Nacionalismo e integração europeia
Regressamos ao fim de cinco séculos, às nossas fronteiras do século XV. Encontramo-nos, ao fim de cinco séculos, connosco próprios, com o nosso território europeu. Encaminhando-nos para a Europa correspondemos ao nosso destino histórico. Podemos encetar, como no passado aconteceu sempre que nos abrimos à Europa, um período de grandeza, que será mais cultural porque mais humana, do que a grandeza das descobertas ou do tráfico de escravos ou do ouro do Brasil: porque será uma verdadeira grandeza de pessoas e de povo, unidos aos europeus.
Francisco Sá Carneiro, discurso parlamentar de 11 de Fevereiro de 1977
I
Quase todas as mais clássicas definições de nação e geradoras do consequente nacionalismo, isto é, o projecto de construção de uma comunidade política baseada na ideia de obra que se decreta como nação, tanto se aplicam a um elefante de um grande espaço, como à formiga de uma micro-entidade, como assinalava Jean Bodin. Podemos dizer como Max Weber, que se trata de mera comunidade de sentimento que tem a ver com valores de prestígio. Podemos seguir Ernest Renan e sublinhar que a nação é um plebiscito de todos os dias, uma afirmação perpétua da vida, um produto da história e não da zoologia, da raça. Até é possível atingir a complexidade de Fernando Pessoa e proclamar que se trata de um conceito místico, de uma coordenação de forças sociais, assente na homogeneidade do carácter nacional, tendo raízes no passado e raízes no futuro, o que geraria uma sociabilização de forças individuais, porque é mais tronco do que raiz.
Por outras palavras, qualquer exercício de detecção científica do conceito de nação pode confundi-la com a própria ideia de Europa, pelo que podemos assumir esta como uma espécie de nação de nações, seguindo a inspiração de Montesquieu, ou voltar a Fernando Pessoa e considerar que cada nação pode ser uma espécie de escola da super-nação futura. Porque tudo depende do aparelho de poder que assume o projecto em causa, o qual tanto pode coincidir com os vestefalianos Estados a que chegámos, como com um super-Estado, entendido como república maior, ou como entidade política supra-estadual, capaz de construir uma nova missão, com regras processuais consensualizadas e manifestações de comunhão entre os respectivos membros, mobilizados pelo novo bem comum. Porque, conforme Karl Deutsch, tudo tem a ver com uma comunidade de significações partilhadas, assente em hábitos complementares de comunicação.
Logo, a não identificação entre o aparelho de poder (onde, em vez de ler-se Estado, podemos ler Comissão da União Europeia), e a comunidade, ideia ou projecto (onde, em vez de ler-se Estado, podemos ler Europa) é susceptível de gerar um conflito entre essas duas entidades, dado que o conceito de Estado moderno, enquanto Estado racional normativo, não coincide com o projecto de nação, tal como a razão nem sempre se identifica com a emoção, o geral com a diferença, e a civilização entra, por vezes, em contradição com a cultura.
Com efeito, a partir do século XIX, surgiu um jogo múltiplo e contraditório, dado que, em nome do nacionalismo, alguns povos, até então dispersos por vários Estados, buscaram respectiva unificação (casos da Itália e da Alemanha), enquanto outros tentaram independentizar-se de grandes Estados (casos da Grécia e da Bélgica).
A partir de então, surgiram, variados modelos de nation building e de state building: — os que, centripetamente, se volveram em supranacionalismos, tentando construir Estados quase imperiais (caso do pangermanismo e do paneslavismo); — os que, de forma expansionista, se transformaram em colonialismos; — os que promoveram a fragmentação centrifugadora de certos Estados, gerando separatismos, regionalismos, anticolonialismos e autodeterminações.
Mas observando a actual realidade internacional, verificaremos, sem grande esforço, que continua a existir essa não coincidência entre a razão da construção do aparelho de poder, incluindo o da tecnocracia jurídica, e a comunhão emotiva da construção de uma comunidade das coisas que se amam, implicando cultura. Isto é, entre os dois pólos, persiste uma espécie de paradoxo que tanto passa por separatismos centrífugos como por unificações centrípetas: — porque há povos repartidos por vários Estados (veja-se o caso dos curdos); — porque há povos que procuram constituir-se em Estados (v.g. o caso da nação palestiniana); — porque há povos que pretendem reivindicar o estatuto de minoria nacional institucionalizada dentro de um determinado Estado (v.g os catalães); — porque há Estados que incluem vários povos e nações ( v.g. o Estado espanhol); — porque há Estados que procuram construir nações (v. g. o caso de grande parte dos Estados afro-asiáticos, com fronteiras traçadas na era colonial).
