Invocando um dos teóricos fundamentais do “doceanismo”, irmão-Gémeo do nosso vintismo: Francisco Martínez Marina (1754-1833) Inspirador do liberalismo espanhol. Eclesiástico perseguido pela Inquisição, chegando a reitor da universidade de Alcalá de Henares. Autor de Teoría de las Cortes e Grandes Juntas Nacionales de los Reinos de León y Castilla, onde proclama que os tais Áustrias e Bourbons produziram uma monstruosa reunião de todos os poderes numa pessoa, o abandono e a abolição das Cortes e três séculos de escravidão e do mais horroroso despotismo. Procurando retomar o contratualismo e o regime misto, herdeiro das teses de São Tomás de Aquino e de Suarez, reflecte um ambiente que teve alguns reflexos nalguns dos principaisa textos da própria revolução de Cádis: nada oferece a Comissão no seu projecto que não tenha saido consignado do modo mais autêntico e solene nos deferentes corpos da legislação espanhola, a não ser que se considere como novo o método com que se distribuíram as matérias, ordenando-as e classificando-as para que formassem um sistema de lei fundamental e constitutivam de maniera que nele estivesse contido, com enlace, harmonia e concordância quanto têm disposto as leis fundamentais de Aragão, de Navarra e de Castela
Nós, portugueses, fomos primitivamente vertebrados em torno daquilo que Jaime Cortesão qualificou como os factores democráticos da formação de Portugal. Desde os alódios de camponeses livres à difusão da terra livre através dos minifúndios, desde o consensualismo dos concelhos à estruturação das próprias Cortes Gerais. Essa democracia de marca evangélica, nascida de baixo para cima, que conformou infra-estruturalmente a comunidade, ou república, antes de chegar ao aparelho de poder. A tal respiração do ar livre dos foros e costumes que sempre permaneceu no povo, e entre o povo, mesmo quando, nas supremas alturas do poder ,se respirava o autoritarismo.
Jaime Cortesão considera que os caboucos da democracia em Portugal não descem no tempo às profundidades da administração romana; cavaram-nos as classes servas quando, fugidas a uma economia agrícola e doméstica, se entregaram ao tráfico e à indústria naqueles burgos cuja actividade fora vivificada pelo comércio marítimo, e o novo espírito da cristandade. São essas tendências universalistas, desenvolvidas durante a nossa Idade Média que eclodiram e triunfaram durante a revolução que levou ao trono o Mestre de Avis, determinando a formação social predominante, a missão histórica e o carácter ideal da Nação.
Também a actual jovem democracia nasceu de factores reais de libertação, que vieram do mundo rural para as cidades, desde as manifestações dos católicos ao simbólico comício do PS da Fonte Luminosa, de 19 de Julho de 1975, num processo que teve o principal desencadeador na jornada cívica das eleições do dia 25 de Abril de 1975, onde o povo escreveu liberdade por linhas tortas, manifestando uma intuição colectiva contra a propaganda revolucionária, o vanguardismo político-militar e a agressão ideológica da esquerda totalitária, que quase monopolizava os nacionalizados meios de comunicação de massa.
Contudo, os actuais partidos-sistema, tanto à direita como à esquerda, perderam o sentido dos sagrados combates por princípios e as palavras que emitem são como as dos sacristães que perderam o sentido dos gestos.
A opinião pública, depois de meio século de preconceito da ordem, de alguma balbúrdia revolucionarista e de muito devorismo pós-revolucionário, talvez já não siga os ditames tanto dos velhos marechais da democracia como das senatoriais figuras tutelares do Estado a que chegámos. Mas as facções dos controleiros jornalísticos não podem ter a ilusão que a manipulação passou para as novas governantas do sistema.
Podem não funcionar os necessários serviços de informação estratégica. Podem mostrar-se ufanos os membros do grande lobby que vai babando coisas que as instituições militares e eclesiásticas detestam. Mas quando a velha nobreza, da função militar, e o velho clero, da função moral, se voltarem a aliar ao povo, todos, em cortes gerais, talvez se possa recompor e regenerar o presente tecido político, onde já não há apenas fumos de corrupção, mas desavergonhadas manifestações do periscópio dos submarinos da pressão oculta.
O maquiavelismo, além de uma péssima moral, é também uma péssima política (Wilhelm Ropke). Parecendo vencer no curto-prazo, acaba por também ser uma péssima política, porque perde a aparente razão logo que desaparece a breve interrupção do vazio de política, quando os povos, aparentemente anestesiados, recobram a normalidade e descobrem todos meandros das pressões ocultas dos vários neo-corporativismos que estão a transformar a democracia numa democratura, para utilizar-se uma expressão consagrada por Guy Mermet em Démocrature. Comment les Médias Transforment la Démocratie, 1987, quando refere a emergência de um novo sistema social, onde os media exercem sobre os actores da vida social e sobre o público uma espécie de ditadura doce, marcada pelos funcionários do pronto a pensar que fornecem aos ouvintes e aos telespectadores verdades pré-digeridas e directamente assimiláveis.
Porque este sistema central de valores gira em torno de um centro ainda mais fundamental que a aceitação e incorporação na autoridade. Manteve-se assim um novo modelo de corte, expressão derivada do latim cohors, cohordis, aquela parte da casa romana que estava ao lado e complementava o hortus, o jardim. Um nome que tanto deu a côrte dos reis, com um circunflexo no o, donde veio o cortês, a cortesia e o cortesão, como se manteve numa designação de parte da casa rural portuguesa, a córte dos animais (com acento agudo no ó), enquanto na língua inglesa deu court, com o significado de tribunal.
Já Norbert Elias, na sua frustrada tese de doutoramento dos anos trinta considerava a corte real, nomeadamente a francesa, gerou um modelo de centro político, ao contrário do regime aristocrático britânico, que tornou as elites locais independentes do centro e ao estilo das universidades alemãs que foram impermeáveis ao iluminismo. É daqui que deriva aquele tipo de pessoal político que circula junto do centro do poder, não dando conselho ao príncipe, mas levando-lhe notícias, através da intriga de salão.
Não costumamos reparar nas nossas democratíssimas leis e costumes fundamentais, nomeadamente de 1385 e de 1640. Não invocamos o projecto de Novo Código de António Ribeiro dos Santos em 1783. Esquecemos a proposta de Carta Constitucional de Silvestre Pinheiro Ferreira de 1814. O projecto conciliador da Academia das Ciências, logo em 21 de Outubro de 1820. As tentativas de Frei Francisco de São Luís na mesma altura. A Carta proposta por Palmela em 22 de Fevereiro de 1821. Ou outras propostas feitas pelo embaixador em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, o conde do Funchal, em 1822 e 1823.
Continuamos a pensar apenas nas divergências domésticas ocorridas entre 1823 e 1826, esquecendo que foi a chamada balança da Europa que nos proibiu quase expressamente de enveredarmos por um sistema de governo representativo.
Com efeito, nesse período, a Espanha absolutista, a Santa Sé, a Áustria, a Prússia e a Rússia opuseram-se terminantemente a tal intenção, incluindo a própria convocação de Cortes à maneira tradicional. Nem sequer admitiram a concessão de qualquer Carta, ao género da francesa de 1814. E tanto a Inglaterra como a França não se empenharam no sentido de apoiarem as intenções de D. João VI nesse sentido.
Metternich, numa carta de 25 de Julho de 1823, manifestou mesmo fortes reservas ao cumprimento da promessa de D. João VI, depois da Vilafrancada, considerando que nem sequer era admissível uma carta constitucional à maneira francesa, porque aqui não se verificariam os condicionalismos da Restauração de Luís XVIII. Idêntica atitude era adoptada por Chateaubriand, dado que os dois temiam as consequências desse processo em Espanha. Aliás, este, em 12 de Fevereiro de 1824, num ofício enviado a Hyde de Neuville, nem sequer admitiu a reunião das cortes tradicionais portuguesas.
Aliás, em Setembro de 1823, os representantes diplomáticos da Áustria e da Rússia reiteravam esses pontos de vista, reafirmados pela conferência de Paris da Santa Aliança de 14 de Agosto de 1824, que reuniu representantes da Áustria, da Rússia, da Prússia, da França e da Espanha. Especialmente insistente e pressionante foi a atitude do governo de Madrid, preocupado com a carta de lei de 4 de Junho de 1824, que repunha a constituição histórica portuguesa. Houve assim uma intromissão da Europa contra-revolucionária nos assuntos internos de Portugal, para utilizarmos as palavras de António Viana.
