Abr 17

Timor: a última nação imaginada do século XX

Ontem, na Universidade Nova de Lisboa, a convite do CEPESE, tive a honra de me assumir como professor da Universidade Nacional de Timor Leste, neste ano lectivo, porque tive o gosto de falar da última escola onde senti que havia ideia de obra, capaz de gerar manifestações de comunhão entre colegas e de cumprir minimamente as regras do processo, longe deste cinzentismo de pensamento único, provocado pelo presente situacionismo que, misturando invocações do professor saneador do antigo regime com as do professor saneado, convida para os encerramentos um qualquer ministerialismo, distribuidor de subsídios.  Por outras palavras, continuo a tentar seguir, neste meu campo, o conselho de Gilberto Freyre, o da procura de uma imaginação politicamente científica. Porque estou farto de longos discursos e comunicações donde não vem uma única ideia, exprimindo de forma profunda o vazio de criatividade que vai marcando esta “res nullius” de reformas e contra-reformas, promoções e saneamentos, onde enquanto o pau vai e vem folgam as costas.  É claro que li um texto durante 34 minutos e que fiz um desses resumos higiénicos do tema que abordei, repetindo o que tenho aqui delineado sobre a questão.  Hei-de um dia publicar a coisa. Por enquanto foi só para os ouvintes, onde muito gostei de sentir o diálogo silencioso com os Timorenses presentes, especialmente quando não proferi palavras como 1975, Xanana, Horta, Alkatiri, Fretilin ou AMP.  Porque os que estudam matérias de ciência política e relações internacionais não podem viver num mundo higienicamente assexuado, sem valores. Quem estuda coisas como Estado, Nação e Comunidade Internacional, não pode ter a atitude daqueles físicos que analisam o átomo sem tomarem posição sobre o uso da energia nuclear. Quem estuda a “polis”, a “civitas”, o “regum” ou o “Estado”, nomes diversos para a mesma coisa nomeada. tem de assumir que ela é sinónimo de democracia desde o discurso de Péricles e, portanto, toma desde logo uma posição normativa, em torno desse transcendente situado, desse dever-ser que é. Quem estuda a Comunidade Internacional também não pode enredar-se em neopositivismos dos modelos de “Wertfreiheit”, porque tem como norma a Cosmopolis, o Estado de Direito Universal a que Kant chamou paz pelo direito, ou república universal. Do mesmo modo, quando enfrentamos a “vexata quaestio” das relações entre o Estado e a Nação, temos de pré-compreender que um é a racionalidade finalística das abstracções e a segunda, a racionalidade axiológica, ou valorativa, das emoções, dos sonhos e das adesões individuais à comunidade das  coisas que se amam e pelas quais se pode dar a vida, sem ser pelo cálculo das contabilidades, mas antes pelo invisível laço que nos faz elevar ao sonho. Logo, ai de quem enfrente este mar sem captar a terceira dimensão da alma que é a imaginação, a que vem depois da razão e da vontade. Ai de quem não perceber que a poesia é mais verdadeira, ou mais filosófica do que a própria história, porque a maior parte das histórias ficou sem registos. Assim, porque tratamos de amor, temos de reconhecer que a  maneira como cada nação se olha a si mesma cabe na definição de Fernando Pessoa sobre as cartas de amor. Todas elas são ridículas, mas mais ridículo ainda é não ter nação. Por isso, comecei a minha viagem íntima a Timor, ontem com estas palavras em Mamba:Nam bae pe lao ahe ta/ Tenki galae(a vossa  procura do que visa o progresso tem de continuar). Daí que vos deixe o resumo neutral da conferência que proferi: A primeira Nação-Estado deste século vive um intenso conflito entre os processo de “state building” e de “nation-building”, onde a ausência de um efectivo monopólio da violência legítima, assente no aparelho de poder estadual, levou a que se gerasse um exagerado intervencionismo da comunidade internacional na ordem interna. Abundam desenraizados peritos e consultores, tanto de organismos internacionais e ONGs como de potências interessadas na segurança e economia da região. Aquilo que foi uma colónia atípica do império português, dado que os modelos de conformação e ocupação soberanistas não foram efectivos, levou a que, depois do abandono de 1975, o vazio de poder convidasse tanto à ocupação pelo exército indonésio, como ao recrudescimento do catolicismo, pelo que uma religião institucional quase passou a coincidir com a resistência e a identidade nacionais. Depois dos grandes movimentos de solidariedade global, provocados pelas violências das milícias, em guerra por procuração, essa parte da ilha do crocodilo quase se transformou numa nova ilha da utopia e da ucronia. Agora, chegou a hora das realidades, isto é, das circunstâncias de lugar e de tempo, com pessoas concretas. E, na prática, a teoria passou a ser outra, porque o construtivismo da comunidade internacional actua como uma espécie de corpo estranho sobre populações plurais que ainda não tiveram direito ao urgente olhar antropológico pós-colonial. Porque as formas e os carimbos de nação, democracia e religião correspondem a efectivos sincretismos, onde as convergências e divergências implicam que a emergência não correspondem às intenções dos homens, mas antes às respectivas acções. O exagero do capitaleirismo centrado em Dili ou do teocrático eclesiástico do discurso, ambos assentes em formas de neocolonialismo de variadas globalizações, parece menosprezar uma base sociológica, cultural e simbólica. Uma nação exageradamente imaginária e contraposta ao vizinho indonésio pode levar a que os aparelhos de construção do político, de um momento para o outro, assistam a uma erupção reactiva que pode pôr em causa o esforço de uma democracia partidocrática, que nem sequer admitiu o aconselhável bicameralismo. Do mesmo modo, o projecto de Estado de Direito e de administração pública racional-normativa, desconhecendo o costume, pode dar a imagem de um Estado falhado que nem sequer tem aparelho militar e policial que sirva de sucedâneo para o “state building”. Daí, o recurso tanto a sucessivas personalizações do poder, como às mitificações de uma língua e de uma história pátrias, à semelhança da que é considerada a “nation par excelence”, a França pós-revolucionária do século XIX, e foi repetida pela Indonésia do pós-guerra, da era de Sukarno. E estes modelos podem não respeitar um processo de libertação assente nos valores da dignidade e da honra. Porque, como dizia Renan, uma nação é, afinal, “um plebiscito de todos os dias”.