O conflito permanece hoje em dia com inúmeros nacionalismos que em nome de nações pretendem alterar a configuração dos Estados existentes pela desintegração, unificação, expansionismo ou integração. E a este respeito, cumpre assinalar que William Connor, analisando 132 entidades que, em 1971, se qualificavam como Estados e eram sócios da ONU, chegou à conclusão que só 12 eram nation-states, sendo todos os outros plurinacionais: 25 tinham 10% de minorias nacionais; outros 25, entre 11% e 25%; 31, entre 26% e 50%; 39, com mais de 50% . Existem, com efeito, os sinais mais contraditórios nesta relação.
Num primeiro grupo, elencaremos nacionalismos que, invocando a existência de nações, integradas em Estados plurinacionais, querem, pela via separatista, desintegrar aqueles e construir novos. Num segundo grupo, referiremos nacionalismos que, invocando nações dispersas por vários Estados, procuram construir novos Estados. E aqui seremos obrigados a distinguir os nacionalismos que pretendem unificar vários Estados num só Estado, dos que apenas pretendem juntar várias parcelas de Estados num novo Estado, mantendo os anteriores.
Num terceiro grupo, incluiremos os nacionalismos que procuram transformar-se em supranacionalismos (o pan-eslavismo e o panarabismo); Não deixa até de existir o grupo dos nacionalismos sem nação que querem construir nações. É este o nosso tempo, dito, por certa ideologia, como de fim da história. É este o nosso tempo de encruzilhada, onde predomina a teokrasia ou a mistura de deuses, de deuses e diabos, de anjos e de fantasmas que libertaram, das prisões racionais-normativas, os subversivos génios invisíveis da cidade.
Até poderemos acrescentar que se há nações que foram criadas por Estados, também há nações que criaram Estados, pelo que é possível admitir que os aparelhos de poder da União Europeia, tal como os velhos Estados, dos nacionais aos imperiais, podem favorecer a emergência de uma nação-Europa que até pode não excluir, mas federar as anteriores identidades nacionais, em regime de pluralidade de pertenças, onde se vão repartindo as expectativas e as lealdades.
Também poderemos referir, noutra perspectiva, que não faltam Estados que são, ou foram prisões de nações, ao lado de outros Estados que se assumiram como formas de libertação nacional. Se alguns autores, como Carl J. Friedrich, consideram que a nação e o Estado constituem dois irmãos siameses e outros falam numa identidade entre o Estado e a nação, há também quem estabeleça entre as duas entidades, uma relação de progenitura, dizendo que é o Estado que cria a nação ou o inverso. Se o contra-revolucionário Joseph de Maistre salientava que a nação deve mais ao soberano que o soberano à nação , também Bertrand de Jouvenel dizia que foi o rei e o trono que construiram as nações: tornámo-nos compatriotas como fiéis de uma mesma pessoa, de um rei que acumulou títulos porque, sendo senhor de povos distintos, precisava de assumir relativamente a cada um aspecto que lhe fosse familiar. Assim, ele foi o destruidor da República dos conquistadores e o construtor da nação, transformando elementos dispersos, que apenas constituíam um agregado de uma societas e que, depois, integraram um todo.
De facto, entre os séculos XVI e XVIII, com o Estado Moderno, o soberano exerceu o poder, unidimensionalizando todos os habitantes de um território demarcado por fronteiras, contrariamente ao que acontecia na poliarquia medieval, onde o poder do centro político assentava, sobretudo, numa variedade de pactos. Mas este Estado da monarquia absoluta, com um príncipe territorial, a lutar contra o universalismo, do Império e do Papado, e contra os particularismos, ou as poliarquias, do feudalismo e do comunalismo, se, nalguns casos, se transformou em Estado-nação, noutros não passou de simples Estado-administração, ou de um Estado sem nação, marcado pela mera lealdade a uma dinastia e sem qualquer nação susceptível de suportar a unidade do Estado. Neste último caso, o Estado aparecia como protector das minorias nacionais, como o rei medieval o fora, principalmente para os judeus, colocados sob a sua directa protecção. Da mesma forma como o Império Romano fizera relativamente aos vários estatutos particulares de alguns povos, que, apesar de dependentes, mantinham a autonomia dos respectivos direitos e das respectivas justiças.