Os exemplos citados parecem-nos suficientes para clamarmos pela verdade na história. A solução está em estudarmos um pouco mais. Em irmos além da literatura de justificação dos vencedores. Em superarmos a historiografia de guerra civil ideológica que nos continua a algemar, e que não dá lugar aos moderados, bem como aos que tentam conciliar a tradição com a liberdade, reagindo contra os absolutismos da monarquia despótica ou de outros poderes idênticos, apenas de sinal contrário.
Diremos que as tradições democráticas portuguesas datam dos alvores do Portugal político, nascido de uma Reconquista cristã marcada pela aliança entre o rei e o braço popular, dos municípios burgueses e rurais aos agricultores livre, donos da própria terra minifundiária.
São esses factores democráticos da formação de Portugal que levaram às Cortes de 1254, já participadas pelo povo, bem como à criação do primeiro Estado pós-feudal da Europa, na sequência de Aljubarrota e já com umas Cortes de Coimbra, onde foi aplicado o princípio do quod omnes tangit ab omnibus decideri debet (o que a todos diz respeito por todos deve ser decidido…).
Isto é, Nação-Estado dos portugueses nasceu da Comunidade para o Poder através de uma autodeterminação sustentada por proprietários livres, rurais e burgueses. E mesmo quando o Estado-Poder foi ocupado pela degenerescência dos imperialismos e soberanismos absolutistas, a Comunidade sempre soube conservar o minifundiarismo da sociedade civil, considerando o Estado-Poder como algo de estranho e de estrangeiro…
Assim, a restauração da nossa independência em 1640 foi justificada pelas teorias cristãs da soberania popular, servindo de inspiração a todos os consensualistas que resistiram ao absolutismo iluminista, monárquico ou jacobino.
Até a Revolução Liberal de 1820 foi, pelos primeiros revolucionários, qualificada como simples restauração das antigas liberdades usurpadas pelo despotismo ministerial e pelas ocupações e protectorado de franceses e ingleses. E mesmo certas facções do tradicionalismo miguelista procuraram a legitimidade da constituição histórica, quando, de acordo com as teses do Visconde de Santarém, se tentou restaurar a legitimidade, nas Cortes Gerais de 1828, mas que foi traída pelo uso do cacete despótico e do terrorismo de Estado, com tribunais especiais, perseguições e enforcamentos.
Também a partir de 1852, o liberalismo procurou regenerar-se e nacionalizar-se, tal como o inicial republicanismo de Henriques Nogueira e Teófilo Braga, mergulhou as respectivas raízes no medievalismo democrático.
No seio da própria República gerou-se a Renascença Portuguesa, com o saudosismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo Coimbra, enquanto Fernando Pessoa procurava um nacionalismo liberal, o ser liberal dentro de um conservantismo português, animado pelas saudades de futuro de um quintimperialismo cultural. Impõe-se proclamar, de uma vez por todas, que nem Portugal nem a Democracia nasceram em 1974.
Leonardo Coimbra, considerando que a sociedade portuguesa não era dominada pelo catolicismo, mas por um cepticismo superficial, estéril e esterilizador, tentou, sem êxito, lançar as sementes para um renovação espiritual democrática. Em 1926 atacava a escorregadia tendência dum regresso a formas dogmáticas de imposição pela violência, criticando o facto de a democracia não ser assumida como uma actividade espiritual e como uma instituição, mas antes como um estado e como um método. Dois anos depois, defende a democracia como o império racional e consentido da lei, em vez do domínio violento e irracional de qualquer caprichoso imperialismo individual ou de grupo, e como o governo da maioria por intermédio dos seus representantes directamente escolhidos, onde a pedra angular é o valor social da maioria.
Voltando ao fio do discurso e fazendo uma pequena paragem em 1640, importa sublinhar que os nossos restauradores da independência nunca precisaram de utilizar, nos respectivos textos de combate e de teorização, expressões como Estado e Soberania, ao contrário do que fizeram outros portugueses adeptos do filipismo, como Salgado Araújo ou Miguel de Vasconcelos.
A teoria básica dos nossos teóricos da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, permaneceu ancorada nas teses daquela escolástica peninsular que, a partir de Francisco de Vitória, Menchaca e Covarrubias, já tinha dado argumentos para as célebres Alegações de Direito, de 22 de Outubro de 1579, elaboradas pelos juristas Félix Teixeira, Afonso de Lucena, Luís Correia e António Vaz Cabaço, onde, sustentando-se os direitos de D. Catarina, se defendia o princípio de à república pertencer escolher o rei, trespassando nele o poder, já que a liberdade, por direito natural, pertenceria à comunidade.
A escolástica peninsular, também dita “segunda escolástica” e neo-escolástica dos séculos XVI e XVII, situou-se entre o renascentismo e o barroco, apresentando-se como a doutrina de combate à teocracia e à tradição alemã de ordem e autoridade.
O primeiro impulso, do século XVI, foi dado por dominicanos como Francisco de Vitória, a que se seguiu a vaga jesuítica dos começos do século XVII, onde se destacaram Francisco Suárez e Luís de Molina e cuja influência se estende aos juristas portugueses da Restauração.
Essa “falsa e detestável seita dos Monarcómacos republicanos Jezuitas e seus sequazes” com “invenções exquisitas“, como são qualificadas pela Dedução Cronológica e Analítica do Marquês de Pombal, onde o próprio Velasco Gouveia passa por ter doutrinas “destrutivas de toda a união cristã e de toda a Sociedade Civil“, revelando uma “crassissima ignorância de Direito” e sendo autor de um “informe, absurdo e ignorante livro” porque defendia que “podem os Reinos e Povos privar Reis intrusos e Tiranos, negando-lhes obediência“, quando “não havia contra os mesmos Reis mais recurso que o do sofrimento” (sic).
Essa neo-escolástica peninsular, que marcou aquilo que Vamireh Chacon qualificou como o humanismo ibérico, defendendo o consensualismo, acabou por ser estigmatizada pelo posterior despotismo esclarecido e pelos philosophes que o serviram, os quais lançaram sobre o movimento uma estúpida leyenda negra que talvez apenas tinha sido superada depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente pelos juristas antinazis que pugnaram pelo regresso ao direito natural.
Esquece-se nomeadamente que um dos inspiradores teóricos da revolução liberal espanhola de 1812, Martínez Marina, invocar esses autores em nome do combate ao absolutismo.
Estes fundamentais factores democráticos da formação de Portugal, avessos à teocracia, ao concentracionarismo e ao absolutismo, inseriam-se, aliás, numa corrente europeia consensualista que, depois de ser magistralmente reinterpretada por autores como Bento Espinosa, Francisco Suárez e Johannes Althusius, vai servir de fundamento para uma precoce manifestação da soberania popular no nosso 1640, da mesma maneira como levou ao separatismo das Províncias Unidas, à Glorious Revolution, à partida da Mayflower ou à constituição da Confederação Helvética.
Julgo fazer parte de uma dessas tribos portuguesas dos vencidos da vida que continuam a acreditar que é possível uma democracia portuguesa, através de uma releitura tradicionalista do processo de resistência nacional.
Para tanto, importa, por exemplo, que o nosso conservadorismo deixe de ser conservador do que está e assuma a autenticidade de apenas conservar o que deve ser. Da mesma forma, conviria que os nossos revolucionarismos e reformismos tivessem a humildade de se enraízarem no chão moral da nossa história, não sofrrendo daquele habitual desviacionismo que os transforma, muito pós-revolucionariamente, nos mais reaccionários defensores do statu quo.
Para tal, torna-se imperiosa a ultrapassagem das categorias fratricidas que nos levaram à última e permanecente guerra civil, onde os tradicionalistas não puderam apresentar uma solução superadora da dicotomia miguelistas-pedristas que, até 1974, se reproduziu em salazaristas-antifascistas.
Julgo que só poderemos reencontrar o consensualismo perdido se reassumirmos o profundo republicanismo das nossas teses tradicionalistas, bem como o activo sentido anti-soberanista do nosso sentido de independência.
Assim sendo, pensando o Estado-Principado como algo que deve depender do Estado-República e concebendo este segundo de forma federativa, como um concelho em ponto grande, também temos de exigir uma comunidade maior, à maneira da Res Publica Christiana ou do Jus Gentium.
A chamada soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível pertence ao leviatânico Estado Moderno, que expropriou os reinos, os únicos legítimos herdeiros da civitas da República Romana e da polis ateniense.
O meu reino ou a minha república são de outro mundo. De um mundo não moderno, chamem-lhe anti-moderno ou pós-moderno. É o reino como res publica, o reino que, nos séculos XII e XIII, inspirado em Aristóteles e Cícero, se revoltou contra a dominância do Papado e do Imperium e proclamou que rex est imperator in regno suo.
