Abr 17

Do BE ao BES, o sigilo, “the fable of beas”, Rangel e o resto…

Com o PS a aprovar a proposta do Bloco de Esquerda sobre alguns aspectos do sigilo bancário, eis que o Conselho de Ministros decidiu repetir o esquema do cavaquismo crepuscular, sobre o rendimento dos políticos, ensaiando uma precipitada fuga para a frente. Não faltou sequer o presidente Cavaco a quebrar o silêncio, dizendo que sempre foi, de há muitos anos,  contra o segredo bancário, embora ninguém se lembre de ele o ter dito quando era Primeiro-Ministro, porque, como dizia Camões, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Gostei particularmente das intervenções televisivas de Diogo Leite Campos e de Paulo Rangel, especialmente deste último, com uma agilidade e um sentido de resistência que o marcam como uma saudável novidade, por entre tanta ferrugem de politicamente correcto.

 

Subscrevo quase tudo o que este último disse: o Governo quer que a administração fiscal possa «de imediato pedir e solicitar de forma fundamentada o acesso às contas bancárias sem prévia autorização judicial e do contribuinte», segundo explicou o ministro de Estado e das Finanças, Teixeira dos Santos. Trata-se de um dos mais graves ataques contra o Estado de Direito e a separação de poderes que este Governo alguma vez cometeu». «É totalmente inconstitucional, pela violação do princípio do Estado de Direito e do princípio da separação de poderes. Aplica uma pena sem que haja um processo criminal adequado, contra as garantias dos cidadãos». «O próprio Governo reconhece que se trata de uma pena fiscal, fala em penalização fiscal, numa taxa de 60 por cento», porque «uma pena fiscal é uma coisa completamente nova, que não tem sentido nenhum».

 

«Uma pena é o natural correspondente de um crime, só que este é um crime sem processo. Criminaliza-se uma conduta clandestinamente, é um crime sem que se lhe chame crime. A administração fiscal é que vai investigar, julgar, acusar e aplicar a pena». Trata-se de «da criação de um crime fora do direito criminal, sem garantias de defesa, uma espécie de confisco, sem intervenção do Ministério Público, sem juiz de instrução, sem tribunal».

 

Recordo-me de, certo dia, ter sido desafiado por um jovem líder do PSD, então meu colega na universidade, para o acompanhar a um almoço com altos dirigentes da banca, porque ele era favorável ao levantamento do sigilo bancário, tal como eu. Recordo-me muito bem dessa peripécia, que foi uma das parcas colaborações políticas com o actual presidente da comissão de Bruxelas, antes de o mesmo se enredar entre o ministro Isaltino, o ex-ministro Dias Loureiro e o aliado Paulo Portas. Porque, então, as boas intenções radicais de Barroso foram imediatamente removidas pelas invocações bem realistas de um ilustre dirigente da nossa finança que, com números, o alertou para a fuga de capitais para vizinhos europeus. Disse hoje o mesmo, no “Diário Económico”, mas de forma adocicada.

 

Reparo que, agora, tanto Cavaco como parte do PSD mudaram, e bem, de programa, enquanto vão assistindo ao duelo que Ricardo do BES tenta travar com Louçã do BE, com inequívoca vantagem retórica para este último, que não desceu à baixeza de qualificar o adversário argumentativo como um caso patológico. Apenas estranho que este seja o mesmo PS que impediu as tentativas de superação do impasse, propostas pelo deputado Cravinho. E desconfio que estamos perante uma alteração de cosmética, de marca eleitoralista, onde se finge mudar para que tudo fique na mesma quanto aos fenómenos da corrupção e da evasão fiscal, embora tudo se venha a agravar quanto ao estadualismo farisaico dos novos cobradores e pesquisadores das vidas individuais, num país onde a luta de invejas, os moscas e os bufos, sempre foram bem superiores à luta de classes, mas com consciência de classe. Apenas digo que estou triste. Nem o Professor Doutor Fausto de Quadros ontem me fez rir, como de costume. Por isso vos deixo a metáfora da imagem, como sempre “inqualificável”…