Os autores de cepa hegeliana, por seu turno, consideram que há uma identidade entre a nação e o Estado, nomeadamente quando declaram que o Estado é a nação politicamente organizada. Felice Battaglia, por exemplo, considera que se a nação cria o Estado, o Estado cria a nação. A nação, longe de ser algo distinto do Estado, é ela mesma vontade de Estado, preparando o Estado ou concedendo-lhe o sentido mais exacto do seu ser com a individualização concreta do complexo humano que o constitui. E nisto estes autores neohegelianos têm algum fundo de verdade dado que raro é o movimento nacionalista conformado com o que está, com o status. Mais do que conservar, quer tradicionalizar, isto é, reformar o presente, recuperando o passado, de forma repristinatória, utilizando pretéritos elementos míticos para justificar o presente e movimentar o futuro.
II
Um qualquer estudioso português de matérias de relações internacionais que, daqui a cinquenta anos – se ainda houver portugueses e se ainda houver relações internacionais no tempo dos meus netos …. -, um curioso destas matérias que, dentro de meio século, tentar investigar as causas que levaram à adesão de Portugal à CEE em 1985, pesquisando a literatura portuguesa sobre as matérias da integração europeia, ficará certamente intrigado pelo facto de, nos anos setenta e oitenta, encontrar apenas duas ou três monografias, meia dúzia de artigos e outras tantas obras de vulgarização sobre o tema.
Com efeito, a Europa à portuguesa dos homens da pré-revolução começou por ser uma simples sebenta de economia que, depois, se volveu numas lições jurídicas de direito comunitário, curricularmente consideradas como mero anexo ao direito internacional. Mesmo no começo da década de oitenta, a Europa continuava a ser apenas um dos possíveis sítios para onde poderíamos ir, alguma coisa que estava fora de nós mesmos e com a qual iam negociando os restritos gabinetes de integração europeia, herdeiros dos gabinetes de planeamento, que recrutavam de forma avulsa alguns elementos das auditorias jurídicas. A Europa não passava de uma série de dossiers feitos com muitas resmas de papel fotocopiado por tecnocratas estaduais e por quadros de algumas associações económicas que visitavam esporadicamente Bruxelas.
Enquanto isto, os nossos jovens e democráticos partidos, subsidiados pelas fundações alemãs, faziam excursões pela província, promovendo seminários sobre a integração europeia, onde o mesmo formador tanto anunciava os benefícios da política agrícola comum, como perorava sobre a estratégia da guerra fria, a união económica e monetária e a defesa do consumidor. E em nome das estatísticas e dos gráficos coloridos dos outros, lá se ia pregando a boa nova de uma caminhada rápida e irreversível para um desenvolvimento capaz de tornear o atraso do orgulhosamente sós, em nome de uma Europa connosco, capaz de fechar num ápice o ciclo do Império. Todos os grandes partidos teciam loas ao sistema, à excepção evidentemente do PCP. Todos se ilusionavam com as irmandades de uma Europa que teria remoído o salazarismo e que acreditava nos cravos da revolução de abril que, em paz, haviam liquidado a mais antiga ditadura da Europa e aberto saldos no mais antigo dos impérios coloniais europeus.
Foi todo este ambiente de vazio de sonho europeu que marcou os primeiros anos da adesão, quando os governos invocavam de forma utilitarista a bandeira dos milhões da CEE, num tempo de filosofia dos homens de sucesso e de dominância do utilitarismo. Aliás, esses tais milhões de contos dos pacotes comunitários chegavam a um Portugal que vivia estremunhado pelo chamado escândalo de Dona Branca. E entre os dois fenómenos, se havia alguns zeros de diferença, notavam-se também muitos fundos perdidos de coincidências. No primeiro caso, aquela mentalidade portuguesa que considerava a CEE como a nova árvore das patacas que servia de sucedâneo às índias e aos brasis perdidos, de onde outrora afluíam especiarias, ouro e pedras preciosas.