O reino de S. Tomás e do nosso Infante D. Pedro, o reino dos comuns, feito de um principe com toda a comunidade da sua terra.
Este reino tinha um Principe, tinha um poder supremo, uma vontade de independência. Mas o poder supremo era da mesma natureza dos poderes que lhe estavam abaixo, onde o vértice era apenas uma parte da pirâmide do poder da polis, uma parte que, sendo parcela do todo, era, não obstante, representante do próprio todo.
Acontece que este reino foi, a partir do absolutismo teocrático, expropriado pelo renascimento do Império, num processo que passou da república teocrática dos luteranos ao L’État c’est moi dos despotismos esclarecidos, continuando a mesma natureza despótica, quando se substituiu o rei absoluto pelo povo absoluto, da Revolução francesa à Revolução Soviética.
Neste tempo de globalização, de diluição das diferenças nos todos unidimensionais das modas culturais, só aqueles espaços culturais que estão cansados de autonomia se auto-flagelam, derribando as pedras vivas dos homens livres. Esses que no silêncio dos claustros semeiam, no longo prazo, o valer a pena continuarmos a autonomia cultural portuguesa.
Agora não é o fradesco caceteiro, o carbonário bombista, a tesoura do sargento situacionista nem o orgasmo do vanguardista revolucionário, mas o decadentismo de alguma classezinha burguesóide, pretensamente aristocrática, que, com um fervor persecutório, trata de denunciar todas as subidas sociais, principalmente as que utilizam a via político-partidária.
O político que não tiver a linhagem de certos colégios finos da lisboetice, com o consequente apoio em certa classe de investigadores de escândalos, e também não souber compensar essa deficiência pelo recurso a adjuntos, secretárias ou assessores de imprensa bem relacionados com o meio, corre o risco de sofrer o estigma do socialmente incorrecto.
Por outro lado, o mesmo político costuma perder o norte quando trata de se pautar apenas pela legalidade, isto é, quando considera que é permitido tudo quanto a lei não proíbe, esquecendo que nesses domínios há outros padrões. Porque, como diz a máxima do sapateiro de Braga, ou há moralidade, ou comem todos…
A casta banco-burocrática que regressa não admite certos acessos à elite no poder e pretende continuar a instrumentalizar políticos docilizados pelos salões da nossa praça.
Foi talvez por isto que os nossos líderes partidários, cansados de olharem para o umbigo donde brotaram, costumam entrar em regime de contactos com o país e da consequente chamada aos independentes. Uns, muito poujadianamente, vão até aos pescadores comer caldeirada e junto dos agricultores discutir mamites. Outros decidem enveredar pelo banho de independentes e pelas chamadas lideranças abertas. Alguns preferem visitar o país profundo, em regime de estudos gerais, chamando gente fina.
Por outras palavras, todos os partidos quase parecem reconhecer que não têm ideias nem propostas. Todos ensaiam uma cosmética de mudança para que tudo possa continuar como dantes, isto é, para que os aparelhos permaneçam incólumes e os canalizadores críticos, chamados a comentar a actualidade dos telejornais, permaneçam os mesmos partidocratas.
E quando os líderes entram em black out à maneira da futebolítica, eis que nos surgem uns números dois, todos apparatchiki, com arzinho yuppie a debitarem a cassette do timoneiro.
São, aliás, os próprios partidos que reconhecem que a partidocracia deixou de cumprir a sua função, mas nem por isso parecem dispostos a comprimir os respectivos privilégios de monopólio da representação política.
Eis as principais causas que levam a que se agrave a distância entre o país das realidades e o país dos altifalantes político-partidários. É por isto que a tal maneira de fazer política pode atingir as raias da repulsa. Não tanto pelos militantes e pelos partidos, quanto pelo processo de comunicação política que trata de utilizar as vias oligárquicas instaladas nos actuais mass media.
Não é assim que entraremos na democracia de opinião, com esta opinião crítica de canalizadores de opinião e com estes partidos marcados pela lógica da acção colectiva estudada por Mancur Olson. Aquelas organizações onde a motivação para a participação não é o interesse colectivo, mas o benefício selectivo do ganho individual, onde a cenoura de uma recompensa é o único móbil que leva à militância, entendida como mero investimento privado no mercado político. A tal forma de reconhecer que o homem é um animal interesseiro e egoísta e que as boas organizações partidárias deste tempo de homens de sucesso são aquelas onde, muito maquiavelicamente, os vícios privados da ambição desmedida e da vontade de poder se transfiguram em virtudes públicas, à imagem e semelhança da teologia do mercado…
Se voltámos ao normal-anormal da decadência, a nível do chamado país nominal ou país político, eis que as correias de transmissão de tal processo ao país das realidades continuam a ter olhos tão decadentistas quanto o óleo da decadência que as lubrifica e têm de transmitir. Com efeito, quase todos os nossos comunicadores e opinadores, que, há pouco mais de um quarto de século, alinhavam pelo diapasão do Maio 68, se, por um lado, sentem um enorme tédio face aos travestis de esquerda com que alguns beatos progressistas se recobriram, eis que, por outro, não parecem também entusiasmar-se com os sinais de aparente mudança assumidos pelos líderes da oposição que vamos tendo.
Com efeito, em momentos de campanha eleitoral, pedem-nos, quase sempre, que, em nome do voto útil, passemos uma espécie de cheque em branco, não a concepções do mundo e da vida, culturas políticas ou programas de governo, mas antes a estilos de personalização do poder, entre versões actualizadas dos situacionismos vigentes e regressos ao passado imediatamente anterior, com a direita a invocar os seus fantasmas e a esquerda a difundir os respectivos complexos. Não nos pedem uma escolha, mas uma simples adesão referendária, apenas solicitam a subscrição de cláusulas tipificadas, dado que os pretensos contratos sociais, que vagamente nos apresentam, estão cheio de cláusulas gerais e de conceitos indeterminados, numa terra de ninguém, onde os efectivos intérpretes acabam por ser as cinzentas segundas figuras que se vão escondendo por trás dos cabeças de lista.
Tudo é bem mais difícil quando o incómodo do desencanto se apodera de alguém que, como o subscritor destas linhas, se sente de mal com a esquerda, por não ser de esquerda, mas que também corre o risco de também ficar de mal com a direita a que chegámos, por não lhe reconhecer legitimidade para uma representação de todo o espaço do centro e da direita.
Educados por uma concepção de democracia que a confunde com a vontade de todos, ainda não tratámos de ir ao fundo clássico da própria democracia, descobrindo que, de Rousseau a Kant, para não falarmos no mais antigo Francisco Suárez, todos lhe deram como fundamento uma mais ampla vontade geral. Isto é, só há autêntica democracia quando todos temos suficiente civismo decidimos, sem pensarmos nos nossos próprios interesses individuais, mas apenas no interesse do todo.
Só quando cada cidadão puder decidir como se ele próprio fosse o todo, só quando cada um de nós assumir o imperativo categórico, quando, da nossa conduta, se puder extrair uma máxima universal é que o todo será maior que a simples soma das respectivas parcelas.
Uma democracia que apenas seja sondajocracia viverá do efémero dos simples estados de graça, desse império do vazio, dependente da tensão que vai da mediacracia à rebelião das massas.
Os sistemas eleitorais não são modelos que vivam no céu dos princípios, não pertencem apenas a um dever-ser que transcende as circunstâncias do tempo e do lugar. São assuntos demasiadamente sérios para ficarem apenas reservados para o discurso hermético dos legisladores construtivistas. Desses que, mobilizando gabinetes técnicos de leitores de leis estrangeiras, de enciclopédias, de antologias e dos grandes quadros estatísticos das contas eleitorais, nossas e dos outros, acabam por esquecer a diferença sociológica e cultural de um determinado grupo histórico que aspira a uma autodeterminação política permanente, a esse referendo de todos os dias que faz as nações.
Passos Manuel, em 18 de Outubro de 1844, observou que o defeito radical das nossas Constituições está na organização, e na base do sistema eleitoral.Todas elas conferem o direito de votar aos empregados assalariados pelo Tesouro. Este funesto artigo é a origem de todos os males. O funcionalismo está encarnado em todas as nossas Constituições…Nos outros países a palavra Parlamento significa a reunião dos Representantes da Nação; em Portugal não significa senão a reunião dos delegados do Executivo… O voto das contribuições deve pertencer a quem as paga e não a quem as recebe
Com efeito, não nos parece possível analisar um projecto de lei eleitoral abstraindo do concreto sistema de partidos que lhe dá vida, bem como do próprio ambiente social e político que, com ele, tem relações de troca, naquilo que, nos dias que correm, se chama relação Estado/ Sociedade.
