm mais que fazer do que preocuparem-se com a mercearia dos direitos, liberdades e garantias. Aliás, os polícias, voltados sobre si mesmos, tal como muitos outros presidentes e directores, incluindo os que ainda restam como gerais ou regionais, voltados sobre o próprio umbigo aparelhístico, dirão, em desabafo íntimo, que esta não é a sua polícia, porque ainda não está adaptada ao grande programa informática do número único e do chip único.
As cinzas regressam e enegrecem as campanhas, prosseguindo esta insensível derrocada do bom senso elevada ao ridículo, quando estão, sobretudo, a desabrochar as sementes daquela ditadura da incompetência que marca o fim da racionalidade normativa de uma legitimidade marcada pelas instituições da legalidade e da burocracia racionais, onde a competência deveria ser superior ao patrimonialismo da compra do poder e à lealdade neofeudal de outras legitimidades, desde a do sultão à do profeta, num tempo em que os heróis perderam o carisma e os reis já não são taumaturgos. É natural que, assim, a confiança pública saia manchada por estas sucessivas denúncias de compressão e condicionamento das liberdades de expressão de pensamento, dominadas pelo monopólio da palavra dos demiurgos.
Eis as consequências da música celestial dos Praces e do ritmo de parecerística, “outsourcing”, subsidiocracia e desinstitucionalização, onde a única literatura de justificação do poder tem a ver com o cantarolar de uma abstracção importada, mas estranha à nossa índole, esses vermes de tecnocracia que inverteram a tradional autonomia dos grandes corpos do Estado.
Nem as próprias universidades escaparam a este processo, usando a decadência do multitudinário neofeudalizado pelos instalados, a que chamavam gestão democrática das escolas e autonomia universitária. Os velhos donos do poder corporativo já se adaptaram à nova farpela e acrescentaram, ao anterior ritmo do negócio universitário, que chegou quase a ser dominado pelos colaboradores de Veiga Simão no Maputo, transformados em reitores de província, uma eficaz entrada no recrutamento dos homens de sucesso, a que chamam sociedade civil, pedindo aos restos da vida empresarial e bancária que lancem os novos esquemas do neocorporativismo, não faltando os sempiternos desfazedores do boneco, os tais que aplicam a teoria da conspiração dos avós e netos para desfazerem todos os esquemas institucionais que mantaram criaturas institucionais que já não obedeciam aos pretensos criadores.
O poder corrompe, o poder enlouquece, o poder à solta corrompe absolutamente e enlouquece absolutamente, especialmente num país que já não sabe rir nem sorrir, perdido numa federação de endogamias e de pequenos quintais autárquicos, onde a personalização do poder dos micro-autoritarismos sub-estatais decreta quem pode ser o dissidente ou o opositor, criando mecanismos regulamentares que lhe comprimam a cidadania ou o sujeitem à processualização típica da velha persiganga. É pena que a quantidade de energia que gastamos nestas falsas mudanças fiquem para sempre naquela zona do desperdício a que os analistas de sistemas chamam lixo.