Sobre a matéria, apenas direi que quem percorrer as histórias da ideia de Europa com mais autoridade, não detecta personalidades portuguesas, na habitual lista que vai de Pierre Dubois a Jean Monnet e que passa por franceses como Sully, Crucé, Abade de Saint-Pierre, Saint-Simon, Victor Hugo, Herriot e Briand, por alemães como Leibniz e Kant, por ingleses como Penn, Bentham e Churchill ou por checos, como Podiebrad ou Comenius. Aliás, nesse mesmo conjunto, também não se vislumbra rasto de espanhóis e de outros sulistas ou mediterrânicos, à excepção de um outro poeta e de alguns intelectuais do exílio, interno ou externo. Nenhum português também aparece no originário movimento pan-europeu, na resistência europeísta anti-hitleriana, ou nos congressos federalistas ou unionistas do pós-guerra, sementes donde brotaram os chamados pioneiros da Europa comunitária. Mas, se formos um pouco mais longe, também poucas vezes encontraremos portugueses como actores, mesmo que secundários, nos esforços de estabelecimento do equilíbrio europeu, paralelos às guerras iluministas, a não ser nos bastidores dos congressos de Vestefália e de Utreque. Apenas no Congresso de Viena de 1815 e nas negociações da Paz de Versalhes, posteriores a 1918, detectamos uma tímida participação portuguesa, pouco proporcional às invasões de Godoy e Napoleão ou ao nosso esforço no atoleiro da Flandres, durante a Grande Guerra.
Se, em termos de participação criativa, como protagonistas ou actores secundários, não estivemos no centro das modernidades da Europa, eis que os efeitos expansivos das mesmas sempre se fizeram sentir cá dentro, tanto no plano das coisas materiais, desde a tutela económica à invasão militar, como no plano das realidades espirituais, com os estrangeirados, progressistas ou contra-revolucionários, maçónicos ou antimaçónicos, todos eles prenhes de um maniqueísmo decretador do bem e do mal, conforme as luzes exógenas provenientes dos sítios considerados polidos, civilizados, desenvolvidos, modernizados ou progressistas. Foi assim nalgumas vagas do século XVIII, num crescendo que culminou no drama das invasões francesas; não deixou de o ser entre 1820 e 1834, quando nos transformámos em mero reflexo da longa manus da Santa Aliança ou dos que se lhe opunham. E voltou-se ao mesmo ritmo, quando a generosidade justiceira da Maria da Fonte e da Patuleia foi jugulada pela intervenção estrangeira imposta na Convenção do Gramido e continuada ao longo de todo o nosso Portugal Contemporâneo, ao estilo da questão do mapa cor de rosa.
III
Entre as duas guerras deste século, também houve alguns portugueses que tentaram a senda europeísta. Na geração do Orfeu, para além da teoria de Fernando Pessoa sobre os fundamentos da civilização europeia, destaca-se a visão do Sudoeste de Almada Negreiros, enquanto no grupo do humanismo laico, surgem as vozes de Santana Dionísio e de Abel Salazar em A Crise da Europa, de 1942 (Lisboa, Cosmos).
Foi durante a Grande Guerra que Fernando Pessoa, insurgindo-se contra o Kriegsstaat alemão, procurou determinar a génese daquilo que designava por civilização europeia, enumerando em sucessivos textos vários princípios, bases ou fundamentos. A civilização a que todos pertencemos assenta em quatro fundamentos: a Cultura Grega, a Ordem Romana,na, e a Moral Cristã, a Universalidade Moderna, esta última criada pela Itália, quanto à formação de nacionalidades distintas, que nela primeiro emergiram em semelhança dos estados-cidades dos gregos e romanos; por Portugal, pelos descobrimentos, quanto à conversão da simples civilização europeia em civilização mundial; pela Inglaterra (…) A civilização a que todos pertencemos – entendendo por “todos” todo o mundo – assenta em três fundamentos, que a precederam. Esses fundamentos são a Cultura Grega, a Ordem Romana, e a Moral Cristã. Da Grécia nos vem o espírito e a forma da nossa cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da nossa política. Da religião de Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa vida interior.
A estes três fundamentos originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem. Da Grécia nos vem o espírito e a forma da nossa cultura. De Roma nos vem o espírito e a forma da nossa política. Da religião de Cristo nos vem o espírito e a forma da nossa vida interior.
A estes três fundamentos originais da civilização, primeiro da Europa, depois do mundo inteiro, se ajuntou, desde o fim da Idade Média e princípio da Renascença, um quarto fundamento. É difícil de lhe dar um só nome, mas esse nome poderá ser a Liberdade Europeia, porque os três movimentos criadores que o formaram tendem todos, ainda que diversamente, para uma libertação do homem.