Vivemos num regime de estabilidade política onde dois partidos dominantes, mesmo que um pretenda ser de militantes e outro seja dito de eleitores, com tendência para ser de cartel, têm conseguido a alternância, comprimindo as franjas partidárias existentes, impedindo o aparecimento de novos partidos (veja-se o percurso do Partido Renovador Democrático e do Partido da Solidariedade Nacional), eliminando as experiências de governos de coligação (a Aliança Democrática inviabilizou a autonomia do CDS e a Frente Republicana e Socialista mobilizou integradamente os partidos que gravitavam em torno do PS, para não falarmos dos principais dissidentes do PCP, posteriores a 1989, depois incluídos no PS), não admitindo a hipótese de governos extra-partidários de iniciativa presidencial e até neutralizando a existência de partidos com funções tribunícias (vejam-se os recentes fracassos do PCP e do Partido Popular). Aliás, pouca diferença moral faz o sonho mexicanizante do I Governo PS do novo partido revolucionário institucional do Bloco Central, ou o Estado laranja do temido cavaquistão dos posteriores jobs for the boys. Ambos os grandes partidos, quando estão no poder esquecem a heroicidade de assentarem em eleitores ou militantes e tendem para o autismo da cartelização em nome dos bons fins da estabilidade política.
Aliás, os mesmos estão hoje também integrados nas maiores forças políticas europeias, no Partido Socialista Europeu da Internacional Socialista e no Partido Popular Europeu, vivendo esta nova forma de atracção centrípeta supra-estadual.
Logo, uma lei eleitoral não é neutra, porque tanto pode tender para reforçar o statu quo, do sistema partidário e do modelo de relações de poder, como a apostar numa efectiva mudança, para mais Estado, mais democracia, mais política, mais cidadania, mais justiça e mais sociedade.
As sucessivas propostas de reforma das leis eleitorais que, pós-revolucionariamente,nos têm entretido, apesar da roupagem vocabular abrangente, têm sempre optado pela rotina, isto é, pela manutenção do modelo bipolarizador existente. Com efeito, qualquer boa intenção que vise a responsabilização do deputado eleito e uma aproximação directa do eleitor ao eleito tem como inevitável consequência uma centralização da eleição local, dado que os grandes partidos continuariam a ser os únicos capazes de captarem candidatos para os círculos uninominais.
Não haveria, assim, alterações estruturais do sistema, dado que se reforçaria o monopólio da representação político-parlamentar pelos partidos existentes, obrigando-se à própria despolitização dos mesmos, dado que a existência de círculos uninominais sem a admissão de candidatos independentes ou de partidos regionais levaria ao recrutamento de figuras locais de influentes, desde os financiadores de campanhas e partidos aos que se recrutam longe do local, mas que têm imagem mediática. Isto é, entrariam pela porta, mesmo que das traseiras, os fantasmas que em vão se procuravam defenestrar. Desta forma se instrumentalizariam partidariamente os independentes e se criariam segmentos de eleição autárquica dentro das eleições gerais. O que seria acirrado com o aparecimento de televisões regionais e poderia atingir o nível do dramalhão bairrista se ainda estivesse em discussão a chamada regionalização.
Da observação da história demoliberal portuguesa, podemos concluir que, em todos os regimes políticos, há sempre uma efectiva distância entre o que se proclama, ou programa, e o que se pratica, ou se cumpre, conforme a lei eterna da vida individual ou colectiva, onde há sempre aquele espaço das boas intenções de que está o inferno cheio.
De qualquer maneira, verifica-se que a democracia anterior a 1974 não permitiu adequadas alternâncias do poder e caiu sempre nas teias de um partido-sistema, como na I República, ou de um conjunto de partidos-sistema, como na monarquia constitucional. Um modelo tão rígido e quase tão inautêntico quanto o formal partido único do salazarismo.
Quando os sistemas políticos são fechados, as mudanças efectivas só podem concretizar-se através de golpes de Estado, com as inevitáveis intolerâncias. E a isso nunca obstou a mudança do sistema eleitoral, já que várias tentativas levadas a cabo durante o rotativismo da monarquia liberal acabaram sempre por manter o que estava. Porque a fonte da distribuição do poder não provinha das eleições, mas de quem as podia manipular. A única revolução introduzida pela via eleitoral veio da experiência sidonista, com o estabelecimento de um quase sufrágio universal, num modelo depois repetido em 1928, com a eleição de Carmona.
Isto é, o sufrágio universal em Portugal começou por ser inversamente proporcional às declarações programáticas democratistas, levando, paradoxalmente, a que o posterior autoritarismo se viesse a fundar no populismo e no referendarismo. E não serve como argumento dizer-se que as eleições de 1918 e de 1928 surgiram em circunstâncias extraordinárias de compressão da liberdade, porque todas as eleições fundadoras dos nossos regimes políticos sempre foram efectuadas em ditadura ou em cima das brasas ainda vivas de uma prévia guerra civil.
Assim aconteceu em 1820, 1934, 1836 e 1911. E entre 1911 e 1934 há mais coincidências do que diferenças, pois, na prática, em ambos os casos apenas concorre um só partido, o que estabelece as regras do jogo e que controla, administrativa e politicamente, o próprio jogo. Aliás, na votação para a Constituinte de 1911, com listas feitas pelo governo provisório, chegou a dispensar-se o acto eleitoral nos círculos onde se apresentasse uma única candidatura…
Voltando aos tempos de hoje, quase todos parecem concordar que as actuais democracias do sufrágio universal constituem regimes grandes demais, onde, em nome da governabilidade e da estabilidade, se vai dessangrando a participação cidadânica, isto é, a participação de cada um nas decisões colectivas, contrariamente ao que sucedia nas antiquíssimas democracias das cidades, das comunas ou dos concelhos, onde ainda era possível o face to face da democracia directa.
Mas se há sinais de degenerescência, nenhum deles indicia percursos de ruptura. Por outras palavras, as reivindicações da oposição ao sistema não são suficientemente mobilizadoras da maioria indiferentista e o apoio aos governos compensa as mesmas e até vai superando os incómodos oposicionistas.
Aliás, os principais elementos de desafio ao sistema até têm contribuído para o reforço da democracia, entendida como uma forma de institucionalização de conflitos. O problema talvez esteja na circunstância do sistema político caminhar insensivelmente para um modelo de sistema fechado tanto aos novos valores como às circunstâncias da realidade.
A comunicação social é assim o cerne do combate político. Porque em política o que parece é. Melhor dizendo, em política, o que aparece, na comunicação, é aquilo que é.
É pois inevitável o nível de compenetração entre a classe política e a classe mediática. Compenetração que tanto gera coincidências como conflitos, com as inevitáveis relações de amor-ódio. E que dizer da nossa democracia, cada vez mais emaranhada nas teias do videopoder, do Estado Espectáculo e da teledemocracia?
O poder político não pode apenas ser visto na perspectiva unidimensional daquela perspectiva elitista que o concebe como uma pirâmide onde, em cima, está a classe política dos governantes e, na base, a larga planície dos súbditos ou governados. Há que perspectivar também a perspectiva bidimensional, que aponta para a existência de uma face invisível do poder, onde quem governa tende sempre a controlar o programa dos debates, bem como aquela perspectiva tridimensional que aquele que dá o consentimento e ver os respectivos interesses confundidos.
Por outras palavras, nesta sociedade mediática o poder estabelecido, e que não se confunde necessariamente com o governo vigente ou com a classe política dominante, finge, muitas vezes, que cede ao consentimento, quando, infra-estruturalmente, cria interesses de forma artificial. Num jogo que, aliás, não se desenrola apenas intra-estadualmente, ou intra-nacionalmente, face à internacionalização da economia, à internacional das sociedades civis e à aldeia global da comunicação.
Assim, o espaço da liberdade de expressão pode ser ocupado por oligopólios que invocando slogans antimonopolistas, acabam por ser tão distorcedores quanto o controlo estadual da comunicação política.
Nestes termos, a abstenção eleitoral é reveladora de um problema mais vasto que não consegue ser perspectivado pela mera análise estatística dos resultados eleitorais. Daí que o aparecimento da indiferença cívica seja um dos principais inputs do sistema política.
Com efeito, a actual democracia portuguesa, talhada que foi durante o período febril dos grandes combates políticos, desse sincretismo genético onde se criaram, quase ex nihilo, as actuais forças políticas, ainda não se adaptou ao ritmo da normalidade.
