Não comento o video de ontem, com o Smith, já bem real, a dizer o que há muito sabíamos que ele disse sobre a chuva no molhado. Continuo a desconfiar destas evidências. Porque a cena é tão insignificante quanto os comentários que, também ontem, o cardinalício ministro da presidência foi fazer à SIC, apenas para proferir uma dezena de vezes o nome Rangel. E ambas quase me fizeram rir tanto quanto o desleixo apresentativo da conversa em que o marido da comentadora-mor da TVI respondia às provocações da esposa do patrão da mesma estação de Queluz de Baixo. O grande historiador, e digo-o sem ironia, tem, do país, como cambaleante comentador pós-prandial, a pequenina visão do respectivo grupo de amigos, isto é, só consegue ver o que conhece da respectiva paróquia capitaleira, pelo que acaba por me fazer rir, mas dramaticamente.
Prefiro assinalar que, na semana anterior à do discurso do 25 de Abril, o Presidente da República anda à fazer intervenções públicas demolidoras ao ritmo diário (já foram três seguidas). Porque, entre a musiqueta dos Xutos, que, segundo Valente, até já chegou ao indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, e o DVD do Smith e da C… word, tudo isto entrou em ritmo de barafunda. Um ilustre deputado, doutor em economia, confirma, no parlamento, que o país está a saque e o senhor cardeal patriarca, que não segue as teses de Novak sobre a coincidência do catolicismo com o capitalismo democrático, que chegou a ser bem traduzido pelo jovem Portas, com apoio de uma associação católica de empresários, voltou aos modelos mentais de Frei João Sobrinho, proclamando que os lucros dos capitalistas só são legítimos quando se subordinam ao bem comum. Só falta D. Sebastião a criminalizar os juros, porque são venda do tempo e o tempo é monopólio de Deus…
A barafunda continua com declarações de Mário Soares contra Durão Barroso e, depois, contra Sócrates, só porque este apoiou a recandidatura do nosso primeiro primeiro-ministro que veio do MRPP. Lapidarmente, o nosso patriarca desta jovem democracia considerou que o apoio do senhor engenheiro, aliás, apenas licenciado em engenharia, ao mestre politológioco por Genebra caiu na categoria diabólica do nacionalismo e que o nacionalismo sempre foi salazarismo, porque ele, Mário, apenas era patriota. Naturalmente, Rousseau e toda a Revolução Francesa revolveram-se no túmulo, eles que identificaram o “vive la nation!” de Valmy com a democracia.
Mas não vou entrar nessa, caros leitores. Gosto e sempre gostei do Mário Soares e, apesar de ainda estar no liceu quando Salazar morreu, posso garantir que preferi ser governado por Soares a ter que aturar o António de Oliveira. Por outras palavras, votarei até morrer no partido soarista, se este tiver que enfrentar sozinho o partido salazarista. Como alinharei sempre no abrileirismo contra qualquer espécie de autoritarismo estrutural, à maneira do dia 24 de Abril de 1974. Contudo, julgo saber reconhecer que o Mário, em quem até votei para presidente nas últimas presidenciais, por carinho e fidelidade, deveria compreender que, a partir de certa altura, a longa e justa idade do bisavô, apesar de manter o sentido de inteligência e da honra, pode fazer-nos escorregar em termos de voluntarismo.
Preferia que Mário não entrasse no mesmo ritmo de Policarpo. Porque pouca diferença começam a fazer em termos de maniqueísmo bipolarizador. Para uns, todos os que criticam o báculo são a cidade do diabo dos ateístas, isto é, dos que no fim de um encontro de empresários da área não se sacramentam em hóstias. Para outros, todos os que são nacionalistas são salazaristas do ceptro e do cacete. Cá por mim, continuo a defender o capitalismo, especialmente o da ética protestante, calvinista e tudo, farto que estou das criminalizações da usura, que permitiram aos fidalgotes lusos o apoio à inquisição, para que se expulsassem os cristãos-novos. Do mesmo modo, continuo a defender que o nacionalismo pode e deve coincidir com a democracia, embora como português não precise do libertacionismo nacionalista no sentido técnico do termo. Porque, strictu sensu, só é nacionalista aquele que tem uma nação ainda sem Estado e luta pela respectiva autodeterminação, como um nacionalista basco, ainda frustrado, ou os adeptos dos movimentos de libertação nacional anticolonialistas.
Só daria razão a Soares se este entendesse o patriotismo como o fizeram os nossos republicanos, adeptos da alma nacional, como António José de Almeida, na linha do nacionalismo místico que importaram da III República Francesa. A tal que tanto para cá exportou a Lei da Separação e o neojacobinismo naturalista de má memória, como o sentido romântico de um patriotismo que o maçon Teixeira de Pascoaes pôs a voar como “A Águia”. Porque, desses voos, nos veio um grevista de 1907, um tal Fernando Pessoa, com quem continuo a peregrinar, na procura da nação como caminho para a super-nação futura, pelas vias do nacionalismo liberal e do abraço armilar, templário e tudo… Para esotérico milenarista, meias palavras devem bastar. Ti Mário, recorde o seu velho professor, cuja imagem encima este postal.