O primeiro movimento começou na Itália e constituiu, através da renovação do espírito grego, na destruição da fraternidade humana, quer pela formação de nacionalidades, quer pelo movimento anti-romano que, por um lado progressivamente destituiu a língua latina de língua da humanidade civilizada, e, por outro lado, preparou a reforma, que haveria de destruir a fraternidade católica da Europa. Assim a Europa se libertou do excesso de Roma e da Humanidade. É contra a humanidade que se faz todo o progresso; por isso é reaccionário todo o movimento, como o bolchevista, em que se pretenda introduzir a ideia fruste de humanidade.
O segundo movimento começou em Portugal, e foi o dos Descobrimentos. Pouco importa discutir se tal ou outro ponto da terra era ou não conhecido antes de o descobrirem os Portugueses. Os descobrimentos dos Portugueses não valem como descoberta, mas como sistema. Foi Portugal que primeiro sistematizou a descoberta e revelação do mundo. Sociologicamente, pois, os descobrimentos (sejam os se espanhóis, de franceses, de ingleses, ou de quem quer que seja) são todos portugueses. Historicamente, serão o que forem; a história porém não é nada, senão (não é mais que) o armazém de factos ou pseudofactos sobre os quais trabalhe a sociologia.
Já para Almada Negreiros (Sudoeste, Junho de 1935), terminado o Império Romano e emancipados os povos, formam-se depois as várias nacionalidades e substitui-se a unidade política da Europa da Roma dos Césares pela unidade política da Europa legítima.
Entregues os povos aos seus próprios governos, a unidade da Europa está na ligação de todos pela mesma fé geográfica e telúrica.
Trata-se de formar as várias civilizações particulares da civilização geral europeia. trata-se de guardar no todo da Europa o perfil de cada um dos seus particulares.
Na Europa de hoje reproduz-se parecidamente o mesmo que na da Roma dos Césares. Não existe um poder central, como então, impondo com as suas legiões armadas a obediência ao César romano, mas há uma força que ultrapassa o poderio das nacionalidades europeias, uma força que não é localizadamente temporal em nenhuma parte da Europa, mas que existe, a mais forte de quantos impérios aqui se sucederam: É a própria força da Europa mais una afinal hoje do que nunca, entregue pela primeira vez à sua própria responsabilidade total, sem nenhum chefe único da Europa mas nas mãos de todos os chefes de todas as nacionalidades europeias. É a força espiritual da Europa que entra em sua própria consciência. É esta consciência da unidade espiritual da Europa que faz exigir de cada nacionalidade o superlativo da sua evidencia telúrica, que faz ir cada povo até às profundezas místicas dos seu próprio barbarismo d’origem, como se o mais estranho poder e o mais sobrenatural intimasse cada nacionalidade a esclarecer toda a essência do seu próprio mistério, como se tratasse de uma questão a prazo, de vida ou de morte para cada nacionalidade.
A unidade espiritual da Europa entra hoje na sua maioridade. Os povos já não terão por inimigos o estrangeiro que lhes justifique as lutas pela independência. Hoje a independência dos povos assenta sobre si-mesmos, adentro das fronteiras, corre mais perigos e tem menos inimigos estranhos.
A unidade espiritual da Europa ao mesmo tempo que ilumina melhor também ameaça mais a independência de cada nacionalidade do que o estrangeiro à porta. Cada povo europeu actual há-de fazer ressuscitar do barbarismo da sua origem a mística colectiva da sua própria integração na terra-berço. Cada povo europeu actual há-de mergulhar-se de novo nos absurdos milagres que o fizeram na lenda melhor do que na historia. Cada povo europeu actual há-de crer novamente naqueles milagres que servem só para si e nos quais ele sabe acreditar.
Afinal, na Europa, não há senão casos particulares de europeus: o caso russo, o caso alemão, o caso inglês, o caso francês, o caso português, o caso espanhol, etc. Os diversos e determinados casos da Europa. Os diversos, determinados e legítimos casos da Europa.
Por seu lado, Santana Dionísio, em 1938, referia: verdadeiramente, a Europa nunca constituiu um conjunto fraterno, uma aliança moral. A sua história, pode dizer-se, só nos fala de mal-entendidos, de propósitos, de destruição, de brutalidades. E no entanto, na sua mais íntima estrutura espiritual, nos povos que ela abrange (mas não abraça), há, indubitavelmente, alguma coisa de comum, alguma coisa com um lusco-fusco de consciência (análogo ao das cidades gregas que se digladiaram até se perderem) de que o destino de cada um depende do destino de todos.