Como tem acontecido noutros modelos, depois da experiência de totalitarismos e de autoritarismos com a proibição de partidos políticos, as emergentes democracias pluralistas tendem a privilegiar compreensivelmente os novos partidos que quase atingem a dimensão de órgãos do Estado. Ora, quando se dá a predominância dos partidos sobre as outras instâncias do Estado, surge uma degenerescência a que tecnicamente se tem dado o nome de partidocracia. Nela, segundo Lorenzo Caboara, num texto de 1967, a soberania já não reside no povo, mas passou para a mão dos partidos políticos, que a exercem através dos órgãos da sua própria administração.
Curiosamente, a expressão que começou por ser utilizada por autores liberais, saudosos dos partidos de representação individual, tem vindo, recentemente a ser propalada por críticos da democracia e quase é assumida como qualificação pejorativa pelos que advogam o modelo da democracia representativa, como se não corrêssemos o risco de uma democracia tutelada pelos partidos que assumem um falsa teoria elitista da democracia.
Com efeito, os partidos, abusando do poder funcional, tendem a assumir todas as funções políticas e a caminharem para uma espécie de imbricação total no aparelho de Estado, surgindo aquilo que muitos designam por Estado de Partidos (Parteienstaat).
Uma situação que é favorecida por vários factores. Primeiro, pelo sistema de financiamento público dos mesmos partidos que, indirectamente, vai favorecer as cúpulas, prejudicando a difusão da política e a independência dos eleitos. Em segundo lugar, pelo sistema de distribuição de cargos públicos baseada na adesão aos partidos, principalmente, quando ainda são marcantes o intervencionismo estadual nos sectores social e económico. Em terceiro lugar, porque, na escolha de cargos públicos, predomina o critério da adesão partidária, em vez do critério da competência profissional, a tão falada distribuição dos jobs for the boys.
Isto é, o modelo competitivo português polarizou-se crescentemente, gerando uma espécie de bipolarização. E durante as maiorias absolutas do cavaquismo, surgidas do povo de direita alargado ao centro, o presidencialismo de primeiro ministro entrou em dialéctica intra-sistémica com as forças de bloqueio institucionais, devido à auctoritas de um Presidente da República, também eleito por sufrágio universal, mas pelo chamado povo de esquerda, também alargado ao centro.
A partir de 1995-1996, com a maioria relativa do PS no parlamento e o consequente governo unipartidário, bem como com a eleição de um presidente oriundo da mesma base eleitoral, o pluralismo ficou apenas dependente dos mecanismos de travagem do poder do Estado de direito, sem uma bipolarizadora coabitação, pelo que a questão do sistema eleitoral e da criação de governos das regiões administrativas ganhou especial acuidade.
Contudo, como dizia Max Weber, a questão do financiamento dos partidos continua a ser uma questão central para determinar a direcção material da conduta do partido e de como se reparte a sua influência. Mais: graças ao modelo de financiamento público, os partidos políticos passaram a estar sob a tutela do Estado, dado serem financiados mais pelos contribuintes em geral do que pelos militantes. Daí as crises geradas nos governos pelas denúncias em torno das pequenas negligências fiscais que levam à demissão de hierarcas, quando estes apenas fazem aquilo que não é considerado pecado pelo homem comum.
Nestes termos, podemos dizer que, antes de existir uma questão do sistema eleitoral, há uma questão do sistema partidário, dado que este se conserva imobilista acaba por manter-se a substância daquele, mesmo que se finja mudança.
Em segundo lugar, antes da questão do sistema partidário, há a questão da relação entre o Estado-aparelho de poder e a o Estado-comunidade, onde a dinâmica do primeiro termo está perfeitamente condicionada pelos sinais que der o segundo.
Ora, ninguém parece querer mudar os invisíveis tratados que sustentam as presentes regras de jogo das regras de jogo, o tal núcleo duro marcado por muitas cláusulas ocultas que cercam o lugar onde se acumula o poder e a partir do qual ele se distribui de cima para baixo. Logo, o modelo vigente ainda tem, em potência, muitos anos de vida. Porque as forças vivas que o sustentam o continuam a vivificar, aproveitando magnificamente os insterstícios do sistema, através de um hábil manuseio da chamada face invisível do poder.
A tal zona onde, na maior parte dos casos, os factores internos, isto é, os elementos nacionais de poder, já não são maioritários, porque as grandes decisões políticas tendem a ser provenientes do novo Estado comunitário e das novas geometrias variáveis do atlantismo e da Weltpolitik norte-americana, nesta pluralidade de pertenças em que nos movemos.
Por outras palavras, o sistema eleitoral, o sistema partidário e o sistema de relações entre o principado e a república, se podem estar fechados relativamente aos cidadãos individuais, têm demonstrado grande capacidade de abertura à natureza das coisas dos poderes económicos, nacionais e internacionais, pelo que só penentrando nos segredos dessa face oculta poderá haver mudança.
Nesta viragem do milénio, quando ainda se vive o ambiente decadentista do fin de siècle, com uma democracia estabilizada, podemos dizer que o tempo de luta pelo Estado de Direito terminou, de tal maneira que tanto já não há discussões bipolarizadas entre os defensores do vanguardismo e os adeptos da democracia representativa, como também não existe uma tutela militar directa ou indirecta.
Nem sequer é tecnicamente possível um golpe de Estado à maneira clássica, com a ocupação do centro do aparelho de poder e a propagação da nova situação à província pela via hierárquica, como ainda aconteceu com a subversão a partir do aparelho de Estado do gonçalvismo.
Geraram-se plurais locais de poder e o país já não se dispõe a seguir o ritmo existente no local central clássico da acumulação do poder, seja um quartel central ou o telejornal único e nem o comando da efectiva governação cabia num navio ou num carro de combate, com vaigem marcada para o Brasil. Neste termos, tende mais a discutir-se o problema da luta pela cidadania. Isto é, face à ampla consensualidade em torno dos princípios da legitimidade constitucionalmente estabelecidos, o problema já não reside na resposta à pergunta do quem manda? ou do quem governa?, mas antes à questão do sabermos como deve controlar-se o poder.
As grandes questões quanto à definição do modelo de sistema eleitoral, típicas de épocas construtivistas já não se põem. Não precisamos, pois, de super-engenheiros de sistemas, bastando os técnicos de manutenção do mesmo.
Assim, a pesquisa do melhor modelo possível parece não estar em causa, porque já não vivemos a época da transição para a democracia, não nos visionamos como uma democracia em vias de desenvolvimento, nem sequer vivemos aquela crise adolescente que apregoava a Europa connosco e a existência de uma jovem democracia.
A democracia já é tão natural como o ar que se respira, sendo, pois, possível uma autêntica reforma meramente correctiva, com a procura do aperfeiçoamento, de acordo com as nossas experiências.
Aliás, as grandes forças políticas portuguesas parecem estar de acordo, na generalidade, com as linhas de força da reforma do sistema eleitoral e a discussão incide efectivamente na mera contabilidade das perdas e dos ganhos de cada uma delas. Abundam, portanto, as simulações e surgem as naturais desconfianças dos médios partidos quanto ao instinto predador dos dois grandes partidos-sistema.
Isto é, ninguém afronta o princípio geral constante de todos os projectos de reforma da lei eleitoral, apenas se discutindo o modelo da divisão político-administrativa em que a mesma pode assentar.
Infelizmente, não têm aparecido estudos quanto à degenerescência do sistema eleitoral vigente, bem como quanto ao próprio sistema partidário, de acordo com modelos politológicos capazes de medição da distância que separa a palavra dos actos. Não se conhecem levantamentos exaustivos dos grupos de interesse e dos grupos de pressão. Não há estatísticas sobre os estudos dos grupos dos governantes, dos parlamentares e dos dirigentes partidários.
E seria interessante, por exemplo, determinar quantitativamente o fenómeno da pantouflage, isto é, a passagem de certos empregos privados para certos cargos públicos, bem como a passagem de certos cargos públicos para certos cargos privados. Mas quem o tentou fazer ou coordenar depara com vazios biográficos intencionais…
Tal como seria útil quantificarmos aquela perspectiva que levou um presidente da Assembleia da República, antes de o ser, a proclamar que em Portugal o importante não é ser ministro, é tê-lo sido…
Os próprios partidos políticos guardam a sete chaves os números abstractos dos respectivos militantes, como se, sobre eles, vigorasse o regime do segredo bancário…
Mais grave é o processo da respectiva contabilidade, nomeadamente quanto aos gastos em campanhas eleitorais e ao sistema de financiamento. E todos vão fingindo que dão cumprimento às disposições legais sobre a matéria.
Também no tocante ao sistema eleitoral seria interessante determinarmos a respectiva degenerescência, medindo fenómenos como o do caciquismo, bem notado nos inúmeros autarcas que vão passando de partido para partido, sempre com discursos marginais face ao discurso oficial do partido onde se inserem.