Abr 16

Xutos e pontapés contra o senhor engenheiro, ou as ilusões do protesto

Basta recordar que não foi por estupidez que Marcello Caetano e Ramiro Valadão deixaram crescer o Zip Zip, baseados que estavam nas técnicas de controlo social recebidas do modelo de Estado de Segurança Nacional, montado por Golbery do Couto e Silva em Brasília. Pensavam que com esta forma controlada de saída do vapor, não sairia a tampa da panela de pressão, coisa que conseguiram enquanto durou a percepção de um tempo de vacas gordas. Só que o choque petrolífero e as consequentes vacas magras fizeram com que o monstrengo do estadão de outrora caísse, não pelos pés de barro, mas pelas baionetas que o sustentavam. Por outras palavras,  as canções de protesto serviram, sobretudo, no “day after”, como elemnto fundamental do discurso de justificação do poder, não tardando a perderem-se no exagero situacionista, desde o “força, força, companheiro Vasco” à própria passagem dos principais baladeiros para o golpismo frustrado do 25 de Novembro, onde Jaime Neves e Eanes, com o apoio de Vasco Lourenço e Melo Antunes, acabaram por derrubar um movimento que tinha como símbolo o principal e mais consequente dos baladeiros, Zeca Afonso. Por outras palavras, tudo depende das vacas magras que ontem foram mais uma vez anunciadas pelo relatório do Banco de Portugal. Infelizmente, as cigarras dominantes continuam a cançoneta do regresso ao 11 de Março do estadão nacionalizador, nessa nostalgia revolucionária que se começa a confundir com as saudades do mercantilismo Pombalista, só porque alguns banqueiros repetiram o modelo de Alves dos Reis e caíram nas malhas da mesma administração da justiça que se enreda nas volutas dilatórias que nos fazem ter saudades do Juiz da Beira de Gil Vicente. Voltando à dita música de intervenção e às canções de protesto, importa assinalar todos os sistemas políticos são das tais panelas de pressão onde, de vez em quando, pode saltar a tampa. Nas ditaduras podem gerar revoluções onde as canções, tanto as de protesto, como a “Grândola, Vila Morena”, como as do português suave, como o “E depois do adeus”, podem ser senhas para um golpe de Estado. Em democracia, há outros golpes de Estado, mas sem efusão de sangue, as das mudanças eleitorais… Os situacionismos não se reduzem apenas aos aparelhos clássicos do estadão, dado que precisam de aparelhos culturais e ideológicos. E os aparelhos de repressão, para aliviarem a pressão, podem deixar aos protestantes os aparelhos culturais, desde que ele fiquem pela utopia e não entrem na repressão. Resta saber se, aqui e agora, os aparelhos culturais vivem num situacionismo de protesto ou ao ritmo de certo pimba. E se algumas pretensas canções de protesto não querem ascender à categoria de hinos situacionistas, com leves operações de revisionismo, onde, em vez de bretões, se utilize o politicamente correcto dos canhões.  Estamos num tempo, onde a própria figura de um Che Guevara passou a ser mediaticamente vendida pelas multinacionais de Hollywood e onde, entre nós, os protestantes baladeiros passaram para os programas escolares oficiais e já são nome de rua, caindo nas teias do sacristão que perdeu o sentido dos gestos. Até porque, algumas vezes, os pretextos para o protesto não passam de golpes de “marketing”. Não estranharia que, nas próximas campanhas eleitorais, os mais situacionistas dos partidos recrutassem os próprios cançoneteiros que contra eles protestaram. Não me refiro aos Xutos, evidentemente, que não precisam destes golpes publicitários, mas aos fabricantes do “agenda setting” que continuam a ler os velhos manuais dos três “efes” napolitanos, onde antes do “pão”, vinham as “festas”. E não foi por acaso que traduzimos em calão a coisa e lhe chamámos “fátima, futebol e fado”…