Esse alguma coisa de comum não provém, parece-nos, pelo menos essencialmente, nem da verificação, tantas vezes feita, nas guerras políticas e aduaneiras, de que a economia europeia é solidária, nem do instinto gregário que o choque com outros continentes poderia suscitar. A proveniência, parece-nos, dever ser procurada algures, sem ser nas vísceras empenhadas no sustento e na ânsia de domínio. Queremos dizer: o que nos permite ainda usar a palavra Europa como exprimindo alguma coisa de efectivamente concreto, real, é o sentimento obscuro, mas entranhado, em todos os povos do velho continente, de que eles criaram uma civilização espiritual sui generis, que eles têm uma maneira sua, metafísica, de encarar a vida, a pessoa humana, as relações sociais, e dum modo geral todos os problemas fundamentais que constituem o que hoje se diz por uma só palavra: cultura. Só isso (e nenhuma razão poderia ser mais forte) não consente que se diga que a “ideia” de Europa é um simples “flatus vocis”.
Finalmente, para Abel Salazar, a Europa actual … como a Grécia de outrora, é um conjunto em que a Nação substituiu a “cité”. Este conjunto de nações possui uma unidade de civilização, a civilização europeia.
Este conjunto, estruturado com o conceito orgânico que a Europa historicamente elaborou, tende a ultrapassar este conceito. A unidade de civilização procura a unidade política; simplesmente o novo conceito não está definido: só a elaboração histórica do futuro o poderá definir. Este conceito é, evidentemente, antagónico com o de Nação, como outrora, na velha Grécia, o conceito de nação, em potência, era antagónico com o de “cité”.
Como a Grécia e Roma, igualmente a actual Europa está enclausurada num dilema; porque ultrapassar o conceito de Nação, seu conceito orgânico, é destruir o actual Sistema Histórico. Por outro lado, manter o conceito de nação é petrificar a história e acentuar o contraste com a unidade de civilização. Nesta unidade está em germe, potencialmente contido, um novo conceito e, portanto, um novo Sistema Histórico. A Europa oscila assim, constantemente e por forma cada vez mais aguda, entre o conceito definido historicamente elaborado, e o conceito futuro, indefinido. Actualmente ‘tende’ para ele como para qualquer coisa que se desenhe nas brumas do horizonte, sem, no entanto, se poder precisar o que seja.
IV
A história da construção da unidade europeia da segunda metade do século XX pode, aliás, ser contada em meia dúzia de linhas, sem recorrermos às gastas citações que aparecem nos folhetos de divulgação e propaganda emitidos por Bruxelas, a essa perspectiva oficiosa da eurocracia sobre o nascimento do projecto europeu, onde certo revisionismo histórico estabelece uma espécie de linha justa da construção do modelo. Essas vulgatas falam, por exemplo, na proposta de criação de uns Estados Unidos da Europa apresentada por Winston Churchill, no discurso de Zurique, de 19 de Setembro de 1946, mas não inserem a mesma na linha política tradicional britânica que apenas queria federar a pequena Europa – mantendo-se de fora – , privilegiar o atlantismo e manter a Commonwealth. Refere-se também a criação da OECE em 1948, tendo em vista a gestão do Plano Marshall, lançado no ano anterior, mas acentua-se o aspecto da integração económica internacional, desdenhando-se do confronto entre Moscovo e Washington, no processo da guerra fria e até se cita desgarradamente a instituição do Conselho da Europa pela Convenção de Londres de 1949.
Convém insistir que a antiquíssima ideia de reconstrução de uma unidade política da Europa, de certa maneira, concretizada no plano político pelo Império Romano e no plano político-religioso, pela Igreja Católica Apostólica Romana durante a Idade Média, sempre esteve na base dos grandes projectos de Império desencadeados pelas grandes potências europeias da Idade Moderna e Contemporânea. Foi este sonho que animou a Espanha de Carlos V e Filipe II, a França de Napoleão Bonaparte e as várias Grandes Alemanhas, lideradas pelos Habsburgos, pela Prússia ou por Adolfo Hitler, já que os ingleses, conscientes das respectivas vulnerabilidades no plano continental, sempre preferiram conter uma das outras potências no teatro europeu, para poderem continuar a expandir-se noutros continentes. Acontece apenas que este choque de Impérios conduziu a mortíferas guerras na Mitteleuropa que, neste século, produziram aos grandes desastres humanos que constituíram as duas guerras mundiais.