A discussão em torno das projectadas reformas da lei eleitoral nada tem a ver com os casos práticos das hipóteses académicas, mas antes com a rotina dos vários poderes instalados dentro de cada um dos partidos políticos existentes.
E nenhum deles, por exemplo, tratou de proceder a uma ampla reforma interna condizente com os modelos de divisão administrativa que foram defendendo em tese geral.
Porque se manteve o sistema de círculos eleitorais distritais, os grandes partidos sempre funcionaram de acordo com o modelo distritalista, dado que um dos frutos mais apetecidos na luta política interna sempre foi o da designação de deputados.
Mesmo em partidos sem implantação local em toda a extensão do território nacional, sempre se assistiu à existência de pomposas comissões distritais em sítios onde praticamente não havia concelhias e, muito menos, núcleos de freguesia.
Quando, entre nós, basta a um grande partido a mobilização de meia dezena de milhares de militantes para a definição de poder num congresso, decisão essa que poderá também significar a configuração do próprio poder nacional, é inevitável a eventual marginalização dos partidos face à opinião pública. Contudo, estes mesmos partidos, juntamente com outros que nem sequer têm um milhar de militantes activos, são capazes, logo a seguir, e, cada um deles, de mobilização de cerca de meia centena de milhar de candidatos autárquicos.
Os grandes partidos, que não se assumem como recrutadores de quadros, são também capazes, na véspera de chegarem ao poder, de mobilização relativamente a inúmeras personalidades exteriores aos partido, recorrendo a independentes para os governos partidários ou formando modelos programáticos nas reuniões dos estados gerais. Desta forma, integram elementos estranhos ao corpo dos militantes partidários, desde os provenientes do mundo industrial e da área académica até a dirigentes desportivos e de outras colectividades locais, naquilo a que se chama abertura à sociedade.
A outra face da moeda, a crise da falta de representatividade dos partidos existentes em Portugal, está na circunstância de o campo da classe política partidária e parlamentar começar a deixar de ser predominante, tendendo a constituir um mero subsistema de um modelo de decisão política que vive em regime de concorrencialidade com a classe governante dos independentes ou dos governantes inscritos mas não militantes.
A classe política transformou-se, portanto, numa elite não aberta, num grupo restrito que nem corresponde aos melhores (a aristocracia) nem aos mais ricos (a oligarquia), conforme as classificações clássicas das formas de governo. Por falta de elites competitivas ela tende a não constituir o elemento dinâmico da chamada poliarquia.
Acresce que a questão do sistema eleitoral está intimamente ligada à questão da divisão administrativa do território. E esta não se reduz às tradicionais antinomias centralização/ descentralização ou concentração/ desconcentração.
Primeiro, os defensores do modelo da descentralização nunca enfrentaram os dogmas do Estado unitário e do conceito de soberania una e indivisível, dado nunca se ter corporizado um modelo defensor dos princípios federalistas e da divisibilidade da soberania.
A aplicação prática do princípio da subsidiariedade reduz-se assim à questão internacional e eventualmente à repartição de competências entre os órgãos centrais da República e os órgãos das regiões autónomas.
Diremos que a democracia pluralista e representativa portuguesa tem que assentar na chamada democracia da sociedade civil, aquele elemento de tolerância e até de liberdadeirismo que resistiu ao fenómeno do autoritarismo salazarista, isto é, àquela degenerescência da antipolítica que juntou algum do nosso pietismo paternalista com o centralismo estadualista do despotismo ministerial e do estadualismo legalista do jacobinismo.
De qualquer maneira, a democracia tem que garantir a estabilidade institucional das regras do jogo, demonstrando-se o respeito pelo princípio da continuidade das instituições históricas, pelo que importa garantir o essencial das leis eleitorais que permitiram a superação do vanguardismo revolucionário e o respeito pelos ciclos político, com alternâncias de estabilidade política.
Alguma quebra no monopólio dos partidos políticos, pela admissão de independentes a círculos uninominais, bem como um método de garantia de representação das minorias, talvez fizesse sentido. Porque, se cairmos num parlamento bipolarizado, a fragmentação passará inevitavelmente pelas facções que se gerarão dentro de cada um dos grandes partidos com as inevitáveis dissidências. Pior do que isso: gerar-se-á a constituição de uma espécie de segunda câmara clandestina, com a formação de uniões de interesses económicos e de uniões de outro género, feitas em nome de grupos de interesse e de grupos de pressão, nomeadamente de carácter regionalista e de carácter bairrista. E o pluralismo não se compadece com pluralismos ocultos, situados na outra face de Jano.
Concluindo, voltemos a citar o discurso de Passos Manuel de 18 de Outubro de 1844: o defeito radical das nossas Constituições continua a estar na organização, e na base do sistema eleitoral. Já não diremos que está em causa o facto de, em todas elas, se conferir direito de votar aos empregados assalariados pelo Tesouro, mas repetiremos que o voto das contribuições deve pertencer a quem as paga e não a quem as recebe.
Se não advogamos o regresso a qualquer forma de regime censitário, como fazia Passos Manuel, na sua adesão a esse princípio da Carta Constitucional, julgamos que importa reinventar o princípio da separação dos poderes de maneira funcionalista.
O essencial da democracia está no princípio do controlo do poder. Está em reconhecermos que todo aquele que tem poder tende, inevitavelmente, a abusar dele e que a única maneira conhecida de o impedir consiste no estabelecimento de forças de bloqueio. De, para cada poder, entendido como acelerador, se municiar o aparelho com um contra-poder, funcionando como um travão.
Na actual democracia portuguesa, os intermediários quase monopolistas da soberania popular são os directórios partidários e, sobretudo, os directórios dos dois partidos-sistema, principalmente daquele que se assume como maioria, absolutamente estável, relativamente inderrubável ou coligadamente sustentável.
Quando isso acontece, a separação de poderes fica baralhada, dado que o parlamento, em lugar de funcionar como conselho fiscal do governo, acaba por ser o apoiante automático das iniciativas concentrada na figura do primeiro-ministro e líder do partido dominante, ou dos sublíderes que nele convergem ministerialmente.
E quando, no ambiente de Estado-Providência, com cerca de dois milhões e meio de pensionistas-votantes, a ficarem na dependência de uma operação de sedução subsidiária do executivo, eis que quem recebe do tesouro acaba, indirectamente, por decidir como é que os outros hão-de pagar.
Deste modo, se favorece o concentracionarismo bipolarizador das alternativas de poder, gerando-se um novo rotativismo que permanecerá igual a si mesmo, por mais operações de engenharia eleitoral que se desencadeiem.
Só quando se recuperar a ideia de Maurice Duverger, segundo o qual, a história da democracia é a história do imposto, se poderá reinventar o modelo, através de um voluntarismo reformista que pretenda fazer entrar no núcleo central da decisão novos actores.
Até lá, o sistema continuará a reproduzir-se e manterá aquela estabilidade que só será alterada se convulsionar significativamente o ambiente de política internacional, principalmente o modelo e a dinâmica da integração europeia e da sua relação transatlântica. E importa recordar que foram crises importadas que, há mais de um século, demoliram a estabilidade do rotativismo, provocando a intolerância e gerando a tragédia. E ninguém pode garantir a não chegada de um novo tempo de vacas magras, especialmente quando a geofinança é susceptível de produzir súbitas trepidações em qualquer sistema político.
Reformar a lei eleitoral, proibindo o acesso de candidaturas independentes aos círculos uninominais e mantendo o sistema da lista fechada, não significa mudar a dominância dos actuais partidos-sistema Já não diremos como Passos Manuel que o funcionalismo está encarnado em todas as nossas Constituições e que, em Portugal, o actual Parlamento … não significa senão a reunião dos delegados do Executivo. Ele significa a distribuição que de cima para baixo continuam a fazer os directórios partidários.
A estrutura banco-burocrática refinada pelo Estado Providência leva, inclusive, a que algumas decisões fundamentais do sistema político passem a ser tomadas a nível do poder bidimensional e tridimensional, na face invisível da política, através do diálogo oculto com os efectivos membros da segunda câmara. Isto é, dá-se a convergência da união dos interesses económicos dos chamados parceiros sociais com o processo de holding não aparente dos financiadores do sistema partidário e das campanhas eleitorais.
Por outras palavras, o poder político, hipostasiando o monopólio da representação política, acaba por ter de ceder aos micropoderes económicos e sociais, através dos respectivos grupos de interesse e de pressão. Só um voluntarismo no sentido da politização do sistema político, garantindo a representação das minorias e permitindo o acesso de independentes à participação no jogo político reforçaria o pluralismo político da democracia, aquela unidade e verdade da representação de que falava José Estevão, quase seguindo o sonho do miguelista Padre Casimiro José Vieira, igual ao vintista Manuel Fernandes Tomás ou do liberdadeiro Alexandre Herculano.