Abr 17

Timor: a última nação imaginada do século XX

Ontem, na Universidade Nova de Lisboa, a convite do CEPESE, tive a honra de me assumir como professor da Universidade Nacional de Timor Leste, neste ano lectivo, porque tive o gosto de falar da última escola onde senti que havia ideia de obra, capaz de gerar manifestações de comunhão entre colegas e de cumprir minimamente as regras do processo, longe deste cinzentismo de pensamento único, provocado pelo presente situacionismo que, misturando invocações do professor saneador do antigo regime com as do professor saneado, convida para os encerramentos um qualquer ministerialismo, distribuidor de subsídios.  Por outras palavras, continuo a tentar seguir, neste meu campo, o conselho de Gilberto Freyre, o da procura de uma imaginação politicamente científica. Porque estou farto de longos discursos e comunicações donde não vem uma única ideia, exprimindo de forma profunda o vazio de criatividade que vai marcando esta “res nullius” de reformas e contra-reformas, promoções e saneamentos, onde enquanto o pau vai e vem folgam as costas.  É claro que li um texto durante 34 minutos e que fiz um desses resumos higiénicos do tema que abordei, repetindo o que tenho aqui delineado sobre a questão.  Hei-de um dia publicar a coisa. Por enquanto foi só para os ouvintes, onde muito gostei de sentir o diálogo silencioso com os Timorenses presentes, especialmente quando não proferi palavras como 1975, Xanana, Horta, Alkatiri, Fretilin ou AMP.  Porque os que estudam matérias de ciência política e relações internacionais não podem viver num mundo higienicamente assexuado, sem valores. Quem estuda coisas como Estado, Nação e Comunidade Internacional, não pode ter a atitude daqueles físicos que analisam o átomo sem tomarem posição sobre o uso da energia nuclear. Quem estuda a “polis”, a “civitas”, o “regum” ou o “Estado”, nomes diversos para a mesma coisa nomeada. tem de assumir que ela é sinónimo de democracia desde o discurso de Péricles e, portanto, toma desde logo uma posição normativa, em torno desse transcendente situado, desse dever-ser que é. Quem estuda a Comunidade Internacional também não pode enredar-se em neopositivismos dos modelos de “Wertfreiheit”, porque tem como norma a Cosmopolis, o Estado de Direito Universal a que Kant chamou paz pelo direito, ou república universal. Do mesmo modo, quando enfrentamos a “vexata quaestio” das relações entre o Estado e a Nação, temos de pré-compreender que um é a racionalidade finalística das abstracções e a segunda, a racionalidade axiológica, ou valorativa, das emoções, dos sonhos e das adesões individuais à comunidade das  coisas que se amam e pelas quais se pode dar a vida, sem ser pelo cálculo das contabilidades, mas antes pelo invisível laço que nos faz elevar ao sonho. Logo, ai de quem enfrente este mar sem captar a terceira dimensão da alma que é a imaginação, a que vem depois da razão e da vontade. Ai de quem não perceber que a poesia é mais verdadeira, ou mais filosófica do que a própria história, porque a maior parte das histórias ficou sem registos. Assim, porque tratamos de amor, temos de reconhecer que a  maneira como cada nação se olha a si mesma cabe na definição de Fernando Pessoa sobre as cartas de amor. Todas elas são ridículas, mas mais ridículo ainda é não ter nação. Por isso, comecei a minha viagem íntima a Timor, ontem com estas palavras em Mamba:Nam bae pe lao ahe ta/ Tenki galae(a vossa  procura do que visa o progresso tem de continuar). Daí que vos deixe o resumo neutral da conferência que proferi: A primeira Nação-Estado deste século vive um intenso conflito entre os processo de “state building” e de “nation-building”, onde a ausência de um efectivo monopólio da violência legítima, assente no aparelho de poder estadual, levou a que se gerasse um exagerado intervencionismo da comunidade internacional na ordem interna. Abundam desenraizados peritos e consultores, tanto de organismos internacionais e ONGs como de potências interessadas na segurança e economia da região. Aquilo que foi uma colónia atípica do império português, dado que os modelos de conformação e ocupação soberanistas não foram efectivos, levou a que, depois do abandono de 1975, o vazio de poder convidasse tanto à ocupação pelo exército indonésio, como ao recrudescimento do catolicismo, pelo que uma religião institucional quase passou a coincidir com a resistência e a identidade nacionais. Depois dos grandes movimentos de solidariedade global, provocados pelas violências das milícias, em guerra por procuração, essa parte da ilha do crocodilo quase se transformou numa nova ilha da utopia e da ucronia. Agora, chegou a hora das realidades, isto é, das circunstâncias de lugar e de tempo, com pessoas concretas. E, na prática, a teoria passou a ser outra, porque o construtivismo da comunidade internacional actua como uma espécie de corpo estranho sobre populações plurais que ainda não tiveram direito ao urgente olhar antropológico pós-colonial. Porque as formas e os carimbos de nação, democracia e religião correspondem a efectivos sincretismos, onde as convergências e divergências implicam que a emergência não correspondem às intenções dos homens, mas antes às respectivas acções. O exagero do capitaleirismo centrado em Dili ou do teocrático eclesiástico do discurso, ambos assentes em formas de neocolonialismo de variadas globalizações, parece menosprezar uma base sociológica, cultural e simbólica. Uma nação exageradamente imaginária e contraposta ao vizinho indonésio pode levar a que os aparelhos de construção do político, de um momento para o outro, assistam a uma erupção reactiva que pode pôr em causa o esforço de uma democracia partidocrática, que nem sequer admitiu o aconselhável bicameralismo. Do mesmo modo, o projecto de Estado de Direito e de administração pública racional-normativa, desconhecendo o costume, pode dar a imagem de um Estado falhado que nem sequer tem aparelho militar e policial que sirva de sucedâneo para o “state building”. Daí, o recurso tanto a sucessivas personalizações do poder, como às mitificações de uma língua e de uma história pátrias, à semelhança da que é considerada a “nation par excelence”, a França pós-revolucionária do século XIX, e foi repetida pela Indonésia do pós-guerra, da era de Sukarno. E estes modelos podem não respeitar um processo de libertação assente nos valores da dignidade e da honra. Porque, como dizia Renan, uma nação é, afinal, “um plebiscito de todos os dias”.