Abr 15

A montanha, afinal, não deu à luz mais um ratinho…

Manuela não é uma montanha, nem Rangel parece assumir-se como um qualquer ratinho, emitido pelas dores do parto, mas, de qualquer maneira, acabou por ser o normal-anormal de uma surpresa, dado que a primeira das mais valias criadas pelo novo ciclo do partido laranja foi imediatamente desviada para um intenso combate político. Dizer que ele é um jovem, apenas pode partir daqueles que reservam a política para envelhecidas criaturas como as que escrevem estas linhas. Porque não podemos esquecer que o actual líder parlamentar do PSD, da geração 1968, está no momento ideal para fazer a síntese entre a criatividade e a maturidade. Aliás tem a grande qualidade de ter chumbado no primeiro exame que lhe foi feito por Constança Cunha e Sá, acusando-o de “não conhecer o país”.

 

Por mim, apenas recordo o vaticínio que, um dia, ouvi do jornalista Carlos Magno, apontando-o como uma das promessas do Porto, ao melhor estilo de certa sementeira de ideias lançada por Francisco Lucas Pires. Da respectiva conduta parlamentar, apenas o tenho confirmado. É bom que os melhores de nós todos não desistam. Até porque a circunstância vai obrigar outro valor, de uma geração mais velha, a dos meus jovens professores, como a que é representada por Vital Moreira, a não seguir os conselho “emerrepianos” da excelente embaixadora que foi Ana Gomes, mas que, agora, parece ter transformado o blogue “Causa Nossa” num espaço de apreciação estética de senhoras mais velhas, só porque a autora não quer ver-se ao espelho. Tenho a certeza que Vital e Rangel vão elevar o nível da luta política, porque estão um para o outro, em termos de qualidade pessoal e vão confirmar a dominação interna das duas principais multinacionais partidárias europeias.

 

De qualquer maneira, não fiquei entusiasmado, porque as escolhas revelam o recurso da partidocracia à prata da casa. Entre a senhora do PCP e Edite Estrela, ou entre Nuno Melo e Miguel Portas, tudo como dantes, isto é, a mesma palha de Abrantes que não vai conseguir polir a ferrugem que marca as canalizações representativas da presente democracia. Mesmo entre a democracia dos cartazes, a nova força política do MEP recorre à antiga jornalista de “O Independente” Laurinda Alves, todos reciclando peças que usavam para outros fins. Por outras palavras, as europeias, ao serem meras primárias das duas outras eleições que se lhes seguem, não passam do nível secundário das escolhas, dado que o principal vencedor, nesta fase da luta já foi encontrado: chama-se José Manuel Durão Barroso.

 

Com efeito, este mau líder do PSD e este péssimo primeiro-ministro de Portugal inverteu o princípio de Peter e transformou-se no único político português das nossas gerações que atingiu o grande palco internacional, onde as virtudes próprias do homem souberam aproveitar as circunstâncias. O excelente universitário, formado no Campo Grande e Genebra, pioneiro no tratamento português de matérias politológicas e dos campos da teoria da decisão em política externa, conseguiu inscrever um nome com til na galeria dos europeístas históricos, dado que, até ele, apenas tínhamos algumas notas-pé-de-página de alguns caixeiros viajantes, à excepção da intervenção do nosso embaixador António Ferro nos encontros internacionais de Genebra. Daí que a decisão de Sócrates sobre os interesses nacionais na recondução de Barroso, depois dos apoios que lhe foram dados por Gordon Brown e Zapatero, seja uma exigência da própria ditadura dos factos.