Fernandes Tomás, em 19 de Abril de 1822, falava no sufrágio como o direito mais precisos que o homem pode ter na sociedade que é o de escolher aquele que o há-de representar. Porque é preciso partir deste princípio: todos os que entraram no pacto social prometeram concorrer com o que estivesse da sua parte para a conservação da sociedade. Ou se há-de afirmar que o jornaleiro não concorre para a conservação da sociedade ou se há-de admitir que ele tem nela o mesmo direito que os outros pois concorre com o que está da sua parte.
Do mesmo modo, Herculano, alargando a sua perspectiva de defesa de um maioria ilustrada e abandonando a ideia de exclusão do sufrágio das classes inferiores, já advogava em 1851 a necessidade de alargar o sufrágio e desimpedir o acesso à urna. O povo paga e quer saber para quê. A representação deve, por conseguinte, ser não só ampla, mas amplíssima.
A opção por um modelo uninominal pode levar a que, em muitos segmentos, as eleições parlamentares assumam a dimensão de eleições autárquicas, surgindo inúmeros candidatos locais com a mera categoria de influentes, porque capazes de financiamento próprio, ou de mobilização do financiamento alheio, quando não como detentores de alguns ingredientes mediáticos que lhes propiciem visibilidade no pequeno star system, com o predomínio do dirigismo desportivo e dos micropopulismos de pequenos césares de multidões, alguns dos quais laboratorialmente fabricados por agências de comunicação.
Pequenos nadas que não afectarão a globalidade do sistema, mas que não gerarão mais autenticidade e poderão até substituir alguma utilidade da prestação de serviço dos caciques democráticos, gerados nestas duas últimas décadas. Esses dirigentes políticos locais e distritais dos grandes e médios partidos da nossa democracia que têm vindo a ser sufragados porque, reunindo um capital de confiança dos respectivos eleitorados, prestam efectivos serviços de comunicação política, promovendo, por vezes, úteis curtos-circuitos nos meandros concentracionários da actual realidade política, social e económica. Voltando a citar Passos Manuel, apenas desejamos que a palavra Parlamento continue a significar a reunião dos Representantes da Nação.
Todos estes entorses levam à tensão entre sucessivas classes políticas que se unificam face ao inimigo comum do antigo regime derrotado, configurando-se o conjunto d’os compadres e as comadres que constituem o país legal, como dizia Alexandre Herculano. Com efeito, do país da realidade, vem a constante da indiferença que, vez em quando, explode em revolta populista ou em apoio a césares de multidões, isto é, a experiências de poder pessoal, onde o carismático e o messiânico se aliaram.
Já no século XVI, por exemplo, quando nos podíamos ter transformado na primeira potência capitalista da Europa, preferimos ceder à mentalidade habsburga do Estado espanhol, expulsámos os judeus e, ao cheiro da canela, acirrámos um capitalismo de Estado que beneficiou fundamentalmente o negocismo de certos cortesão. Entretanto perdeu-se o sentido do anterior comunitarismo e a própria lógica de Estado que comandou o processo da expansão.
Mais tarde, a revolução liberal, vitoriosa em 1834, preferiu substituir o frade do antigo regime pelo barão devorista. É a época da venda em hasta pública dos bens nacionais e da emergência de uma nova classe política que gera uma nova aristocracia social, marcada pelo barão usurariamente revolucionário e revolucionariamente usurário, segundo as palavras do desiludido Garrett.
Depois do interregno setembrista, o cabralismo fez acrescentar a este baronato financeiro e fundiário, a nova classe dos burocratas, marcada por um clientelismo estatizante que vai degenerar naquilo que Oliveira Martins qualificou como o comunismo burocrático: burocracia, riqueza, exército: eis os três pontos de apoio da doutrina; centralização, oligarquia; eis o seu processo.
A Regeneração também não passou de mais um capitalismo de Estado que, em vez de instaurar a liberdade económica, cedeu ao proteccionismo e ao privilégio. Com efeito, o nosso liberalismo posterior a 1851 que, de generosamente regenerador, passou a canalhocracia, e que, tentando evitar as cisões procurou uma frustrada fusão, antes de se consolidar como rotativismo, acabou, em determinados segmentos, por agravar o peso morto da estatização, proibindo a livre associação da sociedade civil, muito especialmente das estruturas sócio-profissionais.
O mal baronal é típico de todas as oligarquias partidárias geradas à boleia do poder, quando se mantêm amplas zonas de encomendação ou grupos de amigos, relativamente aos grupos dominantes do situacionismo anterior. Em todas estas situações sempre a mesma tendência neofeudal de alguém, económica, social ou politicamente enfraquecido, se colocar sob a protecção de uma certa personalidade ou de um determinado grupo, bem colocados no sistema de distribuição de privilégios e isenções, que, a troco de fidelidade, lhe vão dar emprego estável, a avença compensatória, a facilidade burocrática ou o acesso a círculos íntimos da supremacia económica, social ou política.
É toda uma teia de desigualdades semi-clandestinas em que os nossos regimes se têm enredado que, não atingindo as dimensões dos mafiosos padrinhos ou dos mafio-maçónicos polvos, eleva a tradicional cunha aos requintes da tecno-estrutura. Enquanto isto, a maioria do país real ora adopta a esperança do sapateiro de Braga (ou há moralidade, ou comem todos), ora se torna indiferente, caindo, o primeiro, no engodo sensacionalista e distanciando-se, o segundo, dos reais problemas da coisa pública, dado que apenas é chamado a participar nos banhos de multidão do folclore eleitoral. Contudo, não há estados de graça que sempre durem nem pecados que nunca acabem…
Apesar das muitas revoluções que nos aconteceram, Portugal político corre o risco de continuar a ser Lisboa e o resto do país de permanecer paisagem, o tal sítio exógeno onde se fazem campanhas eleitorais e para onde se emitem telejornais, apenas com uma pequena cedência à tradicional autonomia do burgo portuense, quando este tenta imitar Lisboa e se assume como a capital do Norte, num frenesim bairrista que, muitos, confundem com regionalização.
A política portuguesa persiste assim em viver nas teias viciosas de um pequeno grupo populacional. Mesmo neste dealbar do milénio se poderá haver cerca de cem mil formais filiados em partidos políticos, eis que tal parcela populacional gera apenas pouco mais de cinco mil militantes activos, atendendo aos que costumam participar em congressos partidários. Contudo, mesmo o país da militância partidária acaba por ser devidamente enquadrado por um escasso milhar de dirigentes ou potenciais dirigentes políticos, os quais constituem o núcleo duro da chamada classe política, por sua vez dependente dos quatro ou cinco directórios visíveis, ou invisíveis, onde se alcandoram apenas cerca de cem pessoas.
A política portuguesa continua a ser marcada por este desvio oligárquico da partidocracia, onde predomina a lei do baronato, zona onde se recrutam os deputados, os ministros e todos os que, graças à vitória eleitoral do respectivo partido, podem invocar o esforço militante, para passarem a viver à mesa do orçamento, sem necessidade de mais curriculum.
Se o mal não é tipicamente português nem exclusivo do nosso tempo, o facto de alguns nos continuarem a qualificar-nos como uma jovem democracia, onde até existiu, durante cerca de uma década, a maioria absoluta de um só partido, e ainda por cima do partido que há mais tempo estava no governo desde 1974, tudo isso contribui para agravar o distanciamento do país político face ao país real.
Assim, o Portugal político, traumatizado pelas memórias contraditórias do autoritarismo e do revolucionarismo, constitui, na verdade, um terreno fértil para o dessangramento da democracia pluralista.
Iremos sobretudo enfrentar a crise dos partidos políticos que temos, não das três dezenas de unidades registadas no Tribunal Constitucional, mas dos quatro grandes todos eles angustiados por um evidente falta povo.
Partido significa parte, parcela de um conjunto maior que tende a disputar, com outras parcelas do mesmo teor, a liderança do conjunto, que tem em vista aquilo que alguns qualificam como a conquista e a manutenção do poder.
Em rigor, só pode haver partidos num sistema político marcado pela competição eleitoral e que assuma a forma de democracia representativa, dado que a principal função do partido é a de nomear candidatos para uma eleição.
Na polis grega, a palavra correspondente era stasis, que começando por corresponder à nossa conotação de partido, depressa passou a corresponder a uma denominação pejorativa, entendida como facção e depois como sedição. Como o sinal de uma guerra interior, de uma guerra civil, um estado doentio, uma degenerescência da política.