Compreende-se como depois de 1945 se procurou um efectivo tratado de paz entre as duas principais potências da Mitteleuropa, a França e a Alemanha, a fim de se destruírem as causas dos potenciais conflitos. Assim, surgiu, em plena guerra fria, a ideia de um mercado comum do carvão e do aço que, em 1951, com o Tratado de Paris, vai conduzir à criação da primeira das Comunidades Europeias, a CECA. A geração que concretizou este modelo, se vivia a euforia do planeamentismo económico, se tinha consciência que os problemas económicos só se resolviam com soluções económicas, não se podia, contudo, integrar na categoria dos meros tecnocratas. Os pioneiros da Europa comunitária eram essencialmente animais políticos, isto é, sabiam que os problemas económicos não eram apenas problemas económicos, adoptando o método de curar o económico através do económico, mas não apenas através do económico, para parafrasearmos Emmanuel Mounier. Eles sabiam que a economia tinha de ser conduzido pela política, que a política tinha de ser norteada por ideias e que a superação das questões sociais da Europa de então tinha de ser comandada por um sonho. Só que ensaiaram realizá-lo, não pelos métodos da guerra, mas através da persuasão política, da negociação diplomática, do planeamento, da tecnocracia e da burocracia. E passaram do plano das boas intenções, desencadeando o processo de uma realidade nova: a Europa Comunitária. Em 1957, depois dos fracassos da CED e do projecto da Comunidade Política Europeia, já não bastava a restrita integração sectorial do carvão e o aço. Era preciso um mercado comum, com livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais e uma unificada política agrícola, bem como uma conciliação no plano da energia atómica. E assim surgiu a CEE e a EURATOM, com o Tratado de Roma. O modelo atingia o ponto de não regresso e estava suficientemente maduro para alargar-se, dos seis Estados iniciais, a todos os vizinhos europeus que se identificassem com o núcleo duro no plano político, económico e social. Assim, algumas décadas volvidas, além da França, da Alemanha/RFA, os pilares do processo, da Itália, e dos três parceiros do Benelux – Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo -, eis que vão chegando, depois de muitos percalços, o Reino Unido, a Irlanda, a Dinamarca, a Grécia, o nosso Portugal e a Espanha, sem esquecer o alargamento à própria Alemanha/RDA, depois da queda do Império Soviético.
IV
Deste modo, estávamos, nas vésperas de 1993, com um mercado comum prestes a transformar-se no mercado único e a discutir a ratificação do Maastricht, que, além do mercado único, visava criar uma união política efectiva. Só que nos bastidores do projecto europeu já não estavam as nobres figuras dos pais-fundadores, mas os eurocratas. Toda uma fauna de pretensos filhos de algo pela via da contiguidade burocrática e partidocrática. Todos eles exímios na metodologia, mas parcos no sonho, que, pouco a pouco, foram usurpando as decisões fundamentais, tanto através dos euroburocratas de Bruxelas, como dos europarlamentocratas de Estrasburgo. Uns viciados nas burocratices e outros na politiqueirice e todos com vencimentos de luxo, ambos se enredaram nos ares condicionados das respectivas torres de marfim supranacionais, perdendo-se nos corredores dos grupos de pressão e das partidocracias. Assim, o grande sonho europeu dessangrou-se. E a eurocracia burocrática e parlamentocrática, afastando a Comunidade do homem comum, deixou de entender a função de governar e de representar. Felizmente, o debate em torno de Maastricht, protagonizado pelos referendos da Dinamarca e da França, onde as campanhas pelo não foram assumidas pelos párias do sistema político estabelecido, fizeram despertar os envelhecidos políticos da Europa que tiveram de arregaçar as mangas e combater no terreno face to face. Talvez a Europa de Monnet, Schuman, Adenauer e De Gasperi tenha sido salva in extremis, num momento em que o sonho de unidade política da Europa, depois do fim do Império Soviético, tinha a possibilidade única de se estabelecer naquela casa comum que vai do Atlântico e para além dos Urales, talvez até Vladivostoque, juntando os herdeiros do Império Romano do Ocidente com os também europeus herdeiros do Império Romano do Oriente, desde sempre liderados pelos russos. O desafio que os europeus enfrentam, nesta última década do século XX, talvez constitua um dos mais importantes reptos políticos da história da humanidade. Seria trágico que essa grandiosa missão ruísse por questiúnculas politiqueiras. Seria ridículo que o europeísmo se reduzisse ao discurso europês.