Abr 14

Não foi para isto que fizemos o vinte e cinco de abril…

Não foi para isto que fizemos o vinte e cinco de abril… foi o lamento que ontem escutei, vindo, não de um desses capitães que subscreveram o apelo à próxima manif, lado a lado com Vitalino Canas, mas de alguém que viveu a sua juventude no ambiente de criação, imaginação e pluralismo que teve a ilusão de jugular o temor reverencial face aos donos do poder. E a reacção nasceu quando a televisão comunicava a proibição de usos de patilhas à Zé Povinho pelos garbosos soldados do sexo masculino das nossas forças armadas à procura de pagamento de horas extraordinárias e de subsídios financeiros pelo risco das missões de combate à pirataria nos mares sulcados por Afonso de Albuquerque… Não! Não foi por isso que um povo inteiro fez o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Não foi para que confudíssemos os nomes com as coisas nomeadas. Não foi para que chegássemos a mais de uma centena de instituições do ensino superior públicas que, mesmo com os valores das propinas individualmente pagas, correm a desvergonha de terem que andar com a mão estendida para o despacho ministerial, bem como com o cálculo carreirista de escolha eleitoral para as chefias que mais lhe prometerem o sonhar é fácil, assim perdidas entre neocorporativismos e endogamias,as mesmas que bem precisavam de um qualquer banho que atirasse borda fora a água suja, conservando a ideia de obra, as manifestações de comunhão e o respeito pelo Estado de Direito. Bastava, aliás, copiar os modelos de estrutura dos vizinhos mais competitivos da Europa, os que não as fragmentaram numa centena de quintarolas, neofeudalmente organizadas em centros de poder não previstos na Constituição ou nas leis de bases. Não foi para termos casos como os da “Casa Pia”, da “Maddie”, do “BCP”, do “BPP”, do “BPN” e do “Freeport” que um povo inteiro aderiu à democracia pluralista e à sociedade aberta. Não, não é para isso que temos eleições europeias, às quais, certamente só comparecerá metade do eleitorado que costuma ir às legislativas, talvez para continuar a punir o poder instalado, sobretudo depois da ilusão que foi a cimeira de Londres do G20. Porque o nosso principal partido da oposição, se se assumir como efectiva oposição ao Bloco Central de interesses, pode não sonhar com um empate, caso não pense que ganhar o jogo é utilizar a técnica da falta de mobilização popular no apoio ao situacionismo.  Não foi para isso que fizemos o 25 de Abril. Para que os partidos se pareçam, cada vez mais, com os nossos clubes de futebol, mas sem que nenhum queira ir à liga europeia com a mentalidade dos dragões. É um perigo que o PSD se assemelhe ao actual Benfica, assumindo-se como um cemitério de líderes, apesar de ser aquele que tem o maior número de adeptos no terreno do país real. Não foi para jogarmos com as reservas que inventámos as eleições europeias, discutindo as reformas e aposentadorias douradas da gerontocracia partidocrática, ou atribuindo um prémio de  carreira à fidelidade aos líderes provisórios, os que confundem os partidos com os respectivos quintais. Não é para jogarmos com reservas, e até ao estilo dos solteiros contra casados, que nos integrámos na Europa connosco, a velha prioridade das prioridades.

Abr 13

O gavião voltou à Ribeira do Tejo, num tempo em que já não damos grandes passeios ao domingo

O maquiavelismo, além de uma péssima moral, é também uma péssima política (Wilhelm Ropke). Parecendo vencer no curto-prazo, acaba por também ser uma péssima política, porque perde a aparente razão logo que desaparece a breve interrupção do vazio de política, quando os povos, aparentemente anestesiados, recobram a normalidade e descobrem todos meandros das pressões ocultas dos vários neocorporativismos que estão a transformar a democracia numa democratura, para utilizar-se uma expressão consagrada por Guy Mermet em Démocrature. Comment les Médias Transforment la Démocratie, 1987, quando refere a emergência de um novo sistema social onde os media exercem sobre os actores da vida social e sobre o público uma espécie de ditadura doce, marcada pelos funcionários do pronto a pensar que fornecem aos ouvintes e aos telespectadores verdades pré-digeridas e directamente assimiláveis. Porque este sistema central de valores gira em torno de um centro ainda mais fundamental: o do  Portugalório das minúsculas com a mania das grandezas. Manteve-se assim um novo modelo de corte, expressão derivada do latim cohors, cohordis, aquela parte da casa romana que estava ao lado e complementava o hortus, o jardim. Um nome que tanto deu a côrte dos reis, com um circunflexo no o, donde veio o cortês, a cortesia e o cortesão, como também se manteve numa designação de parte da casa rural portuguesa, a córte dos animais (com acento agudo no ó), enquanto na língua inglesa deu court, com o significado de tribunal.   Já Norbert Elias, na sua frustrada tese de doutoramento dos anos trinta considerava a corte real, nomeadamente a francesa, gerou um modelo de controlo da sociedade pelo centro político, ao contrário do regime aristocrático britânico, que tornou as elites locais independentes do centro, e do estilo das universidades alemãs, que foram impermeáveis ao iluminismo. É daqui que deriva aquele tipo de pessoal político que circula junto do centro do poder, não dando conselho ao príncipe, mas levando-lhe notícias, através da intriga de salão. E em Portugal, o crime da decadência continua a compensar…

Abr 08

O gavião voou, o seu heterónimo repara que as letras podem matar o espírito

Como os mais atentos podem notar, o gavião foi para o Valbom, lá para os lados de São Julião da Ericeira. Na cidade, de costas para o Tejo, ficou a imagem do hetrónimo que aparece agora na coluna da esquerda. O gavião não nega os factos nem as relações sociais e até escreve e descreve tudo aquilo em que bica e debica. O gavião continuará a viver como pensa sem pensar como depois há-de viver. E continua fiel ao lema de Antoine Saint-Exupery, segundo o qual, se temos de submeter-nos para sobreviver, precisamos de lutar para continuar a viver. Como o gavião não existe como demiurgo, sendo apenas ínfima parcela de uma corrente, ele já existe há dois séculos e continuará nos próximos, porque ainda faltam muitos para os amanhãs que cantam. E mesmo aqui, em São Julião, mais perto que estou do mar sem fim, não me considero em cima do promontório dos séculos. Apenas olho o homem de sempre, liberto das guerrazinhas de homenzinhos, desses que fazem e aplicam as regras do jogo que têm o tamanho do tempo que passa…

Abr 07

A andorinha de Obama não pode fazer nascer a Primavera…

Obama não veio à Europa libertar-nos do neoliberalismo, propondo a nacionalização da banca e da energia, bem como a necessidade de ratificação do Tratado de Lisboa. Veio apenas defender os interesses naturais norte-americanos, numa altura em que eles coincidem com os interesses europeus e estes, com os interesses nacionais portugueses. Aliás, sei, de cência aprendida, que cada um tem sempre os amanhãs que cantam da respectiva ideologia e que, nestes domínios, muitos lêem cada acontecimento como peça de um jogo de velhas criancinhas, como coisa que apenas serve para a metermos quase à força no nosso caixilho teórico. Poucas análises de política internacional resistem a uma década de mudanças do mundo real e raras são imbuídas do necessário patriotismo científico. Convém notarmos que a Europa a que chegámos, para usar uma análise de Jacques Delors, são dois terços de remediados e um terço de socialmente exluídos, apesar do chamado Estado Social, mas, mesmo assim, temos a zona do mundo com mais justiça, contrariamente à maioria dos intregrantes do G20. Por exemplo, o Brasil, onde o programa de Lula vai demorar cem anos a implementar, vive entre ilhas de grande desenvolvimento, onde São Paulo é capaz de ser igual ao Norte de Itália, e largos intervalos de Terceiro e Quarto Mundo. Contudo, o Brasil, admitindo a liberdade de circulação das pessoas, gerou favelas, coisa que evitaria se repetisse o estilo chinês do passaporte interno, dos muros de arame farpado e das pontes levadiças, separando regiões de desenvolvimento separado, a que não chamam “apartheid”.  A nova hierarquia das potências, confirmada na cimeira dos G20, consagra uma geometria variável de pagadores da ONU, do BM e do FMI, num mundo onde, segundo dados do virar do milénio, as empresas multinacionais ou transnacionais, eram qualquer coisa como 40 000 entidades juridicamente privadas, mas multiplicadas por cerca de 300 000 subsidiárias, o que corresponderia a metade do produto mundial, isto é, cerca de um terço da capacidade produtiva mundial do sector privado, com cerca de 90% das mesmas entidades principais a pertencerem aos países do primitivo G7.  Cerca de 600 dessas mega-empresas representavam um quinto do valor acrescentado da produção industrial e agrícola do mundo. Aliás, misturando empresas, em termos de volume de negócios, e Estados, em termos de PNB, a maioria absoluta não são entidades estaduais. Contudo, faltam os mínimos de uma regulação global sobre a matéria, pelo que continuamos e continuaremos a viver em universos paralelos. Mas, se formos aos Estados, basta recordar que três deles (USA,  Alemanha e Japão) representam 50% da produção mundial e 20% dos mais ricos da população mundial tem cerca de 85% do rendimento também mundial. Também 50% da população mundial se concentra em seis Estados, enquanto 80 entidades do género tem menos de um milhão de habitantes. Assim, 75% do orçamento da ONU era suportado por apenas nove Estados, com cerca de 25% para os USA, da mesma maneira como  46% do direito de voto do Banco Mundial  e 48% do FMI cabia a sete Estados. A variabilidade é mais evidente em território, com oito Estados a concentrarem 50% das terras do mundo, para que 95% das divisas que mudam de mão quotidianamente nas bolsas mundiais se prenderem exclusivamente com actividades meramente especulativas, enquanto o volume das operações de câmbio é cinquenta vezes mais importante do que o correspondente ao real comércio de bens e serviços.  Se a esta realidade predadora chamarem neoliberal, eu quero ser liberdadeiramente liberal. Se a esta perspectiva de conformismo qualificarem como realismo nas relações internacionais, eu quero ser idealista. E como idealista e liberal, tenho de reconhecer que a andorinha de Obama, mesmo que o quisesse, não poderia fazer nascer a Primavera que todos esperamos. Só que vale a pena sairmos da invernia e procurarmos a Primavera. As grandes conquistas da Humanidade sempre foram normativas, sempre visaram subverter a realidade pelos valores, sempre procuraram um transcendente situado, pondo a Justiça como a Estrela do Norte da Política e a Política como hierarquicamente superior à Economia. Os homens inventaram a Política para deixarem de ter donos…