Aliás, num dos primeiros inventários funcionalistas sobre as características dos partidos políticos, de Joseph La Palombara e Myron Weiner, são enumeradas as seguintes características dos mesmos: durabilidade, estrutura complexa, vontade de implantação popular, vontade deliberada de exercer directamente o poder).
Porque os partidos organizam a opinião pública, comunicam as reivindicações aos centros de decisão; articulam para os seus seguidores o conceito e o significado de uma comunidade em geral; estão intimimanete ligados ao recrutamento político.
Deles, pode dizer-se o que vem em qualquer manual de estasiologia do princípio do século. Por exemplo, seguindo Ostrogorski, de 1902, podemos dizer que os nossos partidos também são meros instrumentos de elites escondidas por trás daquilo que designava por programas omnibus (programas que oferecem soluções universais que nunca se realizam, programas tipo pai natal que oferecem tudo a todos). Que quanto mais cresce o elitismo dos organizadores dos partidos, mais cresce o indiferentismo das massas (o não vale a pena).
Acrescentemos o que deles disse Robert Michels, em 1911. Que todos eles estão sujeito à lei de ferro da oligarquia; que a democracaia desemboca naturalmente numa oligarquia, marcada pela vontade de poder, porque quanto mais massificação mais organização. Que quanto mais divisão de trabalho, mais necessidade de uma classe de políticos profissionais e de peritos. Até porque todo o partido político, para ganhar votos, tem de perder a sua virgindade política e entra em relação de promiscuidade com os elementos políticos mais heterógéneos;
Robert Michels analisando o SPD, o principal partido de organização de massas na viragem do século XIX para o século XX, vem falar na lei de ferro da oligarquia, segundo a qual quem diz organização diz necessariamente oligarquia, na emergência dentro destes novos grupos, de uma nova minoria organizada, que se eleva à categoria de classe dirigente.
Com efeito, o que escreviam Ostrogorski em 1902 e Michels em 1911, analisando os recentes partidos de militantes, agrava-se quando enfrentamos os novos modelos de partidos do pós-guerra, os partidos catch all, attrape tout ou pigliatutto, especialmente em tempo de teledemocracia e de sondajocracia.
Cada partido político num modelo de organização política pluralista e de sociedade aberta é sempre uma parte em competição com outras partes num sistema político de uma democracia representativa, tendo em vista a competição eleitoral, nomeadamente pela nomeação de candidatos para uma eleição.
Com efeito, a lei do Portugal Contemporâneo demoliberal, sempre foi a do crescendo da degenerescência do sistema representativo pela falta de funcionalidade do subsistema partidário, onde a necessária estabilidade provoca a inconveniente corrupção que, por sua vez, gera a decadência que leva os regimes a caírem de pôdres, como árvores sem seiva que se esvaem pelo mero corroer do tempo.
É o nosso Portugal dos pequeninos, uma política feita à imagem e semelhança do nosso centro político, onde a capital sempre foi a coisa mais superlativamente provinciana com que nos ornámos. Um Portugalório politiqueiro bem acompanhado pelo estilo da própria análise política que, desde sempre praticámos.
Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho. De todos aqueles ingredientes de que é feito o falso messianismo das personalidades carismáticas, que afinal não passa do velho e relho cesarismo da personalização do poder.
Os portugueses, fiéis aos ditos brandos costumes, costumam, assim, não reparar que vivem em crise política permanente e que, por causa da não cidadania activa, a grande maioria da nação continua a não ter direitos políticos. Ora, quando isto acontece passamos a ser governados pelos partidos que se assumem como o barómetro por excelência das nossas alterações sociais e que, exorcizando a instabilidade, nos levam, quase por compensação, ao mal da uniformidade.
O português vive muito entre o tudo e o seu nada. E porque dentro de cada um de nós há um anarquista e um amante da ordem, eis que acabamos por ser instrumentalizados por quem melhor consegue mobilizar os yesmen e os oportunistas, num processo onde o activismo partidário acaba por gerar federações daqueles grupos de amigos que se vão odiando cordialmente e que, de forma feudal, acirram sucessivas disputas entre pequenas famílias conjunturais, numa sociedade que continua estratificada.
É assim que permanece um falso capitalismo que, nascido da anarquia de origem estadual, se regula pelo regime do salve-se quem puder, com alguns laivos de vingança, muito especialmente assumidos pelos que querem ganhar rapidamente e em força tudo quanto perderam em épocas onde ainda vigorava uma noção estrutural de empresa como comunidade, e não como agora, onde tanto patrões capitalistas como patrões sindicalistas vêem os trabalhadores como peças de uma máquina, com os governos a gostarem de lavar as mãos como Pilatos.
É evidente que o mal baronal não é exclusivo do PSD e do PP, mas típico de todas as oligarquias partidárias geradas à boleia do poder, pelo que algumas nomenclaturas situacionistas mantêm zonas de encomendação naquilo que foram os grupos dominantes entre anterior ciclo governamental.
E anda sempre qualquer coisa no ar que pressagia crise. Vivemos no ventre de uma misteriosa bonança, prenhe daquela electricidade que pode transformar-se em trovoada. O ambiente está carregado pelo peso de uma qualquer coisa indefinida, que se sente, mas não se vê. Que não se manifesta em sondagens nem se reflecte em manifestações de rua, mas que é psicologicamente real.
Os portugueses continuam a viver em regime de dupla personalidade. O verniz da doença da ordem recobre o vulcão do nosso temperamento anarquista: o semi-optimismo das sondagens esconde o nosso profundo ensimesmamento. Continuamos a querer o tudo ou o seu nada.
Os que dizem sim aos sucessivos governos também deliram com as diatribes da oposição e, assistindo passivamente aos telejornais, divertem-se com as indiscrições da imprensa sensacionalista, repartindo-se entre as piadas porcas de algumas anedotas analíticas do actual status e as meditações beatas de uma qualquer sotaina negra, ou de um avental.
No centro da contradição está sempre um qualquer governo, simples reflexo de uma complexa vox populi que não é propriamente uma vox Dei. Porque o segredo de quem manda é saber ter sempre um pé cá e um pé lá. É ser situação com mentalidade de oposição. É viver à direita, ou à esquerda, e dizer que pensa à esquerda, ou à direita, para, de vez em quando, proclamar que não é de direita nem de esquerda, argumentando que não há direita nem esquerda, mas apenas o bem e o mal, o progresso e a conservação, o futuro e o passado.
O drama dos rotativos governos é que tanto se sentem grandes como também descobrem, para si mesmos, que não têm grandeza. Falta-lhes simplesmente o sonho. Têm planos, mas não projecto; são honestos, mas estão sitiados pela corrupção. Têm boa vontade, mas falta-lhes estratégia. São socialistas democráticos, social-democratas, centristas e populares, mas não quere já construir o socialismo nem a democracia-cristã. Não são liberais, isso jamais, mas querem liberalizar. São democratas, mas têm os reflexos condicionados do poder absoluto. Andam à procura do norte, mas perderam a bússola das ideias.
O governo nunca é ele nem é o outro, mas algo de intermédio, entre quem efectivamente é e a sua própria sombra. Sabe conquistar o poder, mas parece nunca saber o que fazer com o poder que tem. Porque tem poder demais para as ideias que não tem.
Uma das leis pós-revolucionárias que temos aprendido com a nossa experiência democrática traduz-se na perda do estado de graça de um qualquer governo. Tal acontece sempre que a política se torna insípida, num processo que vai balouçando entre o clientelismo de mais baixo nível e o demagogismo mais estéril. Quando aqueles que, antes de eleitos, prometeram seriedade começam a ser esmagados pela voracidade das respectivas clientelas.
É então que deixa de haver competição política e se passa ao modelo das jogadas, com o tacticismo a substituir a estratégia, pelo que o discurso quase se reduz ao slogan, transformando-se num encadeamento de frases à procura de uma parangona de jornal, em dez segundos de glória no telejornal, ou numa boca a ser comunicada pelas secções de má-língua dos diários e semanários. E quando isto começa a acontecer, o discurso político corre o risco de se transformar em simples peça que pode ser interpretada por um qualquer actor.
É assim que continuamos a viver nesta doce democratura, onde meia dúzia de opinion makers quase monopolizam o discurso comunicacional e onde todas essas pessoas até acabam por pensar que são as únicas pessoas que, por cá, vão pensando.
O país, assim pensando que pensa, se vai esquecendo. E pobres e coitados são os que, sentindo-se longe das luzes deste dobrar do milénio, ficam presos a ideias tão ultrapassadas como as que já havia antes da revolução francesa e que, por isso, correm o risco de pisar o terreno do proibido, sem possibilidades de acederem ao sistema que garante a limpeza de sangue do politicamente correcto.