V
Essa memória política da Europa, contrária ao centralismo no plano interno e defensora de uma nova concepção de relações internacionais, teve, entre nós, alguns distintos cultores. Muito justamente, costuma invocar-se como marco do nosso europeísmo, a célebre obra de Almeida Garrett, Portugal na Balança da Europa, editada em Londres, no ano de 1830, onde, em nome da esperança, se procurava pensar enraizadamente do que tem sido Portugal e do que ora lhe convém ser na nova ordem de coisas do mundo civilizado, desejando-se: Oxalá as honradas cãs do antigo Portugal, se já não é possível remoçá-lo, vivam ao menos em honesta e respeitada velhice; nem por impiedade de seus filhos o escarneçam desalmados estrangeiros na segunda infância da decrepitude, desonrado dos seus, insultado de estranhos, desamparado de todos! Praza a Deus que todos, de um impulso, de um acordo de simultâneo e unido esforço, todos os portugueses, sacrificadas opiniões, esquecidos ódios, perdoadas injúrias, ponhamos peito e metamos obra à difícil mas não impossível tarefa de salvar, de reconstituir, a nossa perdida e desconjuntada pátria, – de reequilibrar enfim Portugal na balança da Europa!.
Mas outros portugueses da época foram também pensando a Europa., Solano Constâncio, em 1815, fala-nos do equilíbrio sonhado da Europa, de uma espécie de código comum, o qual, apesar de muitas infracções parciais, formava o direito das gentes em toda a Europa até à época da repartição da Polónia e da revolução da França, acrescentando que se alguma potência recusa a reconhecer os princípios salutíferos e protectores da felicidade e da independência das outra nações, seja essa declarada e tratada como inimigo comum, e se não pudermos combater com um género de armas, lancemos mão de todos os outros meios de defender os nossos direitos e interesses contra as suas pretensões.
Um tal José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que, entre Maio de 1823 e Junho de 1824, foi Ministro da Guerra, editou, logo em 1821, um sugestivo Projecto de Guerra Contra as Guerras, ou da Paz Permanente Offerecido aos Chefes das Nações Europeias, onde propunha que as principais potências europeias, reunidas em Congresso, celebrassem um Pacto Imperial, onde não só renunciariam à guerra como também se comprometeriam na resolução pacífica dos conflitos, ao mesmo tempo em que se instituía um Conselho Supremo ou Supremo Tribunal de Justiça, onde cada potência confederada, estaria representada por dois deputados. As potências confederadas poderiam fazer a guerra defensiva ou ofensiva contra potências estranhas. Previa-se a existência de uma força militar permanente.
E, duas décadas depois de Garrett, Vicente Ferrer de Neto Paiva (1798-1886), na sua Philosophia do Direito, de 1857, apelava à federação de nações, herdeira dos Amphictyões da antiga Grécia e dos adeptos da Dieta germânica, proclamando que seria para desejar, que se organizasse não digo já a grande associação da humanidade mas uma associação europeia, procurando tornar uma realidade o que se tem chamado um bello sonho de alguns Philosophos como o Abbade de St. Pierre, Kant, Rousseau, etc. – a ‘paz perpetua’: o Direito das Gentes teria um tribunal, que administrasse justiça entre as nações da Europa decidindo pacificamente as questões que se originassem à cêrca dos seus direitos. As nações da Grecia, nos tempos antigos, com a junta dos Amphictyões, as da Alemanha nos modernos, com a Dieta germanica, e em geral todas as federações de nações, subministram typos para a organização da grande sociedade da Europa. Os congressos e conferências, que por vezes se têm reunido, provam, que as nações da Europa tendem para esta instituição, e que sentem a sua conveniência política.
Continuando esse belo sonho, eis que, poucos anos depois, nos aparece um Bernardino Pinheiro, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, a defender expressamente uns Estados Unidos da Europa. Década e meia volvida, chega a vez de António Ennes (1848-1901) que em A Guerra e Democracia, de 1870, apelava, de novo a uns Estados-Unidos da Europa. Mas, como dizia Manuel Laranjeira, em carta a Miguel de Unamuno: A Europa despreza-nos; a Europa civilizada ignora-nos; a Europa medíocre, burguesa, prática e egoísta detesta-nos, como se detesta gente sem vergonha e, sobretudo … sem dinheiro. Apesar disso ainda há em Portugal muita nobreza moral. Os reflexos de Proudhon também aqui emergem, destacando-se tanto as teses de Antero Quental (1842-1891) que, em 1872, chega a propor para a península ibérica uma federação republicano-democrática, como as ideias sobre a reconstrução federativa, de Oliveira Martins (1845-1894).