Abr 05

Entre nevoeiros do Minho

Nas presentes circunstâncias legais e prescritivas, os chamados praticantes da compra e venda de poder e influência não podem ser apanhados pelas malhas condenatórias do sistema jurídico que a actual classe política engenheirou. Daí que o sistema judicial corra o risco de se transformar no bode expiatório e que assim se pratique uma espécie de suicídio do regime. Não bastam estes prognósticos depois do apito final e seria estúpido culparmos apenas alguns actores magistrais da administração da justiça em nome do povo que tão mau serviço têm prestado ao Estado de Direito. As normas vigentes sobre a corrupção não conseguem enxergar um boi diante de um dos muitos palacetes das volutas prescritas. Porque tudo sempre foi lícito demais para estas consciências tranquilas de um devorismo desavergonhado que se vangloria em comícios quase permanentes às portas dos julgamentos que as absolvem. Porque, enquanto os ditos devoristas apresentam alegações de campanha eleitoral, importa observar que bastava aos actuais partidos e empresários passarem à ofensiva, constituindo uma espécie de auto-regulação anticorruptiva que libertasse o poder judicial deste quotidiano desprestígio. Por outras palavras, os partidos tinham que definir, à boa maneira das pessoas honradas, com quem é que não querem sentar-se à mesa, ou a quem é que não querem confiar as carteiras, ou de quem é que não querem receber empréstimos e donativos. A velha atitude de Pôncio Pilatos, bem expressa por alguns altos hierarcas do regime na sua passagem pela comissão de inquérito parlamentar sobre um escândalo bancário, deveria levar a que ousássemos criticar algumas das pretensas vacas sagradas, por muito que nos custe perdermos algumas protecções e favores. Infelizmente, continuam a qualificar como doidinhos, os corajosos radicais livres que não subscrevem a carta de conduta a que a cobardia dominante dá o nome de moderação. Chegou a hora dos altos hierarcas e partidocratas manifestarem sincero arrependimento pelo sistema que os tramou e nos continua a tramar. Chegou a hora de pedirem, com toda a humildade, perdão ao povo e à democracia. De outro modo, poderemos entrar no desespero de quem clama pela nacionalização da banca, como se a estadualização fosse o remédio, esquecendo-nos que os países menos corruptos e mais eficazes no combate à corrupção são aqueles onde há mais priovatizações. Entre nós, as pretensas solidariedades ocultas, que até instrumentalizam o bom nome de instituições morais e congregações, levaram a que alastrasse este situacionismo difuso e suspeitoso, onde uma das principais chaves de acesso ao poder, além da troca de favores, é o silêncio entre os habituais irmãos-inimigos do Bloco Central de interesses das privatizações soarentas e cavaqueiras, onde as amizades banco-burocráticas são patentes. A honestidade não vem de cima para baixo, não vem deste enrodilhante manda quem pode, obedece quem deve, marcado pelo hierarquismo reverencial do estadualismo. Basta recordarmos como foi tanta a corrupção salazarenta  quanto as das prévias sociedades abertas demoliberais da monarquia constitucional e da Primeira República. Essa ilusão de estadualismo antineoliberal não passa de mais um desses discursos de justificação que nos atira para a hipocrisia de certos colectivismos morais quase inquisitoriais, onde se julga que, por alguém se afirmar de esquerda é mais impoluto do que um adepto do liberalismo capitalista, esquecendo-nos que o mercantilismo estadualista do capitalismo de Estado e do comunismo burocrático do domínio de ninguém, onde a culpa morre sempre solteira, produziu resultados tão imorais quanto o capitalismo selvagem dos novos ricos, de faca na liga e almas de corsários, apesar dos colarinhos brancos.

Abr 03

Que venham os becas, os professores, a tropa e as velhas forças morais que conservam o armazém de valores do povo!

As frases que escrevi sobre a reunião do G20 foram prognóstico antes do apito final do primeiro dos confrontos de um longo campeonato de procura de cruzeiro regulador para esta anarquia ordenada a que vamos chamando ordem mundial, minada por neofeudalismos que provocam, nos homens e nos povos que querem ser livres, vontade de revolta. Mesmo no plano meramente doméstico, quando é fácil concluirmos como as canalizações representativas da partidocracia estão enferrujadas, se ainda há alguns que acreditam nas fileiras decrépitas dos teóricos da revolução e outros que conseguem descobrir o inimigo num fantasma, a que chamam neoliberalismo e globalização, julgo que, pouco a pouco, apenas vai restando o espaço de respiração para a reflexão do penso, logo existo, desde que se pense pela própria cabeça, desde que se procure continuar a descoberta do necessário transcendente no situado da nossa existência. A encruzilhada em que, mais uma vez, vivemos, onde os efeitos nefastos do Estado-Espectáculo estão a atingir as próprias infra-estruturas do aparelho constitucional de administração da justiça em nome do povo, depois da desinstitucionalização levada a cabo no sistema de ensino público e na compressão das próprias forças armadas, com a Igreja entretida com preservativos e casamentos de homossexuais, é bem reveladora de uma sociedade desertificada, totalmente dependente do mero aparelho de poder, herdeiro do despotismo ministerial do absolutismo, que apenas se preocupa com o nível da sondajocracia e com as técnicas da propaganda e da manipulação do discurso de justificação do poder, a que chamam ideologia. Convinha repararamos que a regeneração demoliberal, a que nos permitiu alguma diginidade institucional nestes dois últimos séculos, depois da humilhante invasão napoleónica, só foi possível porque houve, apesar de tudo, um partido dos becas, ou dos juristas, magistrados e advogados; um partido da tropa, funcionando a nacionalismo, mesmo quando derrubou ministros da guerra; um partido dos professores e das escolas; bem como forças morais capazes de recriação de valores e de arrependimentos, como têm sido a Igreja e a Maçonaria, quando se libertaram  dos condicionamentos congreganistas. A crise que vivemos não é apenas da partidocracia e daquele falhanço da organização do trabalho nacional que impede a meritocracia da igualdade de oportunidades e a consequente justiça inteira: a da justiça comutativa, a da justiça social e a da justiça distributiva. Bastou ontem notarmos como no parlamento, uma senhora ministra queria passar a palavra a um seu ajudante, tratando os deputados como meros adjuntos da governamentalização em curso, para que, eventualmente, se descesse de nível e aparecesse na bancada governamental uma qualquer directora regional, orgulhosa dos milhares processos disciplinares em curso que dão vazão ao excedente de licenciados em direito que vamos produzindo e que se recutam em dependência, em clientelismo ou em favor de amiguismos. Por outras palavras, o partido dos becas, ao desmagistralizar-se, ao ameaçar passar de “magis” a “minis”, corre o risco de voltar a ter as alçadas que não obedecem à justiça, ao direito e à própria lei, transformando-se em meras bocas que pronunciam as palavras da portaria, do regulamento ou dos estatutos, mesmo que estes contrariem a lei, o direito e a justiça, onde as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados passam a ser interpretados autenticamente pelo despacho do senhor director ou do senhor presidente, conforme as conveniências. E haverá sempre falsos becas em carreirismo, ilustres jurisconsultos em avença e outros da mesma espécie de facturação que se submeterão ao princípio da chefatura do rebanho e dos machos dominantes. Não tardará, aliás, que, em certas zonas da nossa decadência, se usurpem funções que pertencem à reserva dos parlamentos, em nome do direito circular, segundo o qual enquanto o pau vai e vem folgam as costas.  Com efeito, tudo aquilo que aprendi de penalismo constitucional com professores como Eduardo Correia, Figueiredo Dias, Costa Andrade e que vivi na advocacia e na relação com os Tribunais faz parte de uma nostalgia pelo sentido do Estado de Direito que parece não resistir à presente vaga de neopositivismo de uma hipocria de Estado de Legalidade, a tal que varia de modelo conforme os interesses dos gestores dos pequenos aparelhos de poder que têm soberania na mesa do orçamento.

Abr 02

G20: a nova língua universal da aliança de civilizações pode entrar no ritmo da justiça, se a política continuar superior à economia

Os vinte mais ricos do mundo decidiram continuar a ideia de George W. Bush, o fundador dos G20, promovendo o espectáculo mediático de uma cimeira, ou cúpula, em brasiliense, para que os chamados anarquistas da antiglobalização continuem a partir montras. A questão central em causa tem a ver com a circunstância de haver uma sociedade global, com a sua geo-economia e a sua geofinança, mas sem que haja uma república global de regulação da economia e das finanças. Daí que o teatro de Londres nos pareça um espectáculo donde pode sair uma decisão histórica, como se essa cimeira fosse uma espécie de um jogo de futebol entre Portugal e a Suécia, onde ficou por assinalar uma grande penalidade, apesar do esforço do ponta de lança na simulação. Obama pode ser uma andorinha, mas a Primavera não virá depois do dia das mentiras, anunciando-se uma nova era sem trabalho de sapa, depois de argentinos, indonésios, indianos, mexicanos, brasileiros, japoneses, sul-africanos, sul-coreanos, turcos, sauditas, australianos, canadianos, britânicos, alemães, italianos, franceses e Durão Barroso darem pretexto para que norte-americanos se aproximem de russos e chineses. Cerca de noventa por cento do produto planetário sentado à mesa pode assinalar que findou o confronto entre as pretensas superpotências e os ianques também podem concluir que já não constituem uma república imperial, com a sua “pax mercatoria”, onde os interesses da humanidade se confundiam com os interesses nacionais interpretados por Washington, e o que era bom para a General Motors era bom para os States. Agora, Obama, como chefe de turma, apenas actua no palco da teatrocracia mundial como magnífico bom aluno e bom professor, lendo com todo o rigor um guião previamente reflectido pelo mais competente estado-maior do universo, naquilo que os sistémicos da teoria da decisão chamam “conscience”, ao estilo do nosso D. Jerónimo Osório. Obama nem sequer tem a autenticidade asneirenta de Bush, pelo que nada do que hoje acontecer vai cair na zona do inesperado. Até porque está em causa o pagamento da factura por milhões de contribuintes, não apenas norte-americanos, os tais que impediram a completa realização do modelo de Bretton Woods do segundo pós-guerra, nomeadamente pela instauração de uma organização mundial de comércio. Entre o tudo e o seu nada, a cimeira não vai ser o tudo, mas ficará muito acima do nada, sobretudo pela eventual triangulação de confiança entre Washington, Pequim e Moscovo, com o apoio da União Europeia, mesmo que Sarkozy continue o ritmo do menino birrento, ao reparar que tem de sentar-se ao lado de um qualquer Zé Povinho, à maneira de Lula, que, além de representar o Brasil, a comunidade lusófona e o Sul, também gostaria de ter ao seu lado uma qualquer instituição sindical, para que notássemos como o modelo de Estado Social em ploiarquia, como é o europeu, está desacompanhado neste processo. Com efeito, mesmo um marxista do século XIX tem de compreender como a luta de classes, perspectivada segundo o ritmo doméstico, pertence ao pretérito, como o próprio Lenine assinalou na sua teoria do imperialismo, quando reconheceu que um burguês capitalista de um povo explorado poderia alinhar num movimento de libertação nacional contra um proletário de um povo explorador. Contudo, mesmo este marxismo-leninismo já foi superado pelas circunstâncias do século XXI, não apenas pelas teses do Bloco de Esquerda, com Boaventura Sousa Santos a assumir-se como “guru” de Porto Alegre, mas, sobretudo, pelo vazio de teoria salvífica que hoje nos marca, porque também estas últimas teses já nem quer são subscritas por Lula. Todos temos, humildemente, que aprender com a ditadura dos factos. As tais realidades que quebraram todos os caixilhos ideológicos que nos tentavam explicar o processo histórico, onde alguns pensavam que a história é que moldava o homem. Todos temos de reconhecer que pode ser o homem a fazer a história, mesmo sem saber que história vai fazendo. Por mim, apenas confio. E, como liberal à Kant, mantenho a esperança dos desesperados. Prefiro assistir a estas reuniões cimeiras, onde dois dos vinte actores falam português e outros dois, castelhano, com seis anglo-saxónicos e apenas um em francês. Julgo que a nova língua universal da aliança de civilizações pode entrar no ritmo da justiça, se a política continuar superior à economia, mas sem que nos esqueçamos que os problemas económicos e financeiros se resolvem com medidas económicas e financeiras, mas não apenas com medidas económicas e financeiras. Acho que, apesar de tudo, depois de amanhã, o mundo vai ficar melhor. Sinto.-me da pátria do Padre António Vieira do Maranhão e do Zé Bonifácio do meu Conselho Conservador.