Como crente que vou sendo, e cada vez menos ateu e menos agnóstico, nada posso ter de anticatólico, antiprotestante, antijudaico, antibudista ou antimuçulmano, mesmo que me reconheça como não adepto da religião dominante em Portugal. Bem pelo contrário! As grandes religiões universais, sobretudo em momentos de cepticismo pouco entusiasmante, são fundamentais para que o fundamentalismo não nos faça tropeçar nas encruzilhadas da decadência. Daí que, ontem, tenha espreitado, com toda a naturalidade, a participação do nosso Fidelíssimo chefe de Estado nas comemorações, procissões e missas do símbolo escultório que o Cardeal Cerejeira colocou na outra banda, saudando, em especial, a postura de reconhecimento popular que a presidente comunista da autarquia almadense assumiu. Reparei que o senhor duque de Bragança foi transformado por Fátima Campos Ferreira em comentador de assuntos religiosos, mas que o Bispo de Setúbal teve o diplomático cuidado de silenciar referências à relação da dinastia que lhe dá nome com o culto mariano, certamente para não irritar a comissão oficial das comemorações do 5 de Outubro de 1910. Invocar a aliança do trono e do altar, anteriores a 15 de Maio de 1891 seria tão politicamente incorrecto como homenagear D. Manuel Gonçalves Cerejeira e o seu grande aliado António de Oliveira Salazar , até porque os organizadores das cerimónias de ontem e de anteontem, tão justamente transmitidas em directo pela televisão pública deste Estado laico, não quiseram correr esse risco. Seria quase tão ofensivo quanto montarem uma banca onde poderiam colocar o “Diccionario Enciclopédico de Sectas” organizado pelo dignitário espanhol do Opus Dei, Manuel Guerra Gómez, especialista na detecção da dita “versão maçónica da Ordem de Malta”, bem como no inventário das vinte mil seitas que inundam a ortodoxia, segundo o conceito da Universidade de Navarra, com os consequentes processos difamtórios em tribunais do Estado Espanhol de hoje. Temo que, do reino da Casa de Áustria, nos voltem a exportar conceitos como este: “uma seita é a chave existencial, teórica e prática dos que pertencem a um grupo autónomo, não cristão, fanaticamente proselitista, exaltador do esforço pessoal e da expectativa de uma mudança maravilhosa, colectiva – da humanidade – do indivíduo ou do homem em uma espécie de super-homem”. Temo que os neotorquemadas aqui se estabeleçam com a respectiva Rede Ibero-Americana de Estudo das Seitas (RIES), para concluirmos guerraticamente que a “nossa época, não menos do que outras e talvez mais que outras, merece apelidar-se demoníaca”. Daí que possam aparecer os habituais caçadores de satânicos, demoníacos, maçónicos, cismáticos, heréticos, pentescostalistas, bruxas e budistas, em nome de um pretenso científico catedrático, assente num qualquer Doutor em Teologia patrística e em Filologia clássica, capaz de concluir pelas vias que nos levam à “busca desenfreada do prazer sexual” ou às “relações peculiares com o Demónio”, bem como à detecção dos praticantes de “el yoga, las artes marciales (aikido, reiki, taichi, etc.) y, sobre todo, el zen, han sido el caballo de Troya que ha facilitado la introducción camuflada del budismo en Occidente”. Por mim, continuo a reler o processo do Padre António Vieira perante a Inquisição, a ser fiel a Damião de Góis e a preferir Erasmo a Lutero, embora subscreva Fernando Pessoa. Contudo, não deixo de reconhecer que o livro minhoto-coimbrão “A Igreja e o Pensamento Contemporâneo”, de 1924, precede, numa década, o “Caminho” de São Josemaria Escrivá. Para bom entendimento de certa ortodoxia editorial, estas palavras esotéricas devem bastar. Compreendo a causa profunda das vergastadas saneadoras que me dão no lombo certos vendedores de santinhos e sanbentinhos. Para mim, Manuel Guerra era o nome do meu reitor do liceu de Coimbra, o “pulga” de que todos temos saudades, mas que antes da guerra tinha santos de baptismo. Mas esse era professor de matemática e nunca foi editor-mor da ACTIC…
